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Uma relação privilegiada com a psicologia

3. PSICANÁLISE E UNIVERSIDADE: UMA EMPREITADA FREUDIANA

3.3 A PSICANÁLISE NA UNIVERSIDADE BRASILEIRA

3.3.1 Uma relação privilegiada com a psicologia

Desde 1934, a psicologia passa a ser oferecida como disciplina obrigatória nos cursos de nível superior no Brasil, mas somente a partir da década de 1950 os cursos de graduação começam a surgir com sua posterior regulação, bem como a da profissão de psicólogo em 1962. Figueiredo (2008) destaca que a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) foi pioneira na formação de psicólogos, embasada no suporte teórico da psicanálise, nos anos 1960. O curso de psicologia é criado nessa instituição em 1956 tendo como professores vários psicanalistas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e do Rio de Janeiro. Antes ainda, em 1954, é criado um curso de Especialização em Psicologia Clínica na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Posteriormente, surge outra formação na Faculdade de Filosofia Sedes Sapientiae, coordenada por Madre Cristina (Oliveira, 2005).

O exercício da psicanálise era permitido oficialmente somente a médicos no país. No entanto, sabemos, como já descrito acima, que no estado de São Paulo, a psicanálise desde seus primórdios era praticada por não-médicos. É conhecido o texto de Freud sobre análise leiga (1926) escrito por ocasião de um processo movido contra Theodor Reik, psicanalista membro da Sociedade Psicanalítica de Viena, por exercício ilegal da profissão. Na obra, Freud defende que o que se ensina na Faculdade de Medicina não é conteúdo necessário para a formação do analista. Ao longo de todo o texto ele mostra que formação psicanalítica não se confunde com formação médica. Enfatiza a importância crucial da análise pessoal e

diz ainda que muitos médicos fazem uso errado da psicanálise, devendo esta ter mais medo dos médicos que a praticam de uma maneira incorreta do que dos não- médicos: “aventuro-me a afirmar que – não somente nos países europeus – os médicos formam um contingente preponderante de charlatões na análise. Eles com grande freqüência praticam o tratamento analítico sem o terem aprendido e sem compreendê-lo” (Freud, 1926/1996, p.222). Ainda nas palavras de Freud “Mas ponho ênfase na exigência de que ninguém deve praticar a análise se não tiver adquirido o direito de fazê-lo através de uma formação específica. Se essa pessoa é ou não um médico, a mim me parece sem importância” (p.225, grifo do autor).

Em 1919 Siegfried Bernfeld propõe a criação de uma associação de não-médicos interessados na psicanálise que poderia se filiar à Sociedade Psicanalítica de Viena obtendo o acordo de Freud, porém o projeto não segue em frente. Seis anos depois Ferenczi retoma o plano propondo a criação de um órgão chamado “Os amigos da psicanálise” que, apesar do apoio de Freud, é rejeitado (Roudinesco, 2009).

Sobre esse tema no contexto brasileiro, Lima, Caponi e Minella (2010) destacam que uma revista médica O Médico Moderno, Revista Profissional e Cultural da Medicina, consagra ao assunto uma matéria de capa, em outubro de 1965: “Psicologia clínica: médicos vêem perigo na nova lei. Lei que autoriza aos psicólogos a solução dos problemas de desajustamentos é julgada pelos psiquiatras: o perigo estaria na criação dos consultórios de leigos” (p. 50). A reportagem ouviu cinco psiquiatras e um professor do recém-criado curso de psicologia da USP.

Na década de 1970 ocorre o boom das psicoterapias com a divulgação de diversas correntes da psicologia e, sobretudo, da psicanálise (Russo, 2002). Psicólogos, ainda excluídos da formação (exceto em São Paulo), participam de grupos de estudo fora das instituições psicanalíticas e, por vezes, ligados à universidade. Um dos primeiros lugares de formação em psicanálise, como já dissemos, foi a Clinica da Faculdade de Psicologia da USP desde sua fundação em 1954. Além desta, destaca-se a Clínica de Psicologia da Faculdade de Filosofia, de Ciências e Letras do instituto Sedes Sapientiae em São Paulo destinada aos alunos de pedagogia e depois de psicologia. Em 1960 a clínica se abre aos médicos e estudantes de medicina. No início da década seguinte (1970), destacamos a chegada do pensamento lacaniano no Brasil por meio de psicólogos que ainda não eram aceitos

pela IPA, fato que só acontece em 1979 (Boddin, 1998). Dentre os nomes que se destacam nesta divulgação estão: Luis Carlos Nogueira e, Durval Checchinato em São Paulo, Magno Machado Dias, no Rio de Janeiro, Emilio Rodrigué, na Bahia e ainda Jaques Laberge e Ivan Correa em Recife.

Alguns dos primeiros lacanianos, pelo fato de não pertencerem às escolas reconhecidas pela IPA (realidade brasileira na década de 1970), acabam aproximando-se da universidade onde encontram acolhimento para o estudo das novas teorias. A fragmentação dos espaços institucionais, através das sucessivas cisões, como já vimos, vem enfraquecer o movimento lacaniano; o espaço institucional não seria mais visto como espaço de reconhecimento, fazendo com que analistas migrem para as universidades.

Outro evento importante desse momento histórico foi o exílio de psicanalistas argentinos, a partir da década de 1970, trazendo ideias inovadoras, além de alto nível teórico e clínico. Antes, muitos brasileiros iam à Argentina realizar suas análises com analistas vinculados à IPA, em uma época em que sociedades brasileiras ainda não tinham o reconhecimento oficial da instituição.

Um segundo momento nas relações psicanálise e universidade ocorre na década de 1980 com a inserção nos cursos de Pós-Graduação, inicialmente no Rio de Janeiro e depois em São Paulo (Mezan, 1998). A entrada oficial da psicanálise na Pós- Graduação brasileira ocorre com a criação, na década de 1970, do curso de Especialização em Psicologia Clínica na PUC-RJ que visava a formação de psicólogos psicanalistas, impedidos, como já citado, de seguir uma formação em escolas de psicanálise. A universidade exerce então a função de formar profissionais em psicanálise, mas não reconhecidos como psicanalistas (Figueiredo, 2008). No entanto, na USP a psicanálise já aparece em 1954 na formação de psicólogos clínicos no Curso de Especialização em Psicologia Clínica que tinha como professor Durval Marcondes e era considerado um feudo da SBP de São Paulo (Oliveira, 2005).

A psicanálise aparece nos primeiros Mestrados em Psicologia do país (curso da PUC-RJ, criado em 1966) com dissertações, defendidas, sobretudo após a década de 1970. Não havia uma linha de pesquisa específica, o que só vem a acontecer em 1982, mas professores psicanalistas integravam aquele PPG (Féres-Carneiro,

2007). Também na década de 1960, a USP implanta seus PPGs em psicologia, incluindo um doutorado em 1974.

Vemos então a universidade figurar como um primeiro lócus de formação para psicólogos. Mesmo sabendo que não iriam ter o reconhecimento das sociedades psicanalíticas, candidatos encontravam nas PGs uma forma de contato com a psicanálise e a clínica. Contexto semelhante à realidade francesa, onde a psicanálise se aproxima da universidade pela via da psicologia clínica num movimento de duplo suporte, pois segundo Anzieu (1979), a psicanálise fornecia à psicologia clínica o suporte teórico que lhe faltava e esta última garantia a entrada e permanência da psicanálise na universidade.

No entanto, entre o contexto de chegada no Brasil, com a consequente aproximação da universidade e a sua atual conformação universitária, temos um período de afastamento. Na década de 1950 quando as escolas de psicanálise começam a ser reconhecidas, os psicanalistas se limitam a pertencer a uma escola, afastando a psicanálise da universidade. Posteriormente, com as discussões sobre o estatuto científico e epistemologia de outros saberes, começam também as críticas sobre a inserção da psicanálise na universidade e os embates com instituições formadoras. Algumas destas instituições e diversos psicanalistas se posicionam contra a presença da psicanálise na universidade, sendo alguns até mesmo mal-vistos ou rejeitados por seus pares por serem professores universitários. A crítica maior recai sobre a pós-graduação, uma vez que surge, de modo sistematizado, a proposta de pesquisa em psicanálise, trazendo a clínica ao contexto universitário, ou de doutorado em psicanálise, provocando desconfiança de escolas que são as detentoras da formação.

Alguns autores como Mendonça (2009) acreditam que o ensino da psicanálise na pós-graduação pode levar a confusões em relação à questão da formação do analista, enquanto que o ensino na graduação pode ser enriquecedor até para divulgar e diferenciar a psicanálise de outras teorias, mesmo assim não se justificaria o ensino de temas como diagnóstico e tratamento das estruturas clínicas, visto que a transmissão efetiva da psicanálise só ocorre sob transferência.

Ponto de vista que no nosso entendimento não se sustenta, pois partimos da diferenciação básica de que na universidade não há formação, o que já foi dito por

Freud e por Lacan quando fala que a psicanálise não se transmite como qualquer saber. Freud afirma em diversos momentos de sua obra a importância da análise pessoal para a formação do analista (1912, 1919, 1926) algo que a universidade não pode proporcionar.

Existem outras alegações como, por exemplo, a incompatibilidade epistemológica e metodológica entre a psicanálise e os outros saberes universitários, o que já discutimos anteriormente. A questão hoje não se trata mais se é possível ou não a psicanálise na universidade, visto que sua presença e importância é incontestável, mas como ela se apresenta.

A universidade é uma organização social, com mandato milenar de produção, reprodução e difusão de conhecimentos; com o passar do tempo, torna-se também definidora de mecanismos de legitimação dos saberes e práticas. Freud sempre buscou o reconhecimento da universidade e advogava a pertença da psicanálise ao campo científico, como abordamos no capítulo anterior. Percorrendo a história da psicanálise no Brasil, vemos como a universidade teve papel fundamental na formação e na difusão dos conceitos, práticas e interseções com outros campos. Em alguns estados do Brasil, como o Ceará, por exemplo, a difusão da psicanálise ocorre não tanto pela organização de escolas psicanalíticas, mas através da universidade (Danziato, 2000), situação que também pode estar presente em outros lugares.

As relações entre psicanálise e universidade, que durante um período foram marcadas por oposição e exclusão, hoje trazem a marca da inclusão e conciliação. Os significantes resistência e transferência eram empregados pelo movimento psicanalítico para interpretar as ambíguas relações entre ambos. Hoje essas relações seriam mais bem descritas pela harmonia e pacificação, de forma que a universidade tem sido um espaço social privilegiado pela psicanálise e ocupado por psicanalistas. Mais do que isso, a universidade tem-se tornado um objeto de desejo dos psicanalistas. O status atribuído ao professor universitário, no contexto brasileiro, é um capital simbólico e social, fonte de distinção e prestígio (Birman, 2013), mais social que monetário, se comparado com o que uma clínica privada pode proporcionar.

Ainda segundo Birman (2013), os cursos de mestrado e doutorado vêm dar conta de uma lacuna sobre o ensino teórico praticado em instituições psicanalíticas. Assim, constitui-se a figura do psicanalista-pesquisador a partir dessa demanda e da relação entre universidade e instituições de formação analíticas. A universidade, que inicialmente acolheu analistas de todas as escolas e teorias, hoje se torna objeto de disputas políticas entre escolas que buscam visibilidade social e recrutamento de novos analistas, marcando uma estratégia de relação de poder entre escolas e universidades.

Isto não implica dizer que a psicanálise não encontra dificuldades no cenário acadêmico. A nova forma de fazer pesquisa empreendida pela psicanálise vai de encontro aos ideais de ciência vigentes nas universidades, o que provoca dificuldade para a compreensão e aceitação das pesquisas psicanalíticas. Outra questão que destacamos anteriormente é a lógica produtivista presente nas universidades, não só no Brasil. Este ideal do ter que produzir para se destacar vai na contramão da relação da psicanálise com o saber, conforme discutimos no tópico anterior. Lembramos, com Bourdieu, que a universidade está inserida no campo educacional, tradicionalmente um lugar de conservação do capital e reprodução mais que de inovação, criatividade e subversão do campo (Bourdieu & Passeron, 1992).

Sobre as relações escolas/universidades, destacamos a experiência da Sociedade Psicanalítica de Buenos Aires que criou em 2005 um instituto universitário o IUSAM (Instituto Universitário de Saúde Mental) que oferece curso de Especialização em Psicanálise (a formação da IPA tradicional, mas com título de especialista ao final) além de outras em Saúde Mental e Psicologia da Criança e Adolescente, Mestrado em Cultura e Saúde Mental e Mestrado em Casal e Família. Segundo Ferrari (2006), a instituição recebe apoio, inclusive financeiro, da IPA, estando submetida às leis que regulam o ensino universitário na Argentina, mas que não interferem em conteúdos acadêmicos. Nas palavras do autor: “Com este projeto a psicanálise não faz concessões ao discurso da ciência nem tem porque temer o ‘discurso universitário’ do mero conhecimento racional. Pelo contrário, está em condições de contrapor-se a ele e dialogar com os movimentos culturais de vanguarda dentro de

sua própria casa” (p.565)15. Por ser uma escola de psicanálise dentro de uma

universidade, criam-se condições para garantir que os princípios da psicanálise sejam resguardados, prevalecendo a autoridade epistêmica do campo psicanalítico. Sem dúvida, uma experiência inovadora nas relações psicanálise e universidade. Ao longo dos anos, ocorre expansão na oferta de cursos de pós-graduação e a psicanálise se faz presente em PPGs específicos, áreas de concentração, linhas de pesquisa e, consequentemente, produções em diversas áreas e não somente em psicologia. A partir dos anos 1990 começa a se delinear o que chamamos psicanálise brasileira, com uma tomada de consciência do peso dos movimentos psicanalíticos brasileiro na cena internacional. No entanto, se por um lado há um grande número de praticantes, por outro, fragilidade devido a pouca presença de produção sistematizada e reconhecida no cenário internacional. Até a década de 1970 pouco se publicou em psicanálise no Brasil, mas a partir da década de 1980 canais para a divulgação da psicanálise começam a aparecer como revistas, livros, editoras especializadas, publicação de dissertações e teses (Oliveira, 2005). Enfim, a produção brasileira começa a ganhar contornos mais nítidos e expressivos.