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Diferentes versões em pesquisa psicanalítica

2. CONSTITUIÇÃO DO CAMPO PSICANALÍTICO: ENTRE A REJEIÇÃO E A BENÉVOLA EXPECTATIVA DA CIÊNCIA

2.4 PERCURSOS DA PESQUISA EM PSICANÁLISE

2.4.1 Diferentes versões em pesquisa psicanalítica

Antes de expormos os diferentes pontos de vista sobre pesquisa dentro do campo psicanalítico, é interessante ressaltar algumas divisões que se estabeleceram e que serão importantes para compreender em seguida o material da nossa pesquisa. Trata-se da famosa distinção entre pesquisas em psicanálise e pesquisas sobre psicanálise, sendo a primeira uma pesquisa conduzida a partir de material clínico e do método analítico e a segunda uma pesquisa sobre questões que interessam à psicanálise, não necessariamente conduzida por analista, articulando a psicanálise com outros campos, com diferentes recursos metodológicos que podem ser combinados aos conceitos da psicanálise como análise de discurso, estudo de caso, observação, entre outros. Esta divisão remonta ao texto sobre o ensino da psicanálise da universidade, de 1919 em que, ao discutir a presença desse ensino, Freud distingue o aprender sobre e com a psicanálise. Também está relacionada ao que Lacan diz na Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da escola (1967/2003) no que concerne à divisão da psicanálise em extensão e em intensão, sendo a primeira aplicações da psicanálise e a segunda derivada da clínica e relacionada à formação do analista, e ambas indissociáveis. Diz Lacan

eu me apoiarei nos dois momentos da junção do que chamarei, neste arrazoado, respectivamente, de psicanálise em extensão, ou seja, tudo o que resume a função de nossa Escola como presentificadora da psicanálise no mundo, e psicanálise em intensão, ou seja, a didática, como não fazendo mais do que preparar operadores para ela (p.251).

Para Lacan não há, pois, separação entre os dois termos, mas junção. Mais que junção, há orgânica continuidade: “de conformidade com a topologia do plano projetivo, é no próprio horizonte da psicanálise em extensão que se ata o círculo interior que traçamos como hiância da psicanálise em intensão” (p.261).

Anteriormente, no ato de fundação de sua escola, ele já havia criado três seções que englobavam teoria, prática clínica e relação com ciências afins (Lacan, 1964/2003). Como veremos em seguida, diversos psicanalistas se apropriam dessas divisões para discutir a pesquisa em psicanálise.

Alguns autores defendem a aplicação de procedimentos tradicionais como análise de conteúdo ou análise do discurso para pesquisas psicanalíticas (Guerra, 2001, Santos & Zaslavsky, 2007). Para Sampaio (2006), a pesquisa em psicanálise é uma pesquisa de caráter qualitativo, o que não significa ausência de dados estatísticos produzidos por outras disciplinas. Rosa (2004) ao falar sobre pesquisas psicanalíticas de fenômenos sociais e políticos defende que se pode trabalhar, mediante escuta psicanalítica, com depoimentos e entrevistas, uma vez que se diferencie a análise e o dispositivo psicanalítico da escuta. Mezan (1993) afirma que a pesquisa psicanalítica não recorre aos procedimentos das ciências empíricas, tais como medição e controle, dividindo-se em duas vertentes: pesquisa com material clínico, na qual a teoria seria uma elaboração da escuta clínica, e a pesquisa sobre psicanálise, seus conceitos e ideias, num plano epistemológico ou histórico- conceitual.

Recorremos novamente a Mezan (2006) quando lista assuntos sobre os quais podem ser realizadas pesquisas em psicanálise: a) predominantemente teóricas, focalizando em especial questões metapsicológicas; b) questões de psicopatologia; c) sobre fatores operantes no processo psicanalítico; d) sobre a atividade terapêutica em âmbito institucional; e) sobre as interfaces psique/sociedade; f) sobre as interfaces arte/cultura/psique; g) sobre autores ou momentos importantes na história da psicanálise. Sob a variedade de temas, existe algo em comum, a saber, todos os tipos listados apresentam uma questão central e a investigam com conceitos da psicanálise. A pesquisa está articulada com a dimensão inconsciente, não sendo regida por pressuposições ou pelo controle da experiência. Portanto, a

vertente clínica está presente em maior ou menor escala nos diversos tipos de pesquisa em psicanálise.

