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MODALIDADES DE INSCRIÇÃO GENÉRICA

No prefácio de sua Électre, Crébillon (2015, p. 4, tradução nossa), afirma: “Nosso teatro mantém muito dificilmente essa simplicidade tão cara aos antigos: não que ela não seja boa, mas atendo-se a ela, não estamos sempre certos em agradar”26. Refletir acerca da cena enunciativa de uma obra é também considerar o gênero ao qual esse texto pertence. Nesse processo, o gênero está muitas vezes indicado de forma evidente no texto ou em elementos que integram o seu cotexto. É também por meio dessa indicação de gênero que é informado aos leitores qual caminho seguir durante sua interpretação, ou seja, como aquele texto deve ser recebido, se ele responde ou não a características próprias do gênero textual ao qual ele se diz pertencer, e quais as implicações resultantes em face dessa adequação ou inadequação – por vezes deliberada – do texto no que diz respeito ao seu enquadramento genérico.

O segundo critério de análise estabelecido por Heidmann (2012) é o de modalidade de inscrição genérica. No centro das pesquisas em análise do discurso, a categoria de gênero – não como um elemento exterior à obra, mas como uma de suas condições – tem lugar de destaque, pois indica que as obras devem ser sempre relacionadas ao surgimento de modalidades específicas de enunciação, portanto, parte integrante de um discurso situado sócio-historicamente. Se compreendermos o texto como discurso, caminho pelo qual optamos neste estudo, como uma obra situada em um determinado contexto e produto de enunciador,

26 Notre théâtre soutient malaisément cette simplicité si chérie des anciens : non qu’elle ne soit bonne, mais

ou seja, de um autor que se posiciona e fala a partir de um lugar específico; não podemos ignorar que não só o texto mas ainda todos os elementos exteriores a ele contribuem para a construção do que podemos chamar de uma unidade da obra, obra essa que reflete, na medida em que questiona, a cultura e as práticas sociais de um público específico e que se constrói na medida em que reafirma ou refuta esse contrato prévio.

Nesse sentido, a comparação diferencial e discursiva de uma escritura não deve ser compreendida tão somente como um reflexo puro e simples de uma sociedade, pois essa obra, em consonância ou em desacordo com essa mesma sociedade, procura nada mais do que se afirmar como parte integrante de um universo que lhe atribui sentido. Sentido esse que não obedece a critérios puramente sociológicos ou linguísticos, mas a acordos preestabelecidos que englobam desde autores e leitores até professores, pesquisadores, editores etc. De acordo com Dominique Maingueneau,

A categoria do gênero do discurso é definida a partir de critérios situacionais; ela designa, na verdade, dispositivos de comunicação sócio-historicamente definidos e que são concebidos habitualmente com a ajuda das metáforas do “contrato”, do “ritual” ou do “jogo”. [...] uma modificação significativa de seu modo de existência material basta para transformá-los profundamente (MAINGUENEAU, 2006, p. 234).

Afirmar que os gêneros do discurso são definidos a partir de critérios sócio-históricos é também afirmar que sua constante mudança nada mais é do que o resultado das transformações da sociedade, da língua e da época à qual eles pertencem. Se cada sociedade, época ou língua possui suas próprias práticas discursivas, essas práticas devem ser partilhadas pelos sujeitos nela inseridos. Na tentativa de mostrar o quanto o enquadramento genérico torna-se relevante na construção de um texto literário e de como essa prática pode influenciar na interpretação de uma obra, Maingueneau (2006) traz o exemplo do romance Admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley. O autor chama a atenção para dois elementos paratextuais presentes no texto de Huxley, a saber: a epígrafe de N. Berdiaef: “As utopias parecem bem mais realizáveis do que se acreditava antigamente” (MAINGUENEAU, 2006, p. 243); e a inscrição genérica indicada por Huxley, o termo “a novel” [romance]. Para Maingueneau (2006), isso indica, ironicamente, que a obra do autor inglês não deve ser compreendida como um relato ficcional.

Ainda segundo Maingueneau (2006, p. 234), o enquadramento genérico indicado pelo autor pode ser ainda mais significativo “quando estabelece uma disparidade com aquilo que o texto parece mostrar”. Para tal, ele cita o exemplo de Alexander Puchkin que apresenta seu Eugênio Onegin (1833 apud MAINGUENEAU, 2006) como um romance, enquanto o

texto traz características próprias de um poema, sobretudo sua escrita em versos.

