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CAPÍTULO II SUBSÍDIOS PARA UMA CIÊNCIA PRAGMÁTICA DA LEGISLAÇÃO

1 O SENTIDO COMPLEXO DA LIBERDADE

Acepções de liberdade

Na Parte II pretende-se estudar os fundamentos teóricos e os objetivos da concepção moderna de liberdade. A partir deste estudo preliminar, pretende-se demonstrar que a construção teórica da concepção liberal de liberdade, assim como sua aplicação, possui contradições, ambigüidades e lacunas, que podem ser sintetizadas no que se denominou neste trabalho de dilema da liberdade. O dilema consiste no (aparente?) paradoxo de que ao se almejar mais liberdade individual se produz mais restrição e mais risco à própria liberdade individual74.

73 Thomas Kuhn. A estrutura das revoluções científicas, pp. 90-91.

74 Correlatamente a este problema, a concepção liberal da liberdade pressupõe também a prévia determinação do critério que limita o exercício da liberdade. Neste sentido é o registro de Tércio

Considerando que o tema da liberdade é, por si só, bastante amplo e complexo75, faz-se necessário uma apresentação da construção teórica desta concepção liberal de liberdade, bem como destacar as distinções de acepções do vocábulo, como também, ainda que de forma provisória, destacar os outros enigmas do paradigma correspondente.

A despeito de todas as possibilidades de conceituação, liberdade será considerada em acepção mais restrita, como liberdade social ou interpessoal76. Esta acepção restrita restringe também os problemas, enfatizando aqueles pertinentes a esta especificidade77. Assim, grosso modo, no pensamento grego clássico, liberdade (social) significava independência da polis em relação a um domínio estrangeiro ou a independência de um grupo social em relação a outro grupo social dentro da polis78.

No pensamento liberal, diferentemente, a liberdade não é usufruída coletivamente, mas individualmente, significa querer e agir sem impedimento ou constrangimento79;

no pensamento democrático moderno, liberdade é participação política (autonomia)80; ou ainda liberdade é a esfera não obrigatória e não proibida pelo

direito, portanto é a faculdade medida pela lei81. Também é possível catalogar concepções diferentes da liberdade social, como a distinção entre liberdade dos antigos e liberdade dos modernos de Benjamin Constant, liberdade negativa e

Sampaio Ferraz Jr.: “como institucionalizar a conhecida fórmula: a liberdade de um começa onde termina a liberdade de outro?” Tércio Sampaio Ferraz Jr. Estudos de filosofia do direito, p. 98.

75 “A liberdade é, sem dúvida, um dos termos mais controvertidos e mais decisivos na experiência jurídica. Para alguns, ela precede o direito e explica sua possibilidade. Para outros ela resulta do direito e só tem sentido a partir dele” Tércio Sampaio Ferraz Jr. Estudos de filosofia do direito, p. 75. 76 Cf. Felix E. Openheimer. Liberdade. In Bobbio, Matteucci e Pasquino. Dicionário de política.

77 Exemplos em Tércio Sampaio Ferraz Jr. (Estudos de Filosofia), Miguel Reale (Filosofia do Direito), José Guilherme Merquior (Liberalismo antiga e moderna) e Norberto Bobbio (Liberdade e igualdade). 78 Aristóteles (especialmente em Política).

79 John Locke ou Thomas Jefferson. 80 Jean-Jacques Rousseau.

liberdade positiva de Isaiah Berlin, “liberdade de” e “liberdade para”, tão enfatizadas por Norberto Bobbio.

Estas distinções todas são comuns no debate sobre a liberdade, tratam-se, no entanto, de referências exemplificativas, portanto não excluem diversas outras acepções também correntes e importantes no debate sobre o tema. José Guilherme Merquior, por exemplo, apresentou, organizadas historicamente, quatro acepções: (a) liberdade como intitulamento, que muito se aproxima do que adiante se denominará liberdade republicana ou liberdade como não-dominação82, (b) liberdade

política que se aproxima da idéia de liberdade dos antigos (de Benjamin Constant) e de liberdade positiva (de Isaiah Berlin)83, (c) liberdade de consciência e de crença,

que é a primeira manifestação histórica da liberdade negativa (liberdade moderna)84 e (d) liberdade de realização pessoal, que também se aproxima, como complemento, da idéia de liberdade negativa (liberdade moderna)85.