Não basta falar de Freud, pois uma investigação pode ser histórica e conceitual, pode falar sobre a psicanálise ou seus temas, sem constituir pesquisa psicanalítica. Sauret (2003) destaca diferentes tipos de pesquisa em psicanálise: a) a que visa responder a questões colocadas pela psicanálise; b) a que busca responder a questões colocadas à psicanálise; c) a que constrói uma teoria a partir da doutrina e da experiência; d) a que visa ampliar o campo da experiência analítica; e) a que se orienta pelo saber e, eventualmente, pela ética da psicanálise.

Existem aqueles que defendem a pesquisa da clínica como legítima representante da psicanálise, como Nogueira (2004) quando diz

não posso pensar em pesquisa psicanalítica a não ser na relação analítica. Se tomarmos a teoria psicanalítica e tentarmos aplicá-la fora da relação analítica, fora do tratamento analítico, não estaremos fazendo psicanálise, mas sim pesquisa experimental. Então é como se estivéssemos investigando uma atividade humana, um comportamento humano, através de uma teoria psicológica (p.87).

Já para Naffah Neto (2006), existiria a pesquisa-escuta, pesquisa clínica por excelência, a pesquisa-investigação voltada para problemas teóricos e/ou metodológicos psicanalíticos e uma terceira que teria a psicanálise como tema, mas não seria psicanalítica, strito senso. Outros, como Rinaldi e Alberti (2009), acreditam que toda pesquisa em psicanálise é clínica, mas no sentido de clínica ampliada, inclusive a metapsicologia, pois é voltada para o sujeito. As autoras articulam o trabalho na universidade ao da escola de psicanálise, pois cada uma tem relação com a escola, com a causa freudiana que as atravessa.

Já para Lo Bianco (2003), o inconsciente, objeto da psicanálise, é apreendido por meio da práxis. Sua especificidade está no fato de que, ao tempo em que é elaborado, o objeto constitui-se na formalização da investigação. O pesquisador não é uma variável a ser controlada, estando diretamente implicado na emergência do material de pesquisa, posto que a neutralidade, além de ser impossível, é indesejável.

Poli (2008) afirma que, desde as primeiras obras de Freud, podemos encontrar as condições para pesquisa em psicanálise, ou seja, a construção da questão e a

produção do objeto a ser estudado. Isto porque, na psicanálise, busca-se a produção de um saber singular e o método utilizado para este fim é o que vai dando os contornos do objeto. Portanto, o objeto de pesquisa provém da clínica, traz a marca do desejo do sujeito do inconsciente e da relação transferencial que se estende ao trabalho com outros. A autora utiliza a metáfora da rede e do anzol, para demonstrar que não é o fenômeno que define o modo de pesquisar, mas a rede (significante) ou o anzol (desejo) que se joga para apanhá-lo e quando ele vem, confunde-se com ela ou traz o anzol.

A psicanálise é, ao mesmo tempo, teoria, técnica e método de investigação; portanto, as características que a definem também podem definir seu método de pesquisa. O caso é a estratégia metodológica por excelência da pesquisa em psicanálise. Na escrita de um caso, o pesquisador é autor que se engaja na transmissão, visto que, para a psicanálise, não há escrita sem sujeito. Escrever a psicanálise faz avançar a pesquisa na medida em que é necessário mostrar o objeto analítico nas suas singularidades e, ao mesmo tempo, responder às exigências da generalização teórica (Angelergues, 2010, Roman, 2014).

Para alguns autores (Lo Bianco, 2003, Zanneti & Kupfer, 2006, Castro, 2010), desde os primórdios da psicanálise, a direção da pesquisa psicanalítica é dada pela experiência clínica; portanto, o relato do caso e seus desdobramentos são instrumentais na construção do método e da pesquisa em psicanálise. O caso não é usado para confirmar a teoria ou para demonstrar e exemplificar. Trata-se de um conjunto teórico que sustenta relações com a clínica e o que emerge dela. Por meio dessas análises, obtém-se a renovação da teoria. O caso interroga o pesquisador e essa singularidade não diz respeito somente ao analisando e suas questões, mas à própria relação com o analista. A pesquisa não se reduz à observação, tampouco ao registro para posterior análise, mas diz respeito a uma elaboração do trabalho na clínica. Mesmo pesquisas teóricas estariam relacionadas com tal dimensão.

