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O terceiro critério de análise da comparação diferencial é o dialogismo intertextual e interdiscursivo, e parte da compreensão de que o texto e o seu processo de escrita são dialógicos, ou seja, cada discurso é um diálogo com outros discursos acerca do mesmo tema. Tal como postula Todorov (1981 apud HEIDMANN, 2012, p. 9), a noção de dialogismo intertextual é crucial para que a obra seja concebida mais como “resposta” que como “imitação” ou “influência” de uma obra anterior.

Dessa forma, a noção de resposta intertextual permite que cada reescrita do mito seja dotada de efeitos de sentido sempre novos e diferentes que nada têm a dever ao mito em sua forma clássica. Assim, as pesquisas em literatura comparada ganham ao conceber cada escritura como reconfigurações de uma narrativa ou de uma personagem que adquirem características e peculiaridades próprias à sua situação enunciativa, tornando esses novos textos respostas, em uma relação dialógica entre esses autores. De acordo com Heidmann (2012, p. 10, tradução nossa),

[...] é muito mais que um indicador de filiação ou de fonte. No diálogo intertextual, um motivo ou tema não é somente retomado ou desenvolvido no sentido indicado pelo texto antigo que ele nada faria além de modular. O novo texto desloca, condensa ou inverte o mais frequente dos motivos e sequências referidas nas obras antigas, criando assim, em resposta aos textos antigos, significações diferentes e novas32.

Ao considerar essas escrituras como resposta e não como influência, propomos ir além da concepção de Gérard Genette (1982) de que essas narrativas clássicas funcionariam como hipotextos, ou seja, fontes nas quais todas as obras modernas que supostamente retomam o mesmo tema ou personagem se inspiram e, por sua vez, constroem sua

32 [le rapport intertextuel] est bien plus qu’um indicateur de filiation ou de source. Dans le dialogue

intertextuel, un motif ou thème n’est pas seulement repris ou développé dans le sens indiqué par le texte ancien qu’il ne ferait que moduler. Le nouveau texte déplace, condense ou inverse le plus souvent les motifs et séquences répérés dans les oeuvres anciennes, créant ainsi, en réponse aux textes anciens, des significations différentes et nouvelles.

significação. A partir de uma perspectiva dialógica, passamos a considerar essas novas obras como detentoras de uma significação própria, uma vez que elas são produto de uma cena enunciativa que em muito difere daquela pertencente ao texto clássico e que atende modelos discursivos também diferentes. Todos esses elementos solicitam que esses textos sejam tomados muito mais como resposta, situada social e culturalmente, do que como mera reprodução de uma narrativa única e capaz de atribuir sentido a qualquer obra ulterior que a ela se refira ainda que superficialmente.

Portanto, é preciso que reconheçamos, no texto moderno, a capacidade de criar um sentido próprio que, mesmo em diálogo com o texto clássico, faça isso não para construir novos significados a partir dele, mas para significar apesar dele. Nesse sentido, a personagem de Electra, como muitas outras personagens que integram o mito atrida, será tema de uma complexa rede dialógica que tem se estendido por séculos. O mito da família atrida, com a sucessão de assassinatos que o caracterizam, tem sido reconfigurado não apenas nas artes dramáticas gregas, nos textos de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, mas também, como vimos, em algumas peças do século XVII e XVIII e voltará com maior intensidade no século XX.

É preciso ressaltar, ainda, que ao longo desses séculos, as reconfigurações dessas personagens ocorrerão não apenas nas artes dramáticas como ainda nas artes plásticas e na música. As imagens a seguir ressaltam essa ocorrência. Trata-se de pinturas do mito de Clitemnestra durante a realização do assassinato de Agamêmnon. Cada pintor reconfigura com maior ou menor ênfase a célebre cena da morte do rei grego.

No caso da primeira pintura (Figura 1), essa reconfiguração é bastante evidente, pois apesar de todos os tragediógrafos gregos concordarem que houve participação de Clitemnestra no crime, nenhum deles indica a cena enunciativa retratada no quadro de Guérin. A cena, inserida em um contexto romântico, apesar da temática clássica, não esconde certo maniqueísmo que se vê no retrato de um rei, herói de guerra, em seu repouso, não por acaso no lado direito do quatro, totalmente iluminado e, no lado oposto, na penumbra, o olhar perverso do traidor, instigando a amante ao assassinato.

