2. Os fundamentos teológico-filosóficos do tomismo
2.4. A analogia do ser
2.4.1. Dimensão ontológica da analogia do ser
A analogia do ser, proposta pelo Aquinate, sustenta que Deus e o homem
sejam (existam) de modo radicalmente distinto, ainda que isso não implique o fato de
que ocorra entre eles alteridade, já que, nesse caso, não haveria nenhuma espécie de
comunidade (semelhança) entre ambos
142. Se o homem tem o ser, então ele existe não
por si, mas por outro, que é a causa da sua existência. Se a analogia é o modo pelo
qual o entendimento humano, por intermédio do lógos, busca conhecer Deus (ainda
que de modo meramente aproximativo, pois parte do homem, que é um efeito de
Deus), a chave para a compreensão da relação ontológica que existe entre Deus e as
criaturas - que o lógos conhece por analogia -, deve ser encontrada na relação entre o
ser e a causalidade
143.
Se o termo causa define, de modo geral, a passagem da potência ao ato
(de um atributo), num ser qualquer, por obra de outro ser que esteja em ato, então esse
mesmo ser em ato, que é causa dessa passagem, deve, antes de tudo, existir no sentido
forte da expressão. O ser é, portanto, a origem da causalidade (em todas as suas
espécies, com destaque para a causalidade eficiente). Porém, como o ser, na doutrina
Tomista, é a existência, segue-se que a existência responde pelo fundamento último da
causalidade. Por outro lado, toda a relação causal supõe que o ser que está em ato,
142 Diz São Tomás, na Suma Teológica I, q. 5, a 3, p. 192: “Quanto ao 4º deve-se dizer que, embora se conceda de alguma maneira que a criatura se assemelha a Deus, não se pode, por outro lado, e de modo nenhum, afirmar que Deus se assemelha à criatura. Pois, como explica Dionísio, ‘entre aqueles que são de uma mesma ordem admite-se uma mútua semelhança, não, porém, entre o efeito e a causa’. Dizemos que uma imagem se parece com o homem, mas não o contrário. Assim, também, em certo sentido, pode-se dizer que a criatura é semelhante a Deus, mas não que Deus seja semelhante à criatura”.
143 Seguimos, aqui, o pensamento de Etienne Gilson, em O Espírito da Filosofia Medieval, p. 116 e seguintes.
sendo a causa da passagem da potência para o ato noutro ser, comunique algo de seu
ser a seus efeitos
144. Remontando às origens da cadeia causal é imperioso que o ser
primeiro, que é a causa de tudo o mais, comunique algo a seus efeitos (ao mundo)
145.
Explica Etienne Gilson:
Portanto, se o universo cristão é um efeito de Deus, e a noção de
criação implica isso, ele deve ser necessariamente um análogo de
Deus. Nada mais que um análogo, porque, se compararmos o ser por
si ao ser causado em sua existência mesma, obteremos duas ordens de
seres que não são capazes nem de adição, nem subtração: eles são,
rigorosamente falando, incomensuráveis, e é também por isso que são
compossíveis. (...) É por isso que toda a metafísica cristã requer o uso
das noções de similitude e participação, mas dá a elas um sentido
muito mais profundo que o platonismo, do qual as toma emprestadas,
porque a matéria de que faz uso o Demiurgo do Timeu é tão-só
informada pelas idéias de que participa, ao passo que a matéria do
mundo cristão recebe de Deus sua existência ao mesmo tempo que a
existência de suas formas
146.
A relação de Deus com a existência, portanto, é radicalmente distinta da
relação do homem com a existência: Deus é o ser; o homem tem o ser. Nesse sentido é
que se pode introduzir a noção de analogia de proporcionalidade entre o ser de Deus e
144 Explica Etienne Gilson, em O Espírito da Filosofia Medieval, p. 129: “Há poucas fórmulas que se repetem com maior freqüência em São Tomás do que aquela em que essa relação se expressa; como tudo o que causa age conforme esteja em ato, toda causa produz um efeito que se assemelha a ela: ‘Omne agens agit sibi simile’ (Todo agente produz algo semelhante a si). A similitude não é aqui uma qualidade adicional, contingente, que sobreviria sabe-se lá como para coroar a eficácia, ela é coessencial à própria natureza da eficiência, de que não é mais que o sinal exterior e a manifestação sensível”. Ainda com relação ao tema, afirma São Tomás de Aquino, na Suma Contra los Gentiles, p. 169: “Como os efeitos são mais imperfeitos que suas causas, não convêm a elas nem no nome nem na definição; todavia, é necessário encontrar entre uns e outras alguma semelhança, pois da natureza da ação nasce que o agente produza algo semelhante a si, já que todo ser produz quando está em ato. Por isso, a forma do efeito encontra-se, na verdade, de algum modo na causa superior, ainda que de outro modo e por outra razão, por cujo motivo chama-se causa equívoca”.
145 Na Suma Teológica, I, q 4, a 3, p. 191, diz São Tomás de Aquino: “Quando se trata de um agente que não coincide no gênero, seus efeitos alcançarão uma semelhança mais distante ainda com a forma do agente. Mas não de tal modo que participem segundo a mesma razão específica ou genérica, mas apenas segundo alguma analogia, assim como o ser é comum a tudo [a Deus e às criaturas]. É desta maneira que os efeitos de Deus, enquanto são entes, lhe são semelhantes como ao primeiro e universal princípio de todo o ser”.