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2. APRESENTAÇÃO DA PESQUISA-AÇÃO

2.4 A pesquisa-ação: oficina de leitura e de produção textual

2.4.2 Instrumento teórico: gênero do discurso carta do leitor

2.4.2.1 Dimensão social

Buscando manter uma coerência de fundamento, foi mantida a ordem metodológica apresentada por Bakhtin para uma pesquisa que envolva o estudo da língua. Assim, o ponto de partida são “as formas e os tipos de interação verbal em

ligação com as condições concretas em que se realiza” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1999, p. 124). Para lidar com elas, foi necessário um reconhecimento da esfera social em que estão inseridas. A esfera social determinará um “processo de assimilação – mais ou menos criador – das palavras do outro (e não das palavras da língua)” (BAKHTIN, 2003, p. 294), uma vez que as esferas da atividade humana estão todas relacionadas com o uso da língua, a qual, ao mesmo tempo, reflete o caráter multiforme das esferas sociais. Já a heterogeneidade dos gêneros do discurso decorre da vasta gama de esferas sociais que existem e surgem das complexas interações sociais humanas.

As esferas sociais regulam, dessa forma, as formas de interação verbal, mas não podem ser consideradas estanques e limitadoras. Ao contrário, há uma dinâmica relação constante e geradora entre as diversas esferas. Assim como os gêneros do discurso são tipos históricos cuja estabilidade precisa estar em suspenso, as esferas sociais também mantêm uma relação de relativa estabilidade. Essa instabilidade inerente tanto aos gêneros quanto às esferas sociais estará associada às condições sócio-históricas de determinados conjuntos de pessoas. A divisão das esferas sociais não poderá, então, ser considerada por meios físicos, geográficos ou por características lingüísticas, apenas. Seus limites, ainda que provisórios, estarão ligados a fatores histórico-sociais e discursivos.

Assim, a esfera social em que se insere o gênero carta do leitor é do jornalismo. Tentar definir estaticamente a extensão desta esfera é uma tarefa complexa e sempre inconclusa, dadas as características que podem agrupá-la. Tampouco se deve tomar como único determinante o suporte, no caso, o jornal impresso. A importância do suporte deve ser destacada, e “a reflexão a propósito do suporte material do sentido é fundamental para a determinação de sua efetuação

nas práticas” (PÉCORA, 2001, p. 11). Deve-se tomar cuidado, entretanto, para não cristalizar definições de esferas e de gêneros a partir de suportes, uma vez que há um intercâmbio natural de gêneros, esferas e suportes, tornando maleáveis suas delimitações. A esfera social do jornalismo, se estudada a partir dos suportes que a permeiam, traria uma série de dificuldades de caracterização, visto que há jornalismo impresso, radiofônico, televisivo, transmitido via rede de computadores, acessado via telefone celular, e tantas possibilidades que a tecnologia já permita ou venha a permitir. Como poderia surgir daí um suposto impeditivo para denominarmos todas essas situações de interação como jornalismo e no intuito de tentar darmos coerência, adotamos a síntese que Rodrigues apresenta:

Reportando [...] à teoria bakhtiniana, tem-se que condições socioeconômicas determinadas criaram as condições e a necessidade de uma nova forma de comunicação sócio-ideológica e a constituição de uma nova esfera social, a esfera jornalística, com função e objeto próprios na vida social. Numa síntese, pode-se dizer que o objeto da esfera jornalística se constitui no horizonte de acontecimentos, fatos, conhecimentos e opiniões da atualidade, de interesse público. Nesse contexto, sua função sócio-ideológica se caracteriza por fazer circular (interpretar, “traduzir”) periódica e amplamente as informações, conhecimentos e pontos de vista da atualidade e de interesse público, “atualizando” o nível da informação da sociedade (ou de grupos sociais particulares). (RODRIGUES, 2001, p. 81, grifo da autora).

Assim, passamos a caracterizar o jornal impresso, objeto mais geral de nossa pesquisa. O jornal DC pertence ao grupo RBS, uma empresa multimídia regional que opera no sul do Brasil. Fundada em 1957 por Maurício Sirotsky Sobrinho, a RBS opera rádio, televisão, jornal, internet, serviço de informação e uma fundação social. No Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, a empresa conta com 6 jornais, 22 estações de rádio, o clicRBS (portal de internet com conteúdo regional), com programações totalmente voltadas para as realidades locais e uma empresa de marketing de precisão – RBS Direct. É a maior rede regional de televisão do país –

17 emissoras afiliadas à Rede Globo, duas emissoras de TV comunitária e uma operação no Segmento Rural.32

Apresentado como líder de mercado em Santa Catarina, o DC foi implantado em 1986, quando atingia a marca de 166 municípios catarinenses, com uma circulação média de 26 mil exemplares. Atualmente, está presente em 246 municípios dos 293 existentes no estado e seu número de leitores está por volta de 400 mil em todo o estado.33

Segundo informa a página institucional do jornal na internet (www.rbs.com.br), uma pesquisa do Ibope de junho de 2003 apresenta alguns resultados que podem ser úteis para entender o auditório envolvido na situação de interação em que o jornal está envolvido. O perfil demográfico e socioeconômico dos leitores demonstra que a faixa etária que mais lê o jornal está situada entre os 25 e 39 anos e 68% dos leitores pertencem às classes A e B.

O setor de carta do leitor ocupa, no momento da tomada de dados, meia página e está inserido na editoria de opinião do jornal impresso. Em depoimento informal, Cláudio Thomas (2004), editor-chefe do setor de opinião, manifestou intenção de aumentar para uma página, buscando uma interatividade cada vez mais estreita com o leitor. Ele acrescentou que essa necessidade vem no bojo das transformações que a internet trouxe consigo. Se a relação do leitor com o jornal antes estava, na maioria dos casos, atrelada ao deslocamento até uma agência dos Correios, gerando um descompasso razoável entre o que foi publicado e o que o leitor pretendia manifestar (ele dá o exemplo de um leitor que morasse no oeste do estado), com o advento do e-mail, a relação tornou-se o mais próxima possível.

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Os dados foram retirados de www.rbs.com.br, em 5 de julho de 2004.

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Thomas enfatizou que há casos em que o leitor emite opiniões no mesmo momento em que está com o jornal em questão nas mãos, se não o está lendo via rede.

De acordo com o editor de opinião Flávio José Cardozo Júnior (2004)34, responsável direto pelo setor de cartas do leitor (desde março de 1999), o DC publica, em média, 8 ou 9 cartas em um grupo de 30 ou 40 correspondências recebidas por dia. A presença maciça de e-mails é uma constante que acarretou algumas distinções em relação aos mecanismos de manifestação do leitor. Cardozo Jr. acrescentou que é possível perceber diferenças entre os leitores que optam por um modo ou outro de enviar a correspondência. Segundo ele, cartas pelos Correios são enviadas, geralmente, por pessoas mais humildes e aposentados. Em relação aos temas abordados, enfatizou que pessoas de renda mais baixa escrevem, quase sempre, para falar de assuntos relacionados diretamente ao seu dia-a-dia – citando como exemplos, uma rua esburacada, falta de ponto de ônibus, falta de água etc. Quanto aos e-mails, estes vêm com assuntos relativos à defesa do meio ambiente, defesa dos direitos do consumidor, apreciação mais aprofundada dos cenários econômico e político.

A origem das correspondências também foi afetada pelo advento da internet. Se, há alguns anos, a origem estava concentrada nos leitores presentes no estado de Santa Catarina, já é perceptível uma presença de leitores de outros estados e até outros países (no caso, leitores da versão eletrônica do jornal), embora o editor reiterasse que a maioria das correspondências enviadas seja de pessoas que vivem na grande Florianópolis. De qualquer modo, a orientação que os editores recebem é que publiquem cartas de origens diversas, no intuito de ampliar os horizontes do jornal.

34 Flávio José Cardozo Júnior, gentilmente, concedeu uma entrevista e entregou, por escrito,

informações importantes a respeito do seu trabalho no setor de cartas do leitor do DC, em 10 de junho de 2004.

Detalhando as orientações para o setor de cartas do leitor, Cardozo Jr. destacou os seguintes pontos levados em consideração na seleção das cartas a serem publicadas:

- Diversificar os temas e as origens das cartas (cidades).

- Conferir, por telefone, a existência do cidadão e sua identificação. - Não publicar quando se trata de ofensas a uma pessoa ou quando o tema abordado pode gerar processos contra o leitor e o jornal, por falta de provas ou acusações vagas.

- Em época de eleição, evitar cartas que elogiem ou critiquem políticos, parlamentares, prefeito, governador. Mas podemos, naturalmente, publicar cartas que denunciem a fragilidade de infra-estrutura da cidade tal, a desorganização de um setor da administração pública, mau atendimento de funcionários públicos etc. Neste caso, deve-se usar o bom senso para diferenciar uma crítica à pessoa do administrador da crítica ao estado geral do local onde o leitor vive.

