3. O conceito de existência na Metafísica de São Tomás
3.2. Essência e existência na Metafísica de São Tomás
3.2.1. A existência dos entes contingentes
Antes de São Tomás, a filosofia árabe havia se deparado com o
problema metafísico que a idéia de criação ex nihilo trazia consigo. Se o mundo não
existisse por si, mas por outro (ab alio), então seria necessário explicar como seria
possível entender, pela via racional, a relação entre o criador e a sua criação. Explica
Nicola Abbagnano:
A característica fundamental da doutrina da causa criadora é que
Deus é o ser do qual dependem todos os outros seres. Mas foi só
através do neoplatonismo árabe que se desenvolveu o corolário
implícito nessa concepção, chegando-se à determinação de um
atributo que depois passaria a ser o primeiro e fundamental atributo
dessa doutrina: o da necessidade do ser divino. De fato, se as coisas
do mundo extraem seu ser de Deus, este só pode extraí-lo de si
mesmo, ou seja, Deus é o ser por natureza ou por essência, ao passo
que as coisas têm o ser por participação ou por derivação de Deus
191.
Avicena
192interpretou a distinção entre seres necessários
193e seres
possíveis
194por analogia com a doutrina aristotélica da forma e da matéria. Em
Aristóteles, a substância está ou em ato ou em potência. Tudo o que está em ato
possui, necessariamente, uma forma. Segue-se que a forma, estando sempre em ato, é
necessária enquanto é; a matéria, estando em potência, é pura possibilidade. Um ser
necessário, portanto, estando sempre em ato, não tem em si mesmo nenhuma espécie
de possibilidade. Um ser possível, por sua vez, não sendo por si mesmo necessário, é
composto necessariamente de potência e ato. Deus é por si mesmo necessário. Logo,
191 Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia, p. 253.
192 Seguimos aqui o argumento de Nicola Abbagnano, no Dicionário de Filosofia, p. 253.
193 O termo necessário, em seu sentido primeiro, é aquilo que não pode ser diferente do que é, sob pena de contradição. Diz Aristóteles na Metafísica (V, 5, 1015 a 35-1015 b): “Ademais, dizemos que é necessário que seja assim o que não pode ser diferente do que é. E desse significado de necessário derivam, de certo modo, todos os outros significados”.
194 O significado principal de possível é o seguinte: aquilo cujo contrário não implica contradição. Assim declara Aristóteles, na Metafísica (V, 12, 1019 b 25-30): “Tem-se o contrário do impossível, isto é, o possível, quando não é necessário que o [seu] contrário seja falso: por exemplo, é possível que um homem esteja sentado, porque não é necessariamente falso que ele não esteja sentado”.
sendo desprovido de qualquer espécie de possibilidade, é também simples (está sempre
em ato). Esclarece Nicola Abbagnano:
Desse modo, determina-se uma cisão no ser: de um lado o ser de
Deus, do outro o [ser] das criaturas; de um lado, o ser por si, de
outro o ser por participação; de um lado o ser necessário, de outro o
ser possível. Essa distinção foi introduzida por Al Farabi (séc. IX), e
graças a Avicena (séc. XI) prevaleceu na Escolástica árabe e cristã,
tornando-se um de seus princípios fundamentais
195.
A partir desses fundamentos metafísicos, a filosofia árabe passou a
examinar a relação entre essência e existência nos seres contingentes (possíveis).
Inseridas num contexto criacionista, essência e existência não mais formavam uma
unidade, separável apenas pela análise racional, tal como ocorria na doutrina
metafísica de Aristóteles. Na perspectiva da filosofia árabe, a essência responderia
pela possibilidade do ser, e a existência responderia por sua atualidade. A questão,
portanto, passaria a ter a seguinte formulação: «como se daria, nos entes contingentes,
a relação entre essência e existência, já que esses mesmos seres, não existindo por si
mesmos, existiriam por outro?»
Os filósofos que trataram do tema partiram do exame da essência e
concluíram o seguinte: a relação entre a essência e a existência deveria ser de
exterioridade, porque a essência jamais poderia incluir, em si mesma, a existência. Diz
Etienne Gilson:
Alfarabi, Algazel, Avicena, entre os árabes, Moisés Ben Maimônides,
entre os judeus, já haviam notado o lugar realmente excepcional que
ocupa a existência com respeito à essência. (...) Qualquer que fosse a
origem de sua doutrina, esta assinalava bem claramente a diferença
que existe, para algo, entre o fato de que é e o fato de ser o que é. Na
atualidade a essa diferença se chama distinção entre a essência e a
existência. O que mais parece ter chamado a atenção destes filósofos
é que, por muito que se aprofunde a análise da essência, essa jamais
chega a incluir a existência. Como conseqüência, segue-se
necessariamente que, ali onde exista a essência, venha a agregar-se
desde fora a existência, como uma determinação extrínseca que lhe
confere o ato de existir
196.
Guilherme de Auvergne (1190-1249), influenciado pelos filósofos
árabes, mormente por Avicena, foi um dos primeiros teólogos a entender a importância
metafísica da distinção entre essência e existência para a Teologia cristã
197. O verbo
ser (esse) comporta no mínimo dois sentidos: (i) predicativo; (ii) existencial
198. No
sentido (i) o verbo ser (ens) significa a essência ou a definição, no sentido (ii) o verbo
ser (esse) significa a existência atual de um ente qualquer. Quando, no sentido (i), é
dito que: «homem é um animal racional», é declarada sua essência ou qüididade
199;
quando é dito no sentido (ii): «homem existe», diz-se algo que é diferente de sua
essência. Se os dois sentidos em que o verbo ser está sendo utilizado são distintos entre
si, então é possível conceber os entes sem sua existência – sentido (i) –, apenas a partir
de sua definição.
Para Guilherme, seguindo a argumentação dos filósofos árabes no que
diz respeito ao tema, somente um ser possui por essência a sua existência, pois é
racionalmente contraditório entendê-lo sem o existir: Deus. Todos os demais seres,
portanto, podem ser concebidos (sem contradição) sem existência. Somente o Ser
Supremo tem como essência o próprio existir. Segue-se disso que Deus é simples, já
que sua essência não pode ser separada de sua existência, tanto na inteligência, quanto
na realidade. O argumento desenvolvido por Guilherme parece ter a seguinte estrutura:
se tudo aquilo que existe (no mundo) não o faz por si próprio, mas por outro, e esse
outro, em última instância, é Deus; então Deus, por sua própria essência é o ser; e é
196 Etienne Gilson, El Tomismo, p. 57.
197 Seguimos aqui o argumento de Etienne Gilson, em El Tomismo, p. 516-518.
198 Na semântica aristotélica não haveria necessidade de salientar o sentido existencial do verbo ser para designar a substância primeira, porque essa mesma substância primeira, que é o fundamento de toda a predicação já é tomada como «existente de fato». Assim, a essência (definição) declara o que é a substância, cuja existência está sendo pressuposta.
199 Diz Nicola Abbagnano, no Dicionário de Filosofia, p. 820: “Termo introduzido pelas traduções latinas feitas no século XII (do árabe), a partir das obras de Aristóteles; corresponde à expressão aristotélica το τι ην ειναι (quod quid erat esse). Esse termo significa essência necessária (substancial) ou substância”.