Figura 1 – Pierre-Narcisse Guérin (1774-1883). Pintor francês. Climtemnestra hesitante antes de atacar Agamêmnon dormindo, óleo sobre tela (1817). Localização atual: coleção particular. Departamento de Pinturas

do Louvre. Pinturas francesas, Ala Denon, 1º andar, sala 702.

Fonte: http://cartelfr.louvre.fr/cartelfr/visite?srv=car_not_frame&idNotice=22514&langue=fr

O pintor francês reconfigura a cena da morte colocando um Agamêmnon totalmente indefeso, dormindo ao fundo da tela. Ao fazê-lo, Guérin retarda o momento da morte do rei atrida que não será assassinado durante o banho, conforme indicado no mito clássico, mas enquanto dorme e se crê em segurança. O pintor reconfigura ainda a personagem de Clitemnestra, que é retratada hesitante, quase desistindo do crime, enquanto Egisto literalmente a empurra em direção ao marido.

Nas pinturas seguintes, tanto a personagem de Egisto quanto a de Clitemnestra serão mais uma vez reconfiguradas. O vaso grego, mostrado na Figura 2, traz Egisto como o assassino, enquanto Clitemnestra o auxilia. Ainda sem os recursos pictóricos que, a partir do figurativismo renascentista, contribuirão para um maior efeito trágico na representação das

cenas, a pintura do vaso retrata o episódio tal qual é descrito no mito, utilizando apenas as posições das personagens e os detalhes, como a arma empunhada por Egisto, para evidenciar que se trata da morte de Agamêmnon.

Figura 2 – Anônimo. Egisto mata Agamêmnon, pintura em jarro de vinho (470-465). Localização atual: Museu de Belas Artes de Boston, Galeria de obra gregas clássicas (215C).

Fonte: https://www.mfa.org/collections/ancient-world/tour/greek-mythology

Se, no vaso grego, a referência direta ao mito se evidencia, nas Figuras 3 e 4, as telas de John Collier se constroem sobre uma imagem teatral. Vê-se claramente a postura da atriz, nas duas imagens, dando a eloquência necessária ao ato que a personagem acabava de executar. A primeira representação se adequa ao contexto vitoriano no qual o pintor produzia seus quadros, incluindo nessa produção retratos da família real inglesa. Essa pintura de Clitemnestra de 1882 será sucedida, mais de trinta anos depois, finda a era vitoriana. Já na Figura 4 apresenta-se a mesma esposa assassina, porém, sem os pudores vitorianos. Collier se baseia, em cada quadro, em uma versão diferente do mito. Na Figura 3, Clitemnestra traz o machado mencionado por Electra em um diálogo com Orestes na peça de Eurípedes, Electra, sendo o tal instrumento associado aos relatos do mito nos quais o herói é assassinado no banho. Na segunda pintura de Collier (Figura 4), aparece uma Clitemnestra seminua,

mostrando os seios da mãe que dizia vingar, pelo assassinato, a morte de sua filha primogênita. Nesse caso, a arma utilizada é a espada, condizente com os relatos do mito nos quais Agamêmnon é trespassado pela espada, à mesa, durante um jantar.

Figura 3 – John Maler Collier (1850-1934). Pintor inglês. Climtemnestra, óleo sobre tela (1882). Localização atual: Guildhall Art Gallery, Londres

Figura 4 – John Maler Collier (1850-1934). Pintor inglês. Clitemnestra (1914). John Maler Collier, óleo sobre tela. Localização: Museu e Galeria de Arte de Worcester, Inglaterra.