José Guilherme Merquior, também, agrupou as diversas vertentes da concepção liberal de liberdade em três grupos: a concepção inglesa, a concepção francesa e a concepção alemã. A variante inglesa começa hobbesiana86 (ainda que

82 “Liberdade de opressão como interferência arbitrária. Consiste na fruição livre de direitos estabelecidos e está associada a um sentido de dignidade”. José Guilherme Merquior. O liberalismo antigo e moderno, p. 22.

83 “Liberdade de participar na administração dos negócios da comunidade em qualquer nível”. José Guilherme Merquior. O liberalismo antigo e moderno, p. 22.

84 “Historicamente tornou-se relevante primeiro como uma reivindicação de legitimidade da dissidência religiosa durante a Reforma européia [...]. A reforma inaugurou uma idade de pluralismo religioso. Isso foi, por sua vez, secularizado no moderno direito de opinião”. José Guilherme Merquior. O liberalismo antigo e moderno, p. 22.

85 Os modernos não se sentem livres simplesmente porque seus direitos são respeitados (1), ou porque suas crenças podem ser livremente expressas (2), ou porque, com liberdade, tomam parte do processo de decisão coletiva. Essas pessoas também se sentem livres porque dirigem sua vida mediante opção pessoal de trabalho e lazer. José Guilherme Merquior. O liberalismo antigo e moderno, p. 23.

86 “A escola inglesa de teoria da liberdade, que vai de Hobbes e Locke a Bentham e Mill vê a liberdade como ausência de coerção, ou (na famosa opinião de Hobbes) a ausência de obstáculos externos”. José Guilherme Merquior. O liberalismo antigo e moderno, p. 27.

Thomas Hobbes não possa ser considerado um liberal), considerando liberdade como ausência de obstáculos externos (isto é, ausência de impedimento e constrangimento provocados por outros homens), e termina com Montesquieu (embora Montesquieu não fosse inglês), que equipara a liberdade à permissividade da lei87. A variante francesa, rousseauniana, considera liberdade como autonomia, mas autonomia do corpo social, ainda que se expresse pela vontade individual de cada integrante da sociedade88. A variante alemã confunde liberdade com realização pessoal, ainda que possa apenas ser alcançada a partir de uma vontade coletiva89.

Resumindo: a teoria inglesa dizia que a liberdade significava independência. O conceito francês (de Rousseau) consistia em que liberdade é autonomia. A escola alemã replicou a isso que a liberdade é realização pessoal90.

Antes de se desenvolver o estudo sobre esta concepção liberal da liberdade, no entanto, cabe eliminar as confusões mais comuns sobre o emprego do vocábulo liberdade.

Na filosofia, na psicologia e na sociologia, é tema obrigatório considerar se o homem dispõe de livre-arbítrio ou se o seu querer é determinado natural ou

87 “É crucial a frase de Hobbes, porque iguala liberdade com tudo o que a lei permite pelo simples fato de que não proíbe. A liberdade política, o que frustra sua própria definição, fora sempre concebida como liberdade por meio da lei (e legislação), em lugar de algo exterior à lei. A formulação de Hobbes é a fonte da idéia inglesa de liberdade negativa, embora sua formulação clássica dentro do pensamento liberal tenha sido feita por um francês - Montesquieu”. José Guilherme Merquior. O liberalismo antigo e moderno, p. 28.

88 “A escola ‘francesa’ de liberdade, como modelo teórico, prefere Rousseau a Montesquieu. [...] Para ele, a forma mais elevada de liberdade consistia na autodeterminação, e a política devia refletir a autonomia da personalidade. Rousseau era um individualista tão radical quanto qualquer um; [...]. Mas ao tratar de liberdade social, ele pôs [...] a liberdade política, bem acima da autonomia civil”. José Guilherme Merquior. O liberalismo antigo e moderno, p. 28.

89 “O conceito está estreitamente ligado à liberdade política porque também salienta a autonomia; contudo, não gira em torno da participação política, mas em torno do desdobramento do potencial humano”. José Guilherme Merquior. O liberalismo antigo e moderno, p. 31.

socialmente. No entanto, para os fins deste trabalho, como já se afirmou, liberdade será empregada estritamente no sentido de liberdade social (ou de liberdade interpessoal). Assim, de certo modo, a controvérsia sobre determinismo e livre- arbítrio pode ser afastada91; de forma que é possível continuar a analisar o tema da

liberdade social sem maior prejuízo, mesmo que essa controvérsia não esteja previamente superada. Este recurso de afastar a preliminar é motivado, sobretudo, pela impossibilidade de se ter atualmente uma posição segura e consensual, a despeito dos esforços da comunidade científica. Também, careceria de todo o sentido, se o estudo da liberdade fosse restringido ao estudo da liberdade de agir.