Lo Bianco (2003) afirma ainda que investigações teóricas são necessárias para revisão dos conceitos e, consequentemente, para a prática clínica. Seu exame permite conhecer elaborações já realizadas, mas que não se esgotam. O retorno aos textos fundadores devem ser tomados num movimento de vai-e-vem, das questões clínicas para a teoria e vice-versa. Além disso, o pesquisador escreve a

partir de sua experiência com a psicanálise, seja sobre sua análise pessoal e das análises que conduz. Esses aspectos colocam não só a clínica, mas também a cultura como lócus importante de incidência da interrogação psicanalítica.

Em relação a pesquisas empíricas e quantitativas em psicanálise, encontramos posicionamentos de psicanalistas como Green (2007) que diz que a pesquisa quantitativa não é indicada para a investigação do inconsciente, o que não significa que ela deva ser abandonada, podendo ocupar uma posição periférica. Já Widlöcher (2007b) diz que a pesquisa clínica não deve se opor à pesquisa empírica, servindo esta para abordar explicações de questões psicanalíticas, confrontando-as com explicações de outras disciplinas. Tal característica, no entanto, não a reduz ao quantitativo. Essas pesquisas se endereçam ao meio externo e propiciam a prática da interdisciplinaridade. Por outro lado, Eizirik (2001) pergunta se toda pesquisa psicanalítica precisa ter procedimentos qualitativos ou se podem existir outros métodos, tais como estudos empíricos e pesquisas por indicadores. O mesmo autor defende pesquisas sobre a eficácia da clínica, utilizando procedimentos estatísticos (Jung, Nunes & Eizirik, 2007).

Em outra abordagem, Roussilon (2007), ao pensar no contexto atual de mensuração e avaliação, propõe que a psicanálise seja avaliada por critérios inerentes ao trabalho analítico como tipo e organização das defesas, flexibilidade do funcionamento psíquico etc. Ele defende que a pesquisa clínica pode refletir os mais diversos dispositivos psicanalíticos que não são somente o divã e nem por isso deixam de ser clínica psicanalítica. Já Reid (1991) defende a importância de pesquisas sobre os resultados e não somente estudos sobre o processo, dando ênfase à divulgação dos trabalhos empíricos ou experimentais em psicanálise.

Destacamos algumas pesquisas no meio psicanalítico que já fazem interlocuções com outros métodos e formas de avaliação como a pesquisa Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil (IRDI) em que um instrumento com 31 indicadores clínicos de risco do desenvolvimento foi elaborado a partir da psicanálise e aplicado em 727 crianças em um estudo longitudinal (Kupfer et al, 2010). Destacamos também a pesquisa Pre-Aut na França e em diversos países, entre eles o Brasil, para diagnóstico precoce do risco de autismo em bebês. Alguns

testes e avaliações, baseados na teoria psicanalítica, levam a avanços na clínica do autismo, inclusive estabelecendo diálogos com áreas como a neurociências.

Green (2007) defende um pluralismo de concepções de ciências, na psicanálise, com diferentes tipos de pesquisa (para ele seriam: clínica, conceitual e empírica) o que nos faz pensar em termos de um complementarismo. O que seria importante numa pesquisa psicanalítica é o modo de pensar psicanalítico que vem da experiência do analista/pesquisador com a psicanálise.

O êxito das pesquisas citadas, desenvolvidas por analistas reconhecidos no campo, mostram ser possível aproximações da psicanálise com outros métodos sem perder suas características. Frente às críticas tão frequentes de submissão aos ideais da ciência, respondemos que esta seria mais uma forma de se apresentar, de fazer pesquisa, de conquistar espaço, frente a contestações, sobretudo aquelas advindas das ciências cognitivas. Articulações com outros saberes não são novidade para a psicanálise, considerando sua conformação interdisciplinar. Diálogos são importantes, se não imprescindíveis, ao pensarmos na constituição, manutenção e alargamento do campo psicanalítico universitário.