Fonte: https://www.the-athenaeum.org/art/list.php?m=a&s=tu&aid=4304

Considerar todas essas obras, sejam elas textuais, sejam pictóricas, como constituintes de um diálogo no qual cada autor representa, a partir de sua perspectiva cultural,

social e histórica, compreensões de um mesmo mito também é considerar essas obras como uma troca de experiências acerca de um mesmo gênero ou de uma mesma história, que, apesar de já contada, muda constantemente, adquirindo ou suprimindo elementos de acordo com o lugar e as pessoas que ouvem, veem ou leem. Mas não apenas isso, reconhecer o processo dialógico de uma obra é perceber que, ao passo que ela responde a um ou a múltiplos discursos, ela também solicita respostas, diálogos posteriores, significados novos que atendam questões muitas vezes impossíveis em determinados contextos. Assim, cada obra, designada neste estudo como escritura – ou seja, cada novo texto que retoma uma história antiga e a reconfigura, de acordo com a perspectiva da comparação diferencial – estabelece um diálogo com outros textos, anteriores a ela aos quais ela responde, de acordo com a sua perspectiva cultural, histórica e social. Para fazê-lo, seus autores suprimem, evidenciam ou atribuem novos elementos, no que diz respeito à fábula, à personagem ou ainda às necessidades advindas das relações discursivas estabelecidas pelo próprio autor.

Nesse sentido, os indícios que guiarão nossa análise nem sempre integrarão o texto ou as personagens, eles estarão presentes também em elementos que integram o seu cotexto, tais como títulos, posfácios, dedicatórias e, sobretudo, enquadramento genérico. Essas mudanças devem ser, de acordo com a perspectiva da comparação diferencial, analisadas e consideradas como importantes indicadores e construtores das relações de sentido propostas por cada novo autor, que reforça, adapta ou questiona o gênero no qual insere seu texto.

É a partir dessa perspectiva que reunimos os textos de autores que tomaram o mito de Electra como ponto comum de suas obras. Considerando que cada um deles se serviu do mito clássico para tratar de questões próprias a sua sociedade e a seu tempo, cada autor partiu da narrativa clássica não para reafirmá-la mas para reconfigurá-la, ressignificá-la, fazê-la falar a outro público, tornando-a pertinente e particular.

Esses três elementos supramencionados – cena de enunciação, inscrição genérica e dialogismo textual – formam, pois, os alicerces discursivos para a abordagem diferencial das reescrituras, não só dos mitos clássicos, como se pode ver nos estudos em que Ute Heidmann e outros autores aplicam esses procedimentos metodológicos, mas ainda nas traduções, nas reescrituras de contos e em qualquer outra forma de diálogo, mesmo entre sistemas semióticos distintos, permitindo, assim, como passaremos a fazer nas próximas seções, uma leitura consequente de cada reescritura em seu próprio tempo e lugar, mas por um viés discursivo e não apenas semiótico, afirmando-se sempre na diferença e minorizando os efeitos de uma universalização do mito que se mostra sempre nociva para uma abordagem que não pretende estabelecer hierarquias.

3 ELECTRA E SUAS RECONFIGURAÇÕES CLÁSSICAS: ÉSQUILO, SÓFOCLES, EURÍPEDES E SÊNECA

As peças que analisaremos nesta seção foram selecionadas com base na personagem de Electra e na sua presença, às vezes mais, às vezes menos efetiva, no desenvolvimento da fábula atrida. Das cinco peças que integram essa seleção, quatro são gregas, quais sejam: Coéforas, de Ésquilo (2013); Electra, de Sófocles (2009); Electra e, ainda, Orestes de Eurípedes (2009). Em todas essas peças, o mito da princesa que, com o irmão, assassina a mãe, é retomado de formas diferentes. Nas três primeiras peças, toda a ação é concentrada no assassinato de Egisto e Clitemnestra, enquanto na última, os acontecimentos, cronologicamente, ocorrem em um momento posterior ao matricídio, pouco antes do episódio retratado por Ésquilo (2013) na peça Eumênides, no qual os irmãos receberão o perdão pelo crime cometido.

Além dos textos gregos, apresentamos ainda uma peça romana, Agamêmnon, de Sêneca (2009). Geralmente compreendido como “tradução” das peças gregas, o teatro romano trará mudanças importantes em suas peças, mudanças essas capazes de reconfigurar de forma significativa os motivos, as personagens e mesmo as representações dos textos gregos em uma sociedade cosmopolita como a Roma de Sêneca.

Esta seção analisa, portanto, o mito na sua forma clássica, mas também revela como, mesmo inserido na sociedade grega, cada tragediógrafo que representou o mito da princesa atrida reconfigurou também suas cenas de fala e dialogou com os demais alterando falas, criticando cenas ou, simplesmente, evidenciando na personagem as mudanças de perspectiva vividas pela sociedade grega.