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No primeiro capítulo da obra, é possível perceber que o medo será um companheiro constante do menino: “Medo. Foi o medo que me orientou nos primeiros anos, pavor” (I, p. 12). Pela reiteração, pode-se observar que há um reforço relacionado a esse sentimento que, por sua vez, liga-se à educação repressora, que cerceia a criança e a torna temerosa diante de qualquer situação. Outras referências a esse sentimento podem ser lidas durante a narrativa:

Débil e ignorante, incapaz de conversa ou defesa, fui encolher-me num canto, para lá dos caixões verdes. Se o pavor não me segurasse, tentaria escapulir-me: pela porta da frente chegaria ao açude, pela do corredor acharia o pé de turco. Devo ter pensado nisso, imóvel atrás dos caixões. (I, p. 29)

Essa educação, marcada pelo poder patriarcal, torna o menino impotente a ponto de impedi-lo de tomar uma atitude que o protegesse ou que o levasse para longe dali. O pavor o retém e isso permite que ele seja surrado pelo pai. Além disso, o sentimento de medo causa sensações, inclusive físicas, que o acompanham

durante toda a vida. O narrador se recorda da situação e a reproduz com palavras que tornam o pavor ainda mais concreto:

Não consigo reproduzir toda a cena. Juntando vagas lembranças dela a fatos que se deram depois, imagino os berros de meu pai, a zanga terrível, a minha tremura infeliz. Provavelmente fui sacudido. O assombro gelava-me o sangue, escancarava-me os olhos. Onde estava o cinturão? Impossível responder. Ainda que tivesse escondido o infame objeto, emudeceria, tão apavorado me achava. Situações deste gênero constituíram as maiores torturas da minha infância e as consequências delas me acompanharam. (grifos nossos) (I, p. 29-30)

O pavor firma-se novamente em “Vida Nova”:

Esqueci pouco a pouco a aventura e apaguei-me, reassumi as proporções ordinárias. Ficou-me, entretanto um resto de pavor, que se confundiu com os receios domésticos. Arrepios súbitos, cabelos eriçados, tonturas, se alguém me falava. Nas trevas das noites compridas consegui afugentar perigos enrolando-me, deixando apenas o rosto descoberto. (I, p. 50-54)

O avô materno também contribui para que esse sentimento seja reiterado. O pavor, a partir da figura do avô, é construído por meio de oposições. Vejamos: a cor branca da barba do avô representava o susto e o medo para o menino. A cor azul dos olhos do avô torna-se ameaçadora. A própria voz é ouvida como sinal de tempestade, pois é comparada a um trovão que assusta e traz a dificuldade de entendimento, que envolve.

[...] Meu avô era exigente. Detinha-se numa desgraçada sílaba, forçava-me a repeti-la, e isso me perturbava. As longas barbas brancas varriam-me a cara assustada; os olhos azuis, repletos de ameaças, feriam-me; a voz engrossava, rolava, entrava-me nos ouvidos como um trovão fanhoso e encatarroado. Os meus conhecimentos debandavam; as linhas misturavam-se, fugiam; no papel e dentro de mim grandes manchas alargavam-se. Nessa deplorável situação, eu embrulhava estupidamente a leitura, balbuciava respostas insensatas. O grito ribombava, enchia-me de pavor [...] (I, p. 113)

Além dos opostos, a gradação se faz presente com o objetivo de marcar o crescente medo do menino – “engrossava”, “rolava”, “entrava-me nos ouvidos” – que

se materializará na dificuldade da escrita e da compreensão da letra. A comparação com o trovão e o grito que ribombava completam a atmosfera de terror que toma conta do menino.

As dúvidas relacionadas às palavras novas que ouvia também representam castigos. Em O Inferno, por exemplo, o menino questiona a mãe sobre a palavra “inferno”, pois ele quer saber se alguém possui provas de que aquele lugar temido e horroroso existe de fato. Pergunta se os padres estiveram lá, se a mãe já havia visitado o tal lugar e se havia pessoas que pudessem falar sobre a existência do inferno. Contudo, ele consegue apenas mais algumas chineladas, pois a mãe não aceitou ser questionada sobre um assunto tão sério – e para o qual, com certeza, não tinha resposta convincente. A sinceridade da criança também não era recompensada: “Mas algumas vezes fui sincero, idiotamente. E vieram-me chineladas e outros castigos oportunos.”. (I, p. 69)

Ademais, não eram apenas familiares e professores que se impunham pelo medo. Chefes políticos e seus parentes também personificavam esse sentimento. A adulação a essas personagens era coroada com privilégios e sossego; a não aceitação às regras impostas por eles poderia representar, até mesmo, a morte. Mais uma vez, o narrador de Infância proporciona, por meio de sua memória, um retrato da época devidamente escolhido para referenciar as relações sociais e políticas brasileiras do início do século XX naquela região. A seleção vocabular – “dispunha das pessoas”, “manipulava as autoridades”, “adulava”, “noticiavam horrores”, “ninguém se atrevia a assinar uma denúncia” – denota a importância associada ao temor que certas personagens inspiravam na região.

É uma das recordações mais desagradáveis que me ficaram: sujeito magro, de olho duro, aspecto tenebroso. [...]

Cresci ouvindo as piores referências a Fernando. Se fosse tão mau como afirmavam, não existia patife igual. Era parente do chefe político, e um chefe político da roça naquele tempo mandava mais que um soba, dispunha das pessoas e manipulava as autoridades, bonecos miseráveis. Vivíamos num grande cercado de engenho, e só tinha sossego quem adulava o senhor. Os jornais da capital noticiavam horrores, mas ninguém se atrevia a assinar uma denúncia. Qualquer indiscrição podia originar incêndios, bordoadas, prisões ou mortes. [...]

Os homens remediados, que o coronel afligia em horas de rabugice, não pagavam imposto ou pagavam muito pouco. E Fernando, parente próximo do governo e fiscal da Intendência, atenazava a oposição, esfolava matutos nas feiras, colhia virgindades. (I, p. 183- 185).

Fica evidente, diante dos exemplos citados, que o autoritarismo era reinante e que deslizes ou não cumprimento de ordens significavam castigos, torturas ou, até mesmo, a morte. As personagens subjugadas não possuíam voz e ninguém lhes socorreria. As mazelas sociais existiam e eram marcadas pela voz do mais forte.

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