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Primeiramente, farei referência às dimensões-chave para análise da anatomia das universidades, referidas por Tristan McCowan (2016) – valor, função e interação, considerando a abordagem desse autor para falar sobre cada um desses conceitos.

A dimensão de valor está compreendida como a razão da existência da universidade, o seu propósito, reconhecendo a educação como direito social e bem público. Além disso, considera relevante a formação de sujeitos, o aprofundamento da cidadania e a democratização da sociedade.

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Para McCowan (2017 p. 8), “nenhuma universidade jamais terá um conjunto unitário de valores: sempre haverá alguma diversidade de perspectiva”, devido aos diferentes grupos que nela convivem e com os quais ela se relaciona, tanto interna como externamente.

Essa dimensão proposta por McCowan está dividida em valor intrínseco, tendo o conhecimento como algo que vale por si mesmo, sem qualquer justificativa adicional; e valor instrumental, que serve a objetivos individuais e sociais e a interesses econômicos, políticos ou culturais. Os dois eixos não são excludentes, complementam-se, de modo que consideram a formação humana como matéria-prima, produzindo e disseminando conhecimentos e possibilitando a vivência de valores fundamentais da vida.

Três elementos podem ser destacados na dimensão valor: (a) Individualização:

contempla a valorização daquilo que o indivíduo tem preferência em aprender, personalizando a aprendizagem. No entanto, McCowan (2018, p. 473) menciona que é preciso ter cuidado para que esse movimento não se exceda e leve à desagregação, havendo “um aumento significativo na escolha individual sobre o que é aprendido”. Isso feito em excesso poderia remover a orientação coletiva da instituição, ocasionando a fragmentação ou a multiplicidade de valores ao extremo; (b) Bem público: remete ao compromisso da universidade em estimular o engajamento e o debate coletivo, tendo o conhecimento ao alcance de todos; (c) Ação afirmativa: refere-se às questões de igualdade e justiça social, ampliando a possibilidade de ingresso no ensino superior.

Infelizmente, o valor social foi dando espaço para o valor comercial, e o bem público foi sendo substituído por bens de consumo. Por esse motivo, segundo McCowan (2018), as instituições vêm sendo influenciadas por dois grandes processos:

- Comoditização (Commodification): processo de conversão de serviços ou produtos em insumos lucrativos. Nesse sentido, a atenção está voltada para a geração de renda por meio do que é potencialmente lucrativo.

- Desagregação (Unbundling): processo pelo qual “os produtos anteriormente vendidos em conjunto são separados em suas partes constituintes” (McCOWAN, 2018, p. 464).

A desagregação traz consigo alguns sinais preocupantes que McCowan adverte como sendo: a remoção de possíveis sinergias entre ensino e pesquisa; o enfraquecimento da capacidade das instituições de promover o bem público e garantir a igualdade de oportunidades; e a ameaça da hiperporosidade. Alguns consideram a desagregação como algo desejável e inevitável, enquanto outros lhe conferem o status de uma grande ameaça para as instituições. Um exemplo desse processo são os cursos on-line abertos e massivos – Massive Open Online Courses (MOOCs).

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Os processos de comoditização e desagregação podem gerar alguns tensionamentos para a dimensão de valor, pois, de acordo com McCowan (2016), o valor instrumental corre o risco de ser percebido como valor de troca, e o conhecimento passa a ser valorizado pelo valor que pode obter no mercado, enquanto a universidade passa a criar e disseminar os conhecimentos que representam maior receita em relação ao custo. Observa-se que nesse contexto está em jogo o valor que é conferido ao conhecimento.

No âmbito da dimensão de valor está o reconhecimento da importância das instituições de nível superior na formação humana ao considerar o conhecimento e a sua influência na construção do viver bem em sociedade.

No que tange à dimensão função, é pertinente a abordagem de McCowan (2016) ao considerá-la como sendo a representação das variedades de papéis e diferentes atividades que a instituição realiza no processo de produção, armazenamento, transmissão e aplicação de conhecimento.

De acordo com McCowan (2016), para bem cumprir a sua função, as universidades têm o desafio de buscar a indissociabilidade da coexistência mutuamente benéfica dos pilares de ensino, pesquisa e extensão, bem como a sinergia entre eles. Por isso, a função está voltada para práticas organizacionais em torno desses três pilares constitutivos das universidades.

A dimensão da função também sofre algumas tensões advindas da globalização, mercantilização e desagregação. McCowan (2018) destaca o fato de que a desagregação pode trazer resultados preocupantes para a dimensão da função, pois, em alguns casos, a fragmentação do ambiente de ensino e de aprendizagem pode apresentar resultados negativos, prejudicando os aspectos relacionais envolvidos. Além disso, outras consequências podem ser a dissociação entre o ensino, a pesquisa e a extensão; a ameaça à promoção do bem público e da igualdade de oportunidades por parte das instituições; e a perda de espaço para reflexões profundas e de autonomia para realizar atividades de ensino e pesquisa.

A dimensão de interação é compreendida como a ligação, o vínculo entre a universidade comunitária e a sociedade, considerando o ensino, a pesquisa e a extensão para a tradução do conhecimento produzido para a comunidade. Nessa dimensão, encontra-se a possibilidade de acolhimento das demandas externas como oportunidade de produção de conhecimento e contribuição para o desenvolvimento local.