- Denúncias contra empresas (má qualidade do serviço prestado, produto não entregue em data previamente combinada, defeitos em aparelhos etc) devem ser checadas com cuidado redobrado, e as empresas contatadas posteriormente para que possam se defender. [...]

- Damos preferência às cartas que têm importância social (denúncia de um buraco perigoso em rua movimentada, falta de iluminação em tal lugar, ação de marginais em uma área, falta de água etc), mas não podemos desprezar os que escrevem apenas por prazer – no futebol, por exemplo, época de início ou final de campeonato sempre rende muitas cartas, e o jornal busca leitores, é claro. (CARDOZO JR., 2004, não paginado).

Situando a relação leitor-jornal, Cardozo Jr. ressaltou que há uma certa constância de assuntos nos leitores que escrevem com freqüência maior, assuntos esses, muitas vezes, relacionados às profissões que exercem ou exerceram (há uma quantidade significativa de leitores que se declaram aposentados). Percebe-se uma tendência a defesas de pontos de vista que visem ao benefício de setores específicos da população, com as conseqüências associadas a essas escolhas.

Um aspecto ressaltado na entrevista vale ser relatado: a enorme presença de cartas relacionadas ao futebol. Segundo Cardozo Jr., existem leitores que ficam indignados pela suposta predileção em publicar cartas elogiando ou criticando determinado time de futebol. “O curioso é que tanto os de um lado como os de outro acusam o jornal de privilegiar o rival” (CARDOZO JR., 2004, não paginado). Outro

dado interessante é a constatação que o editor fez em relação às ocupações destes torcedores exaltados: em geral, auxiliar de escritório, bancário, comerciante e estudante.

O editor observou outro grupo de leitores bastante habitual: pessoas que buscam exibir-se como se estivessem em uma vitrine, por diversas razões, desde exibicionismo puro, até por se acharem merecedores de cadeira cativa, pela constância com que escrevem.

Como se vê, estamos diante de uma situação de interação em que transitam diferentes objetivos quando se escreve uma carta para o jornal. Há uma esfera social organizada e regida por ações convencionadas pelos participantes dela. O auditório é complexo e dá margem a uma miríade de situações de interação. Se o leitor é alguém de origem humilde, muitas vezes, busca no jornal o espaço para emitir sua voz através de um meio cercado de mais autoridade, abrindo mais possibilidades para solução de seus problemas. Já existem aqueles que escrevem no intuito de mostrarem-se capazes a ponto de tornarem-se participantes ativos do jornal. Em época de eleições, especialmente, o editor pontuou que os partidos arregimentam “leitores” que devem ater-se apenas em encontrar, nas cartas publicadas, menções passíveis de contestação pelos candidatos a que estão ligados. São verdadeiros “olheiros” atentos a quaisquer deslizes. O cuidado, nessa época, é redobrado na aferição das manifestações a serem publicadas.

Como forma de revelar um pouco mais a respeito do perfil de leitores que se dirigem ao jornal, serão apresentados alguns números levantados pelo editor.

Mês de setembro de 2003: Total de cartas – 217 E-mails – 133 Cartas – 52 Faxes – 32

Transporte/ trânsito/ estradas – 40 Segurança/ criminalidade – 15 Cidades – 15 Futebol – 12 Política – 10 Saúde – 10

Meio ambiente/ ecologia – 9 Festas rave – 9

Salários – 8

Educação/ cultura – 7 Prates (colunista do DC) – 6 Serviço público (elogios) – 6 Homossexuais - 435

Definida a esfera social, com seu auditório (conjunto de interlocutores afeitos a ela) e sua situação social especificados, o próximo passo foi fazer uma breve análise da dimensão verbal do gênero carta do leitor, tomando como recorte teórico as noções bakhtinianas, já explicitadas, de já-ditos e reação-resposta ativa. A opção por essas noções foi em função da proposta de trabalho, ou seja, de buscar uma metodologia de ensino-aprendizagem de leitura sob um escopo dialógico. Ora, se pudermos fazer o aluno perceber a articulação entre o texto e essas noções, parece que fica mais evidente a percepção de que um texto é sempre um elo numa cadeia de enunciados. E a carta do leitor é um gênero do discurso em que se evidenciam claramente tanto os já-ditos quanto as reações-resposta ativadas pelos envolvidos nessa prática social, conforme apresentaremos a seguir.