Nesse sentido, uma abordagem diferencial e discursiva dos textos literários – sobretudo daqueles que retomam mitos clássicos, em uma sociedade que possui práticas específicas de produção e recepção de gêneros textuais, ou seja, que mantém bem delineadas as características que constituem cada gênero textual – contribui de forma relevante para a reflexão acerca das diversas formas com que os enunciados se apropriam –inscrevem-se – desses gêneros, reconfigurando-os, na tentativa de criar outros gêneros mais adequados às suas necessidades.

[...] o conceito de “reconfiguração genérica” permite compreender a inscrição de enunciados nos sistemas de gêneros existentes como uma tentativa de flexibilizar as convenções genéricas em vigor e de criar novas convenções, mais bem adaptadas aos contextos socioculturais e discursivos que diferem de uma época e de uma esfera cultural e linguística à outra (HEIDMANN, 2012, p. 8, tradução nossa)27.

Trata-se de compreender cada obra não como pertencente a um único gênero, mas a partir de sua relação com outras obras, tanto no que diz respeito à produção quanto à recepção de cada um desses textos, para que possamos entender a relação que uma única obra pode manter com diversos gêneros. Perceber um texto a partir de sua relação com os demais, ou seja, não compreender essa obra como algo fixo, preso a um gênero específico, é também construir novas possibilidades de interpretação que não seriam possíveis caso questões como a de gênero fossem ignoradas.

A noção de gênero discursivo nos permite compreender a dinamicidade e a complexidade presentes em uma escritura de um texto antigo e como a adequação ou não do texto ao gênero indicado pelo seu autor reflete também na criação de novos significados acerca da obra que se analisa. Um desses exemplos é a peça Électre [Electra] (2015), de Prosper de Crébillon28. Tragédia em cinco atos e em versos, a peça de Crébillon inova, sobretudo pelas mudanças realizadas pelo autor acerca das razões que levaram Electra e Orestes ao assassínio da mãe. Assim como Racine, Crébillon (2015, p. 3-4) traz no seu prefácio as razões das mudanças por ele realizadas na fábula e declara a consciência que tinha ao fazê-lo. Afirmando não se tratar de uma representação baseada no modelo de Sófocles ou

27 Le concept de «reconfiguration génerique» permet de comprendre l’inscription d’énoncés dans des systèmes

de genres existants comme une tentative d’infléchir les conventions génériques en vigueur et de créer de nouvelles conventions, mieux adaptées aux contextes socioculturels et discursifs qui diffèrent d’une époque et d’une sphère culturelle et linguistique à l’autre.

28 Poeta trágico francês, Crébillon é o único autor que retomará o mito de Electra em todo o século XVIII.

de Eurípedes: “não é a tragédia de Sófocles nem a de Eurípedes a que mostro, é a minha”29. Com isso, Crébillon abre caminho para que o seu espectador espere mudanças no decorrer da representação, uma vez que o autor abandona o mito clássico e decide representar a sua Electra. E assim o faz. Crébillon acrescenta personagens, altera os motivos que alimentam a ira da personagem em sua vingança contra a mãe e o padrasto, além de trazer ao palco cenas de violência e horror, características que marcariam o estilo do autor.

Na peça de Crébillon (2015), com a morte de Agamêmnon e a fuga de Orestes, Electra não consegue vingar a morte do pai por si só. Cabe-lhe, portanto, duas opções: morrer ou casar-se com Itys, filho de Egisto, por quem é apaixonada e também correspondida. Orestes chega a Micenas fingindo ser Tideu, um guerreiro que lutara a favor de Egisto em Corinto e vencera a batalha contra os reis Corinto e Atenas e agora retorna a Micenas para visitar Egisto. Chegando a Micenas, Orestes se apaixona por Ifianassa, filha de Egisto, que também lhe corresponde. Egisto concede a mão de Ifianassa a Tideu – codinome de Orestes – mas lhe pede em troca a cabeça do filho de Agamêmnon, que Tideu, rapidamente, relata ter morrido durante uma viagem de navio com destino a Argos.