Persiste, no entanto, um tema próximo à controvérsia afastada: a liberdade de querer, distinta da liberdade de agir. A liberdade de querer significa que a vontade é livre; a liberdade de agir significa que a ação é livre. As duas idéias podem ser completamente independentes: minha ação pode ser livre (sem obstáculos) ainda que não seja a ação querida por mim; ou meu querer pode ser livre ainda que minha ação não seja livre92.

A oposição entre liberdade de querer e liberdade de agir se tornou relevante com a filosofia cristã93: o livre-arbítrio94, ou seja, naquele contexto, a liberdade de querer, significava a genuína expressão da liberdade95. Trata-se, no entanto, de uma

91 “Num trabalho sobre a teoria social (diferentemente de uma obra sobre filosofia geral), a primeira coisa a fazer é descartar o velho dilema de livre-arbítrio versus determinismo”. José Guilherme Merquior. O liberalismo antigo e moderno, p. 21.

92 “Essa distinção era, na filosofia grega, desconhecida. Nela, querer sem poder não fazia sentido. A vontade ou apetite movia o homem para aquilo que estava a seu alcance e lhe era próprio, isto é, adequado a sua natureza”. Tércio Sampaio Ferraz Jr. Estudos de filosofia do direito, p. 87.

93 Tércio Sampaio Ferraz Jr. Estudos de filosofia do direito, p. 87.

94 Na filosofia cristã, e também compartilha na filosofia de autores modernos como Espinosa e Rousseau, a liberdade não significa ter a possibilidade de escolher, mas liberdade significa tendo a possibilidade de escolher, escolher o correto, isto é, aquilo segundo a natureza e/ou segundo a razão. 95 “Pode-se dizer que os filósofos medievais, ao assumirem a distinção entre querer e poder, introduziram na noção de liberdade um elemento inteiramente novo”. Tércio Sampaio Ferraz Jr. Estudos de filosofia do direito, p. 87.

liberdade moral, muito mais que uma liberdade social. É relevante no trato do indivíduo consigo mesmo ou do indivíduo com Deus96, mas menos relevante para as relações sociais, quando não é também exteriorizado. Aplicando-se à teoria social e política, ainda que se possa reduzir um ao outro, pode se dar a seguinte ênfase: (a) a liberdade de querer significa autonomia e (b) a liberdade de agir significa independência (sem restrições e sem constrangimentos).

A teoria liberal reforça a distinção entre as duas acepções. Reunindo de um lado as acepções de: liberdade de agir, independência, liberdade negativa e liberdade moderna. E reunindo, do outro lado, acepções de: liberdade de querer, autonomia, liberdade positiva e liberdade antiga97.

Mais do que de liberdade negativa e positiva, seria talvez mais apropriado falar de liberdade de agir e liberdade de querer, entendendo-se, pela primeira, ação não impedida ou não forçada, e pela segunda, vontade não heterodeterminada e sim autodeterminada98.

Ainda que se possam opor os dois grupos um ao outro, pode-se considerar, também, como dois momentos distintos do exercício da liberdade.

96 “Se o homem é livre em sua interioridade, a questão da liberdade no sentido político sofre um deslocamento. A liberdade não perde sua condição de status (livre em oposição a escravo), mas a liberdade política passa a ser uma questão de querer e não de poder. Ou seja, pode-se obrigar alguém a fazer ou a omitir algo, mas não se pode obrigar alguém a querer”. Tércio Sampaio Ferraz Jr. Estudos de filosofia do direito, p. 88.

97 “Filósofos políticos (por exemplo, Norberto Bobbio) distinguem, com freqüência, um conceito clássico liberal de liberdade de um conceito clássico democrático de liberdade. No conceito liberal, liberdade significa ausência de coerção. No conceito democrático, significa autonomia, a saber, o poder de autodeterminação”. José Guilherme Merquior. O liberalismo antigo e moderno, p. 25.

Liberdade social (interpessoal): relação entre autonomia (querer) e independência (agir)

É necessário esclarecer que estas distinções revelam apenas o significado complexo da liberdade e não propriamente que existem várias liberdades. É certo que, em determinados contextos, liberdade de querer e liberdade de agir são excludentes, ou são independentes, mas, na maior parte dos casos, são complementares, porque, afinal, significam a mesma coisa. Assim, a idéia de independência como ausência de constrangimento e restrição significa que não há interferência externa à ação, logo, a ação é autosuficiente. Por outro lado, a idéia de autonomia como não influência externa (heteronomia), significa que uma força externa não impôs sua vontade (constrangimento) ou impediu a formação de uma vontade (restrição). Assim, em certo sentido, autonomia é a mesma coisa que independência (ausência de restrições e constrangimentos).

A distinção, entretanto, é relevante, principalmente, por duas razões: (a) para destacar dois momentos distintos do exercício da liberdade, (a1) a deliberação e (a2) a ação, e (b) para enfatizar a importância de um momento em relação ao outro.

Isto porque, especialmente na teoria liberal, a idéia de liberdade exige a necessária relação entre querer e ação. Assim, não é livre aquele cuja ação foi restringida (ou constrangida), mas, também, não é livre aquele que delibera por sua própria vontade, mas que não tem meios para converter seu querer em ação99.

99 A relevância desta distinção é que, como pretendemos demonstrar adiante, a concepção liberal da liberdade faz sentido quando se conjuga uma ação livre que seja também uma ação querida. Ou seja, não basta que a ação seja independente (sem obstáculos), a vontade precisa ser também autônoma. “Em síntese, pode-se dizer que a noção de livre arbítrio prepara um conceito importante: a liberdade como ausência de necessidade e a liberdade de exercício como ausência de coação. Daí, mais tarde,

Neste sentido, por um lado, (a) a liberdade não é apenas a ação sem restrições e sem constrangimentos, mas a ação (ou omissão) que seja o resultado de um querer próprio (autônomo) sem restrições e sem constrangimentos externos (heterônomo). Por outro lado, (b) a liberdade significa também que as restrições e os constrangimentos à ação foram estabelecidos (ou aceitos voluntariamente) pelo próprio agente. Portanto, na idéia de liberdade há uma necessária associação entre querer e agir: de nada vale uma ação livre dissonante do querer livre do agente e é enormemente limitado o querer livre sem a possibilidade de agir segundo o seu querer.

Indaga-se: como é possível considerar uma pessoa livre ou uma sociedade livre, se nem todas as ações são independentes (sem constrangimento e sem restrição) e nem todas as vontades são autônomas na vida de uma pessoa e entre as pessoas em uma sociedade?

O conceito de liberdade social pressupõe a participação de pelo menos duas pessoas, ou melhor, a não-liberdade pressupõe a participação de pelo menos duas pessoas; a liberdade, pelo contrário, significa que a participação da segunda pessoa é irrelevante. Mas a liberdade é social porque há a latente possibilidade da não- liberdade.

Para resolver a indagação apresentada acima, Felix Oppenheim fez a distinção entre liberdade no sentido objetivo e liberdade no sentido subjetivo. Em sentido objetivo, significa que uma ação é livre quando foi querida pelo agente, ou a idéia de que ninguém, nem o soberano, nem o Estado, pode constranger a liberdade, só seu exercício”. Tércio Sampaio Ferraz Jr. Estudos de filosofia do direito, p. 91. No mesmo sentido: “No primeiro significado, o termo liberdade é bem acompanhado pelo termo ‘ação’; uma ação livre é precisamente uma ação lícita, que eu posso fazer ou não fazer enquanto não impedida. No segundo

pelo menos, que outra pessoa não foi a responsável por aquele constrangimento ou restrição; portanto, destaca-se uma segunda pessoa que teve o poder de interferir na ação de outrem a ponto de resultar em uma ação dissonante do querer100.

Neste sentido objetivo, a vida de uma pessoa é repleta de ações livres e de ações não-livres, retoma-se então a indagação acima: como é possível determinar o sentido da liberdade? Para Felix Oppenheim, é o sentimento subjetivo de liberdade que torna um conjunto de ações livres e não-livres ou é um conjunto de expectativas em relação a ações livres e não-livres que determina se uma pessoa é livre ou não (se vive em uma sociedade livre ou não).

A solução apresentada por Felix Oppenheim parece bem pouco convincente e bem pouco útil para resolver os problemas inerentes ao tema. No entanto, a sua distinção entre o momento do querer livre e o momento do agir livre, bem como o reconhecimento de que é impossível uma vida exclusiva de ações livres ou de ações não-livres, serão bastante úteis nas considerações a seguir.

significado, faz-se acompanhar muito bem pelo termo ‘vontade’: uma vontade livre é precisamente uma vontade que se autodetermina”. Norberto Bobbio. Teoria geral da política, p. 280.