Sobre as formas de relacionamento entre a universidade e a sociedade, McCowan (2016) observa que algumas universidades são mais “porosas” do que outras. O pesquisador britânico apresenta a porosidade como um processo de aproximação à sociedade e um potencial de trabalho em prol do bem comum, valorizando a comunicação do conhecimento. O autor

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menciona ainda a existência da porosidade inbound (entrada), representando a disposição das instituições para o diálogo com a sociedade, trazendo para dentro das universidades os conhecimentos produzidos externamente, demonstrando abertura para ideias e atores sociais.

Também faz referência à porosidade outbound (saída), evidenciando a atitude de comunicação dos conhecimentos produzidos na universidade à sociedade. Aqui cabe uma reflexão sobre a disposição das instituições para que isso realmente aconteça, de modo a promover a interação com diversos segmentos sociais.

McCowan (2016) observa que é preciso ter cuidado com a hiperporosidade, dado que isso pode acarretar a perda de espaço para reflexão profunda, a perda de autonomia para as atividades de ensino e pesquisa e o desaparecimento das fronteiras entre a universidade e a sociedade. Essas fronteiras entre universidade e sociedade servem para mostrar os papeis e a importância de cada ente. Se isso não ocorrer, o reconhecimento dessas partes perde o sentido e pode levar ao isolamento, com carência de interações.

As tensões observadas para a dimensão da interação, podem ser sintetizadas diante da preocupação com as pressões do mercado, a baixa porosidade e também a porosidade em excesso.

Percebe-se uma relação entre a dimensão de interação e a política de extensão das universidades, pois, de acordo com Longo (2019, p. 148), “a extensão distingue-se das atividades de ensino e pesquisa por constituir um processo metodológico que indaga pela relevância social do ensino e que procura, por meio da pesquisa científica, referências objetivas aos problemas reais que envolvem a sociedade”.

O quadro síntese construído por McCowan (2016), expresso a seguir, Quadro 6, apresenta os modelos institucionais de universidade e a relação entre e as tendências para cada dimensão.

Quadro 6- Modelos institucionais de universidade

Value Function Interaction

Medieval Intrinsic/Instrumental Stewardship and transmission Low porosity

Humboldtian Intrinsic/Instrumental Discovery Medium porosity

Developmental Instrumental (service) Application High porosity

Entrepreneurial Instrumental (exchange) Commercialisation High porosity Fonte: Elaborado por McCowan (2016, p. 512).

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Em relação ao quadro anterior, o modelo Humboldtian de universidade representa aquele que mais aproxima-se das ICESs, considerando as características já apresentadas das universidades comunitárias, visto ter uma interação com média porosidade, afastando-se da baixa porosidade que simboliza o perfil de uma instituição que não é aberta à sociedade, enquanto a alta porosidade encaminha a universidade para a mercantilização, voltada apenas para fins comerciais, e isso também é algo distante das ICESs. Além disso, a função desse modelo está associada à possibilidade de descoberta do mundo a sua volta, enquanto os outros estão direcionados para a comercialização, aplicação e transmissão. A dimensão de valor, representada pelo caráter instrumental e intrínseco, está presente no modelo Medieval e Humboldtian, enquanto apenas o caráter instrumental está associado às universidades voltadas ao desenvolvimento e empreendedorismo.

A seguir, no Quadro 7, foram sintetizadas as possíveis tendências a partir dos modelos institucionais – mercantilização e desagregação – e a relação com as dimensões de valor, função e interação.

Quadro 7- Tendências de modelos institucionais e a relação de valor, função e interação

Value Function Interaction

Commodification Exchange Determined by demand High porosity Unbundling Multiple / fragmented Knowledge packaging and

delivery

Hyper-porosity

Fonte: Elaborado por McCowan (2016, p. 517).

Ambos os modelos apresentados como tendências têm uma interação de alta porosidade, o que é preocupante para as instituições, de acordo com as explanações já detalhadas sobre o tema. Por sua vez, as instituições que se voltarem para o modelo de mercantilização tendem a priorizar os valores baseados em trocas, e sua função estará determinada pelas demandas do mercado. Já os modelos que aderirem ao fenômeno da desagregação terão a multiplicação e fragmentação de valores, além da função institucional estar voltada para um sistema que embala e entrega o conhecimento, o qual passa a ser comercializado de modo fragmentado.

Ressalto que a minha aproximação à perspectiva teórica apresentada por McCowan (2016), como suporte para estudar a popularização da ciência a partir do olhar dos pesquisadores em uma ICES, está relacionada aos posicionamentos críticos do autor ao

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expressar que “as instituições e os estudantes emergentes delas (das universidades) deveriam contribuir muito mais para a sociedade e para os seus membros menos favorecidos do que fazem atualmente” (McCOWAN, 2015, p.170). Segundo esse pesquisador, “o ensino superior também é percebido de forma distante das necessidades da sociedade” (2018, p. 465). Além disso, conforme já mencionado anteriormente, o autor faz referência ao processo de aproximação da sociedade e um potencial de trabalho em prol do bem comum, valorizando a comunicação do conhecimento.

A perspectiva apresentada por McCowan (2015) possibilita o resgate dos relatos dos participantes dos grupos focais, apresentados para potencializar a justificativa de realização deste estudo. A fala daquelas pessoas também clama pela aproximação da academia com a sociedade e com isso reforça a compreensão de que as análises de especialistas científicos que olham para essas interações em prol do bem comum estão em sintonia com as reivindicações dos representantes do senso comum, consolidando um solo fértil a ser cultivado pela premissa da popularização da