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Dimensões do trabalho em processos de estágio

4.1 FORMAÇÃO PELO TRABALHO: O ESTÁGIO SUPERVISIONADO OBRIGATÓRIO EM

4.1.3 Dimensões do trabalho em processos de estágio

Diferentes dimensões sobre o trabalho de assistentes sociais, especialmente no campo das políticas sociais, que atravessam o cotidiano de trabalho de estudantes em estágio supervisionado obrigatório, já foram discutidas ao longo do capítulo 3. Entretanto, outras dimensões se apresentaram nos dados, como as implicações éticas derivadas das condições em que o trabalho se realiza, o lugar que estagiárias/os ocupam nas instituições e nas relações de trabalho e o sentido do trabalho para estas/es estudantes.

A adoção de medidas neoliberais, fundamentadas no receituário neoliberal, vem efetuando desmonte das políticas sociais públicas, espaço de inserção das/os estagiários participantes da pesquisa. Cada área e setor de política social tem particularidades. Por exemplo, a Política de Saúde alcança no imaginário social a noção de direito público, fazendo com que haja uma maior pressão social por meio de movimentos sociais e da própria mídia para garantia deste direito, ainda que exista a tendência cada vez mais ampla de privatização do acesso por meio de planos de saúde privados. Já a Política de Assistência Social tem, em sua história, como mostra Couto (et al., 2010), a marca de não política, alcançando este estatuto apenas com a Constituição Federal de 1988.

Estas diferenças se expressam também nas condições de trabalho em cada área de política social, sendo váriáveis o território que ocupa, o nível de atenção à população, a força política de gestores e a mobilização de trabalhadores e usuários, entre outros. As condições de trabalho de ordem estrutural são as condições físicas do local e os recursos materiais que viabilizam o trabalho. Já as condições de trabalho de ordem relacional são as que incidem em recursos humanos, hierarquias, relações de poder. Influenciadas por modelos de gestão da força de trabalho, podem ser colaborativas e/ou competitivas, articuladas ou fragmentárias.

Nas entrevistas, o aspecto referente à precarização das condições de trabalho, que aparece de forma generalizada nos campos de atuação das/os participantes da pesquisa, é a insuficiência de profissionais para atender de forma qualificada a demanda que chega até os serviços:

Então, às vezes, a coordenação faz pedidos para essas questões e não é atendido, por exemplo, encaminhamento de férias, essas questões dos profissionais, ponto, o serviço social tem que fazer, porque não tem outra pessoa que faça. Então, está sendo muito sobrecarregado pro profissional do serviço social, essas questões burocráticas mesmo.A equipe toda está bem esgotada por isso, só chega paciente e demanda, demanda, demanda e elas não conseguem fazer um trabalho bem desenvolvido, elas não têm tempo. Então, elas têm que começar a rever isso, começar a fazer uma reciclagem, só pegar as questões mais emergentes, e elas ficam bem desconcertadas com isso, eu vejo, eu participo da reunião semanal, com toda equipe, e é uma questão bem burocrática, bem da gestão, bem de cima. Então, elas não conseguem mais dar conta e é pela falta de profissionais, por falta de material também, inclusive para trabalhar, falta material de escritório, essas coisas básicas, né? (ENTREVISTA 1, 2014) [...] Esse acompanhamento familiar é um dever do CRAS fazer, só que eles não faziam, a demanda, muita demanda, o número de profissionais, coisa e tal, mesmo a gente não conseguindo atender todos, porque tem uma lista de famílias para ser acompanhadas, as famílias que a gente está

acompanhando e fazendo dessa forma, a gente consegue ver que tem um resultado positivo. (ENTREVISTA 3, 2014)

A insuficiência de recursos humanos, nas instituições que prestam serviço à população, incide em implicações éticas no que tange à qualidade do serviço prestado, à possibilidade de acompanhamento continuado e articulado com outras áreas, como podemos evidenciar relacionando estes trechos de falas com outros elementos que também emergiram neste estudo. A “reciclagem” sobre a qual a estagiária fala na primeira narrativa é o perverso processo de escolher o que será atendido, aquilo que é urgente e emergencial. É a lógica de “apagar incêndios”, decorrente da própria precarização do trabalho, que acaba por não permitir ultrapassar a imediaticidade e desemboca na utilização pragmática de certas metodologias de trabalho.

A precarização do espaço físico também resulta em implicações éticas em relação à qualidade do atendimento em diferentes aspectos, como observamos na seguinte narrativa:

Bom, as condições de trabalho são as mesmas condições de vários espaços da assistência, assim, são uma coisa que me chamou bastante a atenção, quando eu cheguei lá, as dependências são muito pequenas, não são adequadas. E como tu vai dizer para uma família que a criança está melhor aqui do que na casa dela, se por exemplo, aqui ela tem que dormir no chão? Coisas desse tipo, atendimento não tem assim vamos dizer uma sala privativa, tu cria espaços privativos, bom, pede licença pros colegas, utiliza uma sala de outro espaço, enfim, mas tu tá sempre tomando o espaço de outros, não tem um espaço distribuído e isso é muito ruim, porque tu tem psicólogos que atendem ali, tu tem assistentes sociais, tem que fazer esse atendimento privativo das famílias, não tem como acomodar por exemplo, tu chama uma mãe para entrevista, vêm uma com três, quatro filhos, precisa de um espaço para acomodar aquelas crianças e muitas vezes não tem. Então, são espaços que sofrem essa precariedade de investimento, ham, como quaisquer outros. (ENTREVISTA 2, 2014)

Deste depoimento é possível extrair pelo menos dois aspectos fundamentais. O primeiro se refere à precarização do espaço físico em serviços de permanência de usuários/as, como os serviços de acolhimento institucional. Neste caso, o serviço que é local de trabalho de assistentes sociais e outras profissões assume função de moradia – provisória ou permanente – de sujeitos em situação de vulnerabilidade e/ou risco social. Assim, a precarização no espaço de trabalho é, sobretudo, a precarização do espaço de proteção e acolhimento destes sujeitos.

O segundo aspecto é em relação ao direito ao sigilo e a atendimentos privativos. “O sigilo é parte de todas as profissões liberais e sua polêmica decorre da possibilidade de quebra do sigilo, pois coloca dúvidas acerca de sua justificação, em outras palavras: em quais situações seria correto quebrar o sigilo?” (BARROCO, 2012, p. 92). Entretanto, antes mesmo de entrar nesta polêmica, é preciso observar que as condições estruturais de trabalho incidem na possibilidade ou inpossibilidade de garantir este direito que, segundo o Código de Ética (1993), é tanto um direito do usuário como um dever e um direito profissional.

No referido depoimento verificamos, ao mesmo tempo, a crítica em relação às condições de trabalho, a criação de alternativas na busca de garantir o sigilo e o atendimento privativo, mas também um certo tom de banalização e generalização quando refere que o espaço em que está inserida tem as condições de trabalho e sofre da precaridade de investimentos como qualquer outro espaço.

À exceção destas críticas, uma das participantes da pesquisa declara sobre as condições de trabalho: “Muito boas. Tem sala pro atendimento, a questão do cuidado, do sigilo, de ser um local fechado, de que não tenha interferência, sabe? É um local muito bom”. (ENTREVISTA, 5, 2014). Diante destes depoimentos, é possível observar que, em geral, há um alto nível de atenção das/os estudantes em relação aos locais de trabalho e uma visão crítica destes, especialmente no que se refere ao cuidado ético com o sigilo profissional.

O compromisso ético de estudantes, associado com certa ansiedade em dar conta das situações que atendem, pode fazer com que assumam para si a responsabilidade em suprir a ausência de recursos necessários à prestação de atendimento qualificado. Podemos observar esta postura no seguinte depoimento:

Trabalhar nesse sentido para articular essa rede primária com essa rede secundária no [instituição] é muito difícil. A gente não tem como fazer ligações no [instituição], porque quem é funcionário do [instituição], quem é funcionário público recebe uma senha com um número determinado de créditos todo mês, então esses créditos acabam e a gente não tem como ligar. [...] Eu absorvo as demandas do [instituição] e levo pro o meu outro estágio para poder fazer essas ligações, porque a maioria são de cidades do interior, então, não é 51, os que são 51 eu ligo do meu celular, mas se eu for ligar pra todo mundo do meu celular, eu vou ter um gasto imenso, né, que eu não daria conta de manter. (ENTREVISTA 4, 2014)

A ausência de recursos que viabilizem o trabalho entra em choque com a responsabilidade que estagiárias/os assumem com a prestação de um serviço de

qualidade, fazendo com que absorvam para si o suprimento de recursos institucionais. Dessa forma, expressam sentimentos relacionados ao sentido do trabalho em suas vidas.

No que se refere às condições de trabalho relacionais, o principal aspecto evidenciado é que o lugar que estagiárias/os ocupam nas instituições é no esvaziamento das possibilidades das equipes de profissionais. Ou seja, assumem as demandas que as equipes não conseguem dar conta, mas não exercem este trabalho e nem ocupam este espaço de forma neutra. Transformam este espaço em espaço de disputa e possibilidade de garantir direitos, conforme verificamos na seguinte narrativa:

Como o serviço social lá só tem uma assistente social e ela é coordenadora, então, ela não conseguia fazer esse trabalho de articulação, nem de visita domiciliar, nem de visita institucional, por estar suprindo outras questões de coordenação e outras questões internas assim, e é mais uma questão da gestão mesmo, por ela não estar conseguindo, por falta de profissionais, né? [...] Eu observei essa dificuldade que eles enfrentam, e ela enfrenta essas dificuldades de dar conta, a região leste e nordeste é uma região imensa, é uma população bem grande e ela não consegue dar conta de tudo isso. Então, a partir dessas observações que eu fui fazendo, participando das reuniões da rede, do matriciamento, né? Da redinha que eles chamam, que é uma equipe menor [...]. (ENTREVISTA 1, 2014)

Na sequência do relato, a estagiária aponta que foi a partir desta observação que elaborou seu Projeto de Intervenção, atendendo tanto à uma necessidade da população atendida como à um desejo da equipe profissional que não conseguia efetivar determinadas ações devido à sobrecarga de trabalho e insuficiância de recursos humanos. Neste mesmo sentido, outra estudante relata:

A gente tem uma demanda muito grande do judiciário também, tem tardes que eu passo a tarde produzindo documentação, isso é cansativo, mas é necessário, pois, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente, eles têm direito a uma revisão a cada 6 meses dessa documentação, e a gente tem que fazer. Foi uma das coisas que eu procurei me apropriar muito rapidamente, porque eu tinha uma ânsia muito grande de ver isso acontecer, será que é revisado mesmo? Aí eu percebi que em muitos casos não. Esse abrigo, a equipe que eu trabalho, atende na verdade dois espaços de acolhimento, então, olha que complicado. [...] A gente atende 90 e poucas crianças dormindo. E uma assistente social e uma psicóloga, para todas essas famílias, entende? (ENTREVISTA 2, 2014)

Diante destas narrativas, evidenciamos que há, por parte de estudantes quando ingressam no estágio supervisionado obrigatório, não apenas o desejo e a

motivação em apreender o trabalho profissional através da experiência teórico- prática. Há também uma forte motivação em contribuir com os espaços de trabalho, inserir-se nos processos de trabalho e participar do produto deste trabalho coletivo, imprimindo a direção ético-política de garantia de direitos.

O Código de Ética do/a Assistente Social (1993) regulamenta, em seu artigo 4°, que é vedado ao/a assistente social “compactuar com o exercício ilegal da profissão, inclusive nos casos de estagiários/as que exerçam atribuições específicas, em substituição aos/às profissionais”. Ou seja, estagiárias/os de Serviço Social podem participar dos processos de trabalho em equipe tendo supervisão direta de assistentes sociais, porém não é permitido que substituam o trabalho de profissionais.

A tendência na contratação do elevado número de estagiarias/os – não apenas no Serviço Social, mas de forma geral na divisão sociotécnica do trabalho – é estes serem considerados “mão de obra barata”, contribuindo para amenizar o déficit de recursos humanos nas instituições e evitar a necessidade de contratação de profissionais, já que isso eleva o custo na administração privada ou pública. É exatamente este o lugar que, de acordo com os depoimentos das/os estudantes participantes da pesquisa, estas/es ocupam o seio das relações de trabalho nas instituições.

Este processo é contraditório porque, se por um lado o trabalho de estagiárias/os em Serviço Social ameniza o déficit de profissionais para atender as necessidades da população, por outro, o realizam com motivação para inserir processos contra-hegemônicos nas instituições, em encontrar o sentido do trabalho e isso instaura processos de aprendizagem sobre o exercício profissional de assistentes sociais.

A satisfação simbólica no trabalho trata “da vivência qualitativa da tarefa. É o sentido, a significação do trabalho que importa nas suas relações com o desejo” (DEJOURS, 1995, p. 62). Trata-se da realização humana por meio do trabalho, que se relaciona com os desejos e as motivações e “depende do conteúdo que a tarefa veicula do ponto de vista simbólico”. (DEJOURS, 1995, p. 62)

O sentido do trabalho parte das motivações construídas ao longo da história social dos sujeitos, da fruição e ressignificação que encontram para estas motivações durante a formação profissional, e ganha objetividade na mediação entre

o que a necessidade e a liberdade no seio do possível nas instituições em que ingressam para realizar o estágio supervisionado obrigatório.

E - E por exemplo, os pacientes que não têm nenhum tipo de renda, por exemplo, a passagem que o [instituição] fornece é da rodoviária até a cidade de origem, né, então se a gente libera um paciente que não tem benefício, por exemplo, que não tem nenhum dinheiro no [instituição], a gente tem que dar dinheiro do nosso bolso pra ele pagar a passagem até a rodoviária, no ônibus municipal metropolitano, para que ele possa ir até a rodoviária, se não, não tem como ele chegar.

P - E do “nosso bolso” do bolso de ti mesmo?

E - O meu dinheiro dou pra ele, porque o [instituição] não tem um fundo para esses pacientes que não tem benefício, por exemplo, tem um paciente que está me devendo R$ 10,00 que está em AP. Mas eu estou feliz, porque ele se manteve, ele faz parte do meu projeto [de intervenção]. (ENTREVISTA 4, 2014)

Novamente, neste relato é possível constatar a precariedade dos recursos institucionais atravessando o trabalho e a intervenção, e, ao mesmo tempo, o grau de responsabilização do estagiário ao emprestar dinheiro para garantir a locomoção do usuário atendido. Por outro lado, chama a atenção o fato de que, mesmo diante da precariedade, o estagiário refere sentir-se feliz pelo fato de tal usuário ser atendido em vias de seu Projeto de Intervenção. É possível interpretar que o resultado do trabalho e o sentido que isso provoca no estagiário enquanto trabalhador possui mais conteúdo valorativo do que o dinheiro emprestado.

Em que pese a importância da satisfação simbólica na construção da identidade do/a trabalhador/a, é necessário um cuidado ético-político tendo em vista que a materialidade dos atos provoca significados no tecido social. Como visto no subcapítulo 2.2.1, a frustração profissional em não conseguir atuar em uma perspectiva integral, em dado momento histórico da profissão, fazia com que assistentes sociais buscassem satisfação na possibilidade de prestar certo apoio emocional e financeiro aos até então denominados “clientes” (FALEIROS, 2011).

Tanto a frustação decorrente da inviabilidade do trabalho como a satisfação simbólica com relação ao conteúdo do trabalho realizado precisam ser problematizadas nos espaços de supervisão de estágio. Isso não significa desvalorizar a satisfação simbólica encontrada no sentido do trabalho. Ao contrário, “uma vida cheia de sentido fora do trabalho supõe uma vida dotada de sentido dentro do trabalho” (ANTUNES, 1999, p. 175).

E - Eu trabalho em uma empresa, vamos dizer, é um trabalho burocrático, administrativo, que eu me sinto totalmente infeliz fazendo. Eu abri mão do meu trabalho – que não é grande coisa, mas que a maioria das pessoas gostaria de ter, da minha sala com ar condicionado, da minha mesa, computador, impressora – para trabalhar no [instituição] que tu divide tudo. Tu divide computador, tu não tem mesa para trabalhar e mesmo assim eu acho que ali está o verdadeiro sentido do que tu faz nesse mundo, nessa vida.

P - E o que é esse sentido pra ti?

E - É esse contato com as pessoas, fazer alguma coisa que vá contribuir com as pessoas, que vá mudar de alguma forma, não viver isoladamente. (ENTREVISTA 3, 2014)

O sentido do trabalho produz utopia, motivação, negação do fatalismo, energia transformadora fazendo com que estudantes em estágio não se imobilizem diante da precarização nos espaços de trabalho, da dificuldade nas relações com as equipes, da fragmentação nas redes de serviços. O desejo e a motivação em contribuir socialmente, não confundido com romantismo ou idealismo, é motor da construção de possibilidades de transformação dentro dos limites e barreiras institucionais e sociais.

4.2 O ENTRELAÇAMENTO DO VELHO COM O NOVO NO SERVIÇO SOCIAL: