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Sensibilidade poética em Infância

Quando se analisam manifestações artísticas, percebe-se que a arte busca aproximações com a vida e, desta forma, promove sensações de prazer, desconforto, medo, tensão, alívio, angústia, enfim, sentimentos inerentes ao ser humano. A respeito do assunto, Grassi (1978, p. 41) comenta:

A arte dissolve a realidade empírica. Através de manifestações sensoriais, de “sinais” de todos os tipos (cores, sons, formas, movimentos etc) ela se esforça por tornar significados “possíveis, visíveis ou audíveis. [...] É função da arte tornar visível e atestar a condição instável do homem. [...] Os efeitos intoleráveis do tédio e da indiferença provam (como Baudelaire demonstra) que o homem nunca pode escapar ao desafio da tensão, pois a intolerabilidade do tédio prova que a tensão não cede, mas, ao contrário, se intensifica a ponto de tornar-se insuportável, se o homem não responder ao seu desafio. A arte representa uma tentativa primeira de corresponder a essas exigências através do poder da imaginação fazendo projetos “possíveis” de molduras-fábulas.

Não raramente, as pessoas buscam na arte a cura para sua dor ou desconforto diante de uma situação real. Há sempre uma expectativa favorável ao herói e um desejo de que o vilão seja punido. Isso acontece porque o ser humano – dotado de razão e sensibilidade – precisa estabelecer equilíbrio entre situações opostas para sentir uma situação de bem-estar.

Assim, a Literatura – como forma artística – busca elementos para fornecer ao leitor a possibilidade de alargar seu ponto de vista e vivenciar, na ficção, suas experiências mais díspares. A construção poética em Ramos permite um experimento de linguagem diverso do plano simplesmente racional. Sobre isso, é importante destacar Grassi (1978, p. 192):

O tornar visível o que há de comum entre domínios isolados é a essência da metáfora; ela efetua a “visão” de algo até então oculto. Por seu intermédio, é “mostrada” ao leitor ou espectador, uma intersecção de domínios diferentes que, por meios racionais, não poderia ser deduzida.

Em Infância, o narrador constrói um painel da sociedade patriarcal decadente em função da conjuntura política e social da época. Ele coloca em foco as relações familiares, a religiosidade, a estrutura da escola, o preconceito, a injustiça. Assim, envolve quem o lê em seu mundo infantil, tal como os insetos ficavam presos nas teias relatadas. A obra atrai e prende o leitor pela linguagem e intensidade com que as situações são narradas. Além disso, a narrativa permite o contato com o subterrâneo da alma infantil que sofre os castigos injustos e situações angustiantes.

Graciliano Ramos, pela construção poética, sugere uma reflexão sobre a realidade revelada. O narrador de Infância, por exemplo, interliga a paisagem inóspita com o interior da personagem e, em seu texto, nada acontece por acaso. Podem-se encontrar em Octavio Paz (1984, p. 86) elementos que confirmam a sagacidade dos escritos do mestre nordestino:

A concepção da poesia como magia implica uma estética ativa; quero dizer, a arte deixa de ser exclusivamente representação e contemplação: é também intervenção sobre a realidade. Se a arte é um espelho do mundo, esse espelho é mágico: transforma-o.

Com o auxílio da arte, o narrador mostra que a solidão é a grande companheira das personagens desta narrativa. Elas se percebem impotentes em razão da realidade circundante e, por isso, são levadas a agir de acordo com o ambiente em que vivem. A relação com o outro torna-se complexa e marcada pelo poder e pela submissão. Coelho (1978, p. 62) afirma:

[...] É, pois, essa espantosa descoberta do Outro, do Próximo, que vai moldando, emocionando, esmagando as suas personagens, passo a passo, numa exasperada e opressiva luta desigual.

É possível perceber essa luta desigual quando o protagonista, diante de um pai terrivelmente mal humorado, não encontra forças para reagir a uma surra iminente. O resultado é o isolamento da personagem. A afirmação pode ser fundamentada em Coelho (1978, p. 63):

E isso porque, ao analisarmos suas personagens, principais ou secundárias, nos damos conta de que são todas elas estruturadas a

partir de uma mesma constante: a Solidão interior que brota quase sempre da rejeição afetiva, da infância sem amor e que leva à luta pela própria afirmação dentro do meio circundante.

A narrativa apresenta o olhar infantil que, de certa forma, condena, sem piedade, a atitude dos adultos. A respeito do assunto, Silveira (1982, p. 165) afirma:

Infância é um livro sério. Tão sério e até emocionante, que Olívio

Montenegro escreve que as figuras que ele, reencarnando-se na antiga criança, nos aponta a mesma irreverência, se não com a mesma impiedade de que só as crianças sabem o malvado segredo – dos pais, dos irmãos, dos companheiros, dos amigos mais velhos da família – são retratadas com uma imparcialidade e uma força de mestre em todos os ridículos da sua vaidade e em todas as brutalidades do seu egoísmo.

Ademais, a leitura da obra permite perceber que, a partir da força poética da linguagem, o medo, as tristezas, os sonhos e as esperanças da criança fluem e suscitam reflexão. Além disso, pode-se perceber na obra a polifonia de vozes que compõem o grupo familiar, social e educacional do protagonista e lhe fornecem elementos para seu desenvolvimento perceptivo frente às complexidades da vida. Os episódios vivenciados mostram a riqueza de crenças, costumes, conhecimentos diversos e, principalmente, a formação da moral e da religiosidade. Além disso, o contato com o outro ajuda a formação de sua personalidade e de seu modo de sentir as emoções.

Se por um lado, a obra fala da infância dolorosa do narrador, por outro a forma como os episódios são narrados não permite que se constitua um sentimento de pena ante a criança que sofre. Ao contrário, a elaboração literária age como forma de avaliação social, pois possibilita conhecer e reconhecer aspectos da sociedade e do ser humano, no qual não se pode confiar. A situação é agravada pelo fato de o autor da surra que causou esse sentimento na criança ser o próprio pai – teórica e socialmente, aquele que deveria tratá-la com afeto. Faria (1978, p. 176) confirma a ideia:

[...] os homens, reflexos do homem – desse homem no qual o menino jamais pôde acreditar e confiar, pois foi desde cedo que o

conheceu em todas as suas características de intolerância e de desamor, falsidade e hipocrisia [...].

Para confirmar essa tese, Mattalia (1996, p. 10) declara:

A obra de Graciliano Ramos, um dos grandes escritores deste século, complexa, muito elaborada esteticamente, é considerada, desde sua publicação, leitura indispensável para o conhecimento da plural cultura brasileira. As malhas densamente preparadas de sua prosa tematizam grandes problemas humanos, socioculturais brasileiros.

Por fim, recorre-se novamente a Coelho (1978, p. 182) para reafirmar a importância da criação poética do mestre alagoano:

Não poderia deixar de ser um caminho áspero, bem árduo, dos mais penosos, durante o qual o gotejar de sangue do menino, que às próprias expensas aprende a lição da vida, e o do escritor, que tenta reproduzi-la com o máximo de honestidade e rigor literário, formam um tecido dos mais dolorosos que conheço – e, também, dos mais complexos, intrincados, cheios de idas e vindas, o passado invadindo constantemente o presente da criação artística. A ficção dando cor e fazendo sangrar ainda mais as recordações da meninice, Angústia e

Infância se confundindo, se interpenetrando, se completando,

emergindo com um grito, desesperado e alucinante, de criança abandonada em plena hostilidade do mundo.

Assim, a linguagem poética em Infância aponta situações vivenciadas pela criança e constrói a interação entre o presente e o passado. Por meio de metáforas, animalizações e metonímias, o narrador descreve a ação da aridez climática e da conjuntura político-social na vida das personagens, bem como a falta de piedade da criança ao descrevê-las. Se no passado o menino sentiu a repressão vinda daqueles que detinham o poder, o narrador, no presente, denuncia, por meio de palavras revestidas de poeticidade, todas as personagens que não lhe permitiram viver uma infância repleta de aprendizados, brincadeiras e travessuras.

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