Quando Electra encontra Tideu, este lhe revela ser filho de Palamedes e a reconhece como sua irmã, mas só irá ajudá-la na sua vingança contra Egisto se ela prometer poupar Ifianassa. A preocupação de Tideu com Electra faz com que Ifianassa desconfie do amor que ele lhe dedica. Palamedes chega a Micenas com o objetivo de vingar Agamêmnon e encontra Tideu que confessa não ter vingado o rei por estar apaixonado por sua filha. Então, Palamedes revela a Tideu que ele é, de fato, o filho de Agamêmnon, Orestes, e que lhe deu o nome de Tideu para que ele sobrevivesse a salvo das tentativas de Egisto de matá-lo. Consciente de sua identidade real, Orestes se declara pronto para vingar Agamêmnon mesmo que para isso magoe Ifianassa. Orestes confessa, então, sua real identidade a Electra. Palamedes organiza, dessa forma, a morte de Egisto e decide matá-lo durante a cerimônia de casamento de Electra e Itys. Mesmo a contragosto, Electra cede aos planos de Palamedes, que reforça a necessidade de que Itys seja assassinado com o pai.

No último ato da peça, Palamedes assassina Egisto e Clitemnestra, quando esta tenta salvar o marido. Itys é poupado da morte, uma vez que Electra não permite que ele siga até o altar para a realização do seu casamento. Desse modo, o que Itys interpretará como desdém será, na verdade, uma grande prova de amor por parte da personagem. Quanto a Ifianassa, reconhecendo Orestes como filho de Agamêmnon, ela abandona o palácio em prantos. A peça

acaba com a aparição dos espíritos de Egisto e de Clitemnestra e a condenação de Orestes pelo matricídio.

Ao negar a representação antiga, Crébillon ainda critica essa prática comum ao século XVII e que fez de Racine, como vimos, um dos seus maiores representantes. Segundo aquele, o modelo criado por Aristóteles e retomado pelo classicismo francês não assegura o sucesso de uma representação para o público. Quanto aos motivos que engendram o matricídio, Crébillon revela a razão pela qual modificou as razões sustentadas por Electra para o assassínio da mãe: “[...] é o amor de Electra; é a audácia que eu tive de lhe dar sentimentos que Sófocles evitou. É verdade que isso não era comum no teatro grego de sua época, mas se ele tivesse vivido no nosso tempo, ele talvez tivesse feito como eu” (CRÉBILLON, 2015, p. 4, tradução nossa)30.

Assim como Racine que, mesmo fazendo um teatro preocupado em “imitar” os textos antigos, preocupou-se em encontrar uma forma crível de salvar sua Ifigênia, dada a impossibilidade por parte dos espectadores franceses de acreditarem na transformação da princesa em corça, fazendo com que o tragediógrafo buscasse em Pausânias uma justificativa verossímil para a salvação da princesa. Crébillon também demonstra uma preocupação em se aproximar dos interesses de seus espectadores, embora o faça em outra esfera. Para Crébillon, o que importa é que suas personagens tenham contornos humanos e que assim possam se aproximar mais do público. Para tal, Crébillon desvia o motivo do matricídio de Clitemnestra, de forma que tudo será agora uma questão de paixões e impedimentos que impossibilitam sua concretização. É essa a afirmação feita pelo dramaturgo ainda no prefácio da sua peça: “é menos a morte de seu pai que ela vinga, que suas próprias infelicidades”31

(CRÉBILLON, 2015, p. 5, tradução nossa).

Mesmo considerando certa indiferença revelada pela crítica em relação à obra de Crébillon, não podemos ignorar que, se não chega a ser um marco na história do teatro, ela contribui como uma amostra importante das reinterpretações possíveis de uma narrativa mítica, no sentido de que cada autor, tal como coloca Crébillon, pode se apropriar de uma figura mítica e subverter sua história adaptando-a a contextos sociais e históricos particulares. É na peça de Crébillon (2015) que vemos, pela primeira vez, um rompimento da fábula com as indicações e condições impostas pela crítica para se representar uma peça trágica. A decisão de dar sentimentos às suas personagens, podemos afirmar, aproxima-os do público

30 c’est l’amour d’Électre ; c’est l’audace que j’ai eue de lui donner des sentiments que Sophocle s’est bien

gardé de lui donner. Il est vrai qu’ils n’étaient point en usage sur la scène de son temps ; que, s’il eût vécu du nôtre, il eût peut-être fait comme moi.

e faz com que o horror por elas experimentado seja evidenciado. O público do século XVIII, efervescente por mudanças de vida e de comportamento e que fará da razão o motor de suas ações é, de certa forma, antecipado pelo teatro de Crébillon, que nega veementemente a necessidade de se representar os clássicos sob moldes que já não correspondem aos anseios de seus espectadores.