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O DILEMA DA LIBERDADE E O DILEMA DA DEMOCRACIA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

CAPÍTULO II ASPECTOS DA CRISE DO DIREITO E DO ESTADO MODERNOS

1 O DILEMA DA LIBERDADE E O DILEMA DA DEMOCRACIA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

A crise paradigmática no direito se revela, de modo global, coincidindo com a própria crise da racionalidade jurídica, e se revela também com a constatação de contradições e ambigüidades setoriais. A crise da doutrina da separação de poderes é um destes indícios, que, como já se afirmou, servirá de modelo porque, através dele, se poderá didaticamente compreender mais aspectos da crise.

Antes de tratar diretamente da doutrina da separação de poderes, no entanto, convém abordar dois temas indicativos da crise e que se relacionam entre si. Apresentam-se, aqui, na forma de dois dilemas, que são resultado do conflito de paradigmas diferentes obrigados a conviver como se fossem compatíveis, ou ainda, como se fossem comensuráveis. O primeiro dilema é decorrente da construção teórica do Estado democrático de direito; e o segundo dilema é decorrente da construção teórica do Estado constitucional (entendendo-se que, ao contrário do que parte da doutrina admite, o Estado constitucional é distinto do Estado democrático de direito).

Como já se afirmou, no direito, os paradigmas se acumulam e não, propriamente, se sucedem. Assim, pelo paradigma do Estado democrático de direito,

pretende-se que o modelo democrático conviva com o modelo liberal. Os liberais, de maneira geral, na tradição de John Locke, pretendem resolver o dilema da liberdade delimitando a esfera privada contra a interferência estatal. Os democratas, de maneira geral, na tradição de Jean-Jacques Rousseau, pretendem resolver o dilema da liberdade tornando a esfera pública em esfera da liberdade, para tanto, a ampliação da participação nas decisões políticas, especialmente na elaboração da lei, torna os participantes livres, ou seja, súditos e soberanos ao mesmo tempo.

Houve tentativas de conciliação entre os dois modelos. Basta lembrar a doutrina de Benjamin Constant, ainda no início do século XIX, que considerava indispensável a participação política indireta como forma de proteção da esfera privada. Um observador atento verá, no entanto, que poucos liberais (geralmente ligados ao despotismo esclarecido) negariam a necessidade da representação política; portanto, nenhum negaria a participação popular no processo legislativo com o poder de estatuir ou, pelo menos, com o poder de impedir.

O confronto, nestes termos, então, é falso. Os liberais admitem e defendem a participação (especialmente a participação indireta) e os democratas também admitem e até defendem a existência de direitos individuais. Não se trata, também, do falso confronto entre democracia direta e democracia indireta. Não há hoje quem defenda de maneira convincente a aplicação ampla e irrestrita da democracia direta. Qual é, então, o dilema?

Gustav Zagrebelsky demonstrou que a concepção oitocentista de Estado de direito consagrava uma doutrina dos direitos e uma doutrina da supremacia do

legislador (soberania popular) ao mesmo tempo182. O jurista italiano explicou, no

entanto, que, antes do paradigma oitocentista, não se fazia tal distinção: os direitos se expressavam pela lei. “No século XIX [...] não existia uma distinção substancial, juridicamente relevante, entre lei e direitos”183. Para Zagrebelsky:

A primeira das grandes tarefas das constituições contemporâneas consiste em distinguir claramente entre a lei, como regra estabelecida pelo legislador, e os direitos humanos, como pretensões subjetivas absolutas, válidas por si mesmas com independência da lei184.

A tradição norte-americana, no entanto, estabeleceu uma nova concepção de Estado de direito, desvinculando a idéia de direitos da idéia de lei. Os franceses se mantiveram fiéis à concepção oitocentista.

A partir destes dois modelos geográficos, Gustav Zagrebelsky elaborou dois modelos teóricos de Estado de direito: a concepção centrada nos direitos (ou concepção norte-americana) e a concepção centrada na lei (ou concepção

182 No mesmo sentido é a posição de Jorge Vanossi: [A partir do constitucionalismo surgido após a revolução francesa e a revolução norte-americana], “existiu uma noção acabada a respeito da separação de poderes, no sentido de que esta não é uma mera separação de funções, que já era conhecida desde a Antigüidade, de sorte que em vez de responder a essa necessidade de tipo funcional ou prático deve responder a um princípio essencialmente político, a uma finalidade primordialmente política, qual seja a de dividir o poder para assegurar dessa forma as liberdades ou os direitos individuais, debilitando o poder. Dentro desse esquema, a idéia que possuem os europeus sobre o enquadramento do poder judiciário não era de todo uniforme nem de todo clara”. Jorge Vanossi. Teoria constitucional, p. 75. E complementa que há duas idéias em jogo – a francesa e a norte-americana: “A idéia francesa da soberania popular ou da soberania nacional e, no seu caso, do parlamento como depositário único dessa soberania; e a idéia de lei como expressão primogênita, exclusiva e excludente da soberania popular. Se a lei era a expressão mais autêntica da soberania popular e a sancionavam representantes eleitos diretamente pelo povo, jamais poderia um juiz – órgão administrativo indiretamente designado, isto é, através do governo – que não dependia da confiança do povo nem da renovação do povo, impedir que se aplicara a expressão soberana do povo. Jamais poderia um juiz-burocrata desconhecer a lei soberana. [...] Por outro lado, no sistema americano, donde o poder judiciário possui o dever fundamental de velar pela divisão dos poderes e impedir a exorbitância de um sobre outros, o juiz era o encarregado nato dessa missão, que desempenhava mediante outro singelo e simples raciocínio” Jorge Vanossi. Teoria da constituição, pp. 87-8.

183 Gustav Zagrebelsky. El derecho dúctil, p. 47. 184 Gustav Zagrebelsky. El derecho dúctil, p. 47.

francesa)185. Trata-se de duas respostas ao dilema entre liberdade e democracia no

Estado democrático de direito. Ou seja, duas maneiras de resolver o impasse provocado quando um cidadão considera que sua liberdade é cerceada por uma norma emanada do poder legislativo com legitimidade popular. Mais raro, o impasse se dá também quando uma maioria considera que seu direito de decidir sobre as opções fundamentais da comunidade é cerceado pela obstrução fundamentada nos direitos de um indivíduo. Assim, os franceses decidem em favor da democracia e os norte-americanos decidem em favor da liberdade; ou como prefere Zagrebelsky, os franceses aplicam uma concepção de Estado de direito centrada na lei e os norte- americanos aplicam uma concepção de Estado de direito centrada nos direitos.

Perceba-se a sutileza da distinção. Em ambas as concepções se reconhece a prioridade dos direitos em qualquer Estado de direito, no entanto, para os franceses os direitos, isto é, o direito subjetivo, é decorrente da lei, do direito objetivo, logo é inconcebível se confrontar direitos e lei, pois os direitos que não são derivados da lei não são direitos186. Para a concepção centrada nos direitos, os direitos antecedem a

própria constituição do governo (do Estado) e a lei é um instrumento para exercer direitos ou para que a comunidade atue em outros domínios da vida não considerados pelos direitos, assim, também não há conflito entre direitos e a lei,

185 Antes de Zagrebelsky, Dworkin já apresentava a mesma distinção: “O que é o Estado de Direito? [...] Há, na verdade, duas concepções muito diferentes do Estado de Direito, cada qual com seus partidários. A primeira é a que chamarei de concepção ‘centrada no texto legal’. [...] Chamarei a segunda concepção do Estado de Direito de concepção ‘centrada nos direitos’. Ela pressupõe que os cidadãos têm direitos e deveres morais entre si e direitos políticos perante o Estado como um todo”. Ronald Dworkin. Uma questão de princípio, pp. 6-7.

186 “A criação dos direitos determinava o limite entre o poder do Estado e a liberdade dos particulares e, segundo os princípios do Estado de Direito, como se tem visto, esta determinação era tarefa da lei. [...] Os direitos, portanto, não consistiam em uma ‘substância’, mas em uma simples ‘forma’ jurídica, a forma da lei. A garantia dos direitos se reduzia à ‘reserva de lei’.” Gustav Zagrebelsky. El derecho dúctil, p. 48. Sobre a tradição francesa: “Ao Tribunal de cassação [...] estava reservada uma autêntica tarefa constitucional que não consistia em assegurar a proteção judicial dos direitos, mas em

entre direito subjetivo e direito objetivo, porque o direito objetivo é decorrência do direito subjetivo187.

O dilema apresentado aqui entre democratas e liberais é apresentando por Gustav Zagrebelsky como decorrente da oposição entre duas tradições: a tradição norte-americana e a tradição francesa, ou entre a concepção de Estado de direito centrada nos direitos e a centrada na lei.

Não significa que os franceses não acreditem em direitos, mas que os direitos precisam ser reconhecidos por lei, ou seja, destaca o legislador como protetor e até mesmo como criador de direitos. Para os norte-americanos, por sua vez, continuadores da tradição inglesa (abandonada pelos ingleses), os direitos são superiores e não derivados da lei, portanto, há de existir um órgão protetor de direitos inclusive contra a lei. Parece claro, portanto, que o embate entre a ênfase para os direitos e a ênfase para a lei é, na prática, o confronto entre duas preferências: o órgão do legislativo versus o órgão do judicial; como não há uma natureza do órgão legislativo ou uma natureza do órgão judicial, trata-se de uma preferência entre o método judicial e o método legislativo, ou ainda, entre um pretenso método racional e um método político para resolver os problemas da sociedade.

assegurar, frente a interpretação dos juízes, a exclusividade do poder legislativo em matéria de direitos”. Gustav Zagrebelsky. El derecho dúctil, p. 54.

187 “A constituição do presente século – pode-se afirmar – fragmenta o direito, ao separar a lei dos direito [...]”. Gustav Zagrebelsky. El derecho dúctil, p. 51. “A característica principal das declarações americanas é a fundamentação dos direitos em uma esfera jurídica que precede ao direito que possa estabelecer o legislador”. Gustav Zagrebelsky. El derecho dúctil, p. 54. .”Para a concepção americana, os direitos são anteriores tanto a Constituição como ao governo (ou, segundo um modo de expressar-se mais usual entre nós, ao Estado). [...] A lei, cabe dizer, derivava dos direitos, justamente o contrário do que sucedia na França, onde eram os direitos os que derivavam da lei”. Gustav Zagrebelsky. El derecho dúctil, p. 55.

O dilema persiste, ainda que com formas alternativas, tais como: a maioria pode determinar os direitos da minoria? Os juízes podem determinar os direitos da maioria e de qualquer indivíduo?

Como a tradição francesa não é contra direitos, mas apenas considera que o legislador é o protetor dos direitos, o argumento da tradição norte-americana se fundamenta na desconfiança dos órgãos políticos (particularmente do órgão legislativo) e na confiança de que os órgãos judiciários são confiáveis porque adotam um método científico que assegura a neutralidade (ou, pelo menos, a imparcialidade). Assim, a tradição norte-americana é mais do que uma doutrina que enfatiza direitos, é uma doutrina que enfatiza a proteção judicial dos direitos.

Há, também, argumentos fortes a favor da tradição francesa (dos democratas): (a) a comunidade está acima do indivíduo, assim a maioria consagra o bem do grupo e não os interesses da maioria; (b) o segundo argumento é mais convincente e sua fonte é antes liberal que democrática: há um controle interno no processo democrático; maioria e minoria, buscando o poder confirmado nas eleições, controlam-se; restringem-se as ações da maioria, principalmente pela possibilidade da oposição e da fiscalização da minoria e da possibilidade de uma reversão pelas eleições. Este segundo argumento democrático, por sua vez, enfraquece as premissas da doutrina democrática. O processo democrático passa a ser elitista, ou seja, pressupõe a existência de partidos, maioria e minoria, que lutam pelo poder. No sentido original da doutrina democrática, é o povo quem participa, é o povo quem governa. Em outro trabalho, demonstrou-se que este mito democrático

do autogoverno nunca teve aplicação e não se sustenta teoricamente, aplicando-se apenas como tipo ideal188.

Mas, a despeito da doutrina democrática se sustentar ou não, ela apresenta uma contundente e convincente crítica à doutrina liberal. Por que os direitos proclamados (ou descobertos) pelos juízes são melhores que os direitos proclamados pelo legislador? Nas bases do paradigma moderno não há solução. A resposta estritamente oitocentista diria que o legislador tem uma posição preferencial, portanto, espera-se que a lei seja a expressão da razão e que o juiz seja o aplicador também racional da lei. Logo, não haveria conflito. O conflito só existe quando se põe em dúvida a capacidade do legislador decidir racionalmente ou que a lei seja expressão desta razão universal. O dilema persiste: quem protege o indivíduo ou a minoria contra a tirania da maioria? Quem protege qualquer um, inclusive a maioria, do protetor dos direitos? Quem nos protege dos juízes?

O dilema não foi superado. Como já se disse, os norte-americanos resolvem a favor dos juízes e a Europa, especialmente a França, resolve a favor do legislador.

Outra classificação bastante difundida, principalmente nos Estados Unidos, é formulada por Bruce Ackerman. Assim como Zagrebelsky, Ackerman distinguiu as democracias em monistas189 e fundamentalistas. Curiosamente, Ackerman usou dois

188 Cf. Nelson Juliano Cardoso Matos. Teoria do Estado.

189 Ackerman destaca a doutrina de John Hart Ely como representante do monismo. Registra também posição similar compartilhada por autores como Alexander Bickel, bem como Woodrow Wilson, Charles Beard e Oliver Holmes Jr.

modelos geográficos diferentes, considerou a Inglaterra representante do monismo190 e a Alemanha representante do fundamentalismo191.

O monismo parte da premissa que apenas o povo é o senhor do seu governo e que os representantes do povo, desde que escolhidos em eleições livres, detêm o poder governante legítimo. Assim, o monismo ressalta a prioridade democrática e confirma a retórica de que todo poder (legítimo) emana do povo.

O monismo constitucional consiste basicamente na idéia de que a democracia requer que governem aqueles representantes eleitos pelo povo e que o pleno poder de ditar leis seja conferido a estes representantes, desde que sua eleição tenha sido livre192.

O fundamentalismo, no entanto, considera que, embora as decisões tomadas pelos representantes do povo sejam legítimas, o povo não tem a autoridade suficiente para mudar certos princípios ou certos direitos, ou seja, que o direito da maioria em uma democracia está limitado por direitos fundamentais invioláveis.

190 “Nessa teoria, a onipresença reguladora é uma versão idealizada da prática parlamentar britânica. Faz mais de um século que o Primeiro-ministro britânico vem ganhando poder após uma eleição justa e direta e somente em circunstâncias excepcionais, a Casa dos Comuns tem dado seu apoio incondicional para as propostas do governo monárquico. Se o povo da Grã-Bretanha se sentir insatisfeito com o curso da política vigente, ele simplesmente deve apelar para a oposição nas próximas eleições. Até o presente momento, nem a Casa dos Lordes, nem a Rainha, ou os tribunais, efetivamente podem solapar as decisões legislativas tomadas pela maioria dos Comuns”. Bruce Ackerman. Nós, o povo soberano, p. 10.

191 “A democracia monista parece ser a forma em que os ingleses (e também os israelenses), tem organizado suas próprias instituições políticas enquanto que a democracia fundamentalista é a teoria que melhor descreve a prática constitucional alemã”. Bruce Ackerman e Carlos F. Rosenkrantz. Tres concepciones de la democracia constitucional, p. 15.

192 Bruce Ackerman e Carlos F. Rosenkrantz. Tres concepciones de la democracia constitucional, p. 19. “O monista levanta uma grande questão quando afirma que o vencedor de uma eleição justa e aberta tem o direito de governar com total autoridade do povo”. Bruce Ackerman. Nós, o povo soberano, p. 11. “Certamente os monistas sofisticados não pensam que todos os controles às decisões majoritárias são inerentemente antidemocráticos. Por exemplo, todos os monistas concordam em justificar os controles a um governo que intenta restringir os direitos às minorias

O fundamentalismo constitucional rechaça a sugestão monista de que os direitos que a Corte deve proteger são nada mais que os direitos de participação no processo democrático. Os fundamentalistas são perfeitamente conscientes de que o parlamento legitimamente constituído pode violar direitos fundamentais [...]193.

2 OUTRO ASPECTO DA CRISE: O ESTADO CONSTITUCIONAL CONTRA O