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As relações dialógicas entre os discursos independem de qualquer forma de heterogeneidade mostrada, pois o outro atravessa a fala constitutivamente. Nos termos de Authier-Revuz (2004:21), “partindo das formas marcadas que atribuem ao outro um lugar lingüisticamente descritível (...) chega-se, inevitavelmente, à presença do outro – às palavras dos outros, às outras palavras – em toda parte sempre presentes no discurso”.

Segundo Moirand (1999), o dialogismo constitutivo se desdobra em duas modalidades: o dialogismo interacional constitutivo e o dialogismo intertextual constitutivo. O primeiro diz respeito ao enunciado que mantém interações imaginadas com um sobredestinatário presente no discurso interior de enunciadores, deixando marcas no discurso produzido (Moirand, 1999). Numa análise dos discursos de vulgarização científica midíaticos, Moirand (2000: 105) mostra que esse dialogismo se manifesta na avaliação das questões e das interrogações que o jornalista (ou outro mediador) faz aos leitores e que imagina que eles fariam, como sobre a denominação (o que é?), o procedimento (como se faz?) e a compreensão de um fenômeno (por quê?). Logo, podemos conceituá-lo como o diálogo que o enunciador estabelece com os possíveis discursos de compreensão-resposta dos seus destinatários reais ou virtuais.

O segundo contempla as relações do enunciado com os outros discursos imersos na memória interdiscursiva. É essa memória que torna recuperáveis as vozes implícitas ao enunciado, partilhadas pela maioria dos enunciadores e destinatários em uma dada conjuntura social e em um dado espaço da discursividade (Moirand, 1999).

Vemos, desse modo, que nenhum enunciado se encontra isolado das “redes de formulações” (Maingueneau, 1997), constituídas pelos discursos prévios do próprio sujeito enunciador, pelos discursos anteriores que falam sobre o mesmo tema ou temas próximos, pelos discursos produzidos no mesmo contexto de produção ou conjuntura social e pelos discursos pertencentes ao mesmo gênero ou esfera discursiva, além dos discursos posteriores que retomam, refutam, avaliam e transformam o enunciado em outro.

Fairclough (2001:166-167) concebe essas redes como “cadeias intertextuais”: tipos particulares de discursos (ou uma série de tipos de discursos) são transformados em outros e relacionado a eles de forma regular e previsível no âmbito de práticas institucionais. Tais cadeias podem ser simples, quando há um número determinado de transformações que podem ser geradas a partir de um tipo particular de texto (ou de uma série), como a que relaciona as entrevistas orais às reportagens escritas que as retextualizam; ou complexas, quando podem gerar transformações ilimitadas. Esse é o caso das cadeias geradas a partir da veiculação de

um pronunciamento importante de um candidato no guia eleitoral, pois, provavelmente, tal discurso será retomado e transformado no guia da frente antagonista, assim como nas notícias e reportagens, nas análises dos cientistas políticos, nas conversas informais e em outros discursos que respondem a ele de diversas formas.

Os vínculos entre esses discursos que constituem uma memória interdiscursiva específica, segundo Moirand (1999), são reconhecidos e interpretados por alguns índices de contextualização. A autora (1999:174-176) agrupa esses índices em três níveis.

No primeiro nível, encontram-se as designações nominais (os nomes próprios ou nomes comuns que designam os sujeitos e os fatos discursivos) e as construções sintáticas (estrutura nominal ou verbal, interrogativa, exclamativa, injuntiva ou declarativa). As designações constroem cadeias referenciais no interior do enunciado, permitindo-nos observar a representação dos fatos discursivos e dos sujeitos, a partir das diferentes formas que os inscrevem no encadeamento discursivo (designações genéricas, específicas, qualificativas, restritivas, entre outras). Essas formas referenciais e as construções sintáticas revelam o horizonte axiológico do discurso.

No segundo nível, encontram-se os recursos semânticos (sentido de certos vocábulos, jogos de palavras, figuras estilísticas, tipos de argumentos, relações de sentido estabelecidas pelos conectores argumentativos) que atravessam enunciados de diversos campos. É interessante observar, nesse nível, como diferentes discursos exploram semanticamente a mesma unidade lexical.

No terceiro nível, encontram-se as configurações textuais do intradiscurso, ou seja, as características do gênero, seus aspectos temáticos, estilísticos e composicionais. Os traços específicos de um discurso não significam que ele seja uma entidade fechada e autônoma, pois, como já referimos, ele se constitui no interdiscurso.

Assim como as formas dialógicas não-marcadas, o dialogismo constitutivo é também uma questão de recepção (Cunha, 1992), já que o leitor/interlocutor pode perceber ou não tais indícios ou a voz alheia conforme a memória de discurso, ou seja, seus saberes, conhecimentos e crenças sobre o mundo (Charaudeau & Maingueneau, 2004: 326).

Essa alusão aos outros discursos não é necessariamente desejada ou sabida pelo enunciador, se bem que muitas vezes o destinatário a atribua à intencionalidade do sujeito (Moirand, 1999). O sujeito não é o todo poderoso, totalmente livre e intencional, que expressa suas idéias através da linguagem, mas é condicionado por fatores históricos e ideológicos, afetado pelo inconsciente e constituído pela alteridade.

Considerar a existência do outro do enunciado, contudo, não implica a negação da presença do “eu” (Possenti, 1995), do trabalho do sujeito na linguagem. Os sujeitos não só retomam a voz alheia, como também comentam, avaliam e respondem esse discurso, efetuando uma atividade (Bakhtin, 1993, 2000; Bakhtin/Voloshinov, 2004; Cunha, 1992, 2002).

As diferentes formas de se reportar à voz alheia dependem das dimensões do posicionamento discursivo do enunciador, do destinatário e da voz alheia. O ponto de vista não pode ser compreendido sem referência a essas relações dialógicas entre os discursos, isto é, ao modo como o discurso de outrem funciona e é contextualizado no discurso citante e ao modo como este avalia o discurso citado.

Tendo em vista que o discurso de outrem indica as tendências sociais de apreensão ativa do outro que se manifesta nas formas da língua (ver a respeito Bakhtin e Voloshinov, 2004, parte 3), apoiamo-nos nas categorias de análise acima indicadas para estudar como se constroem os posicionamentos discursivos de guias eleitorais de candidatos (e frentes ideológico-partidárias) concorrentes. Essa é a análise que empreenderemos no capítulo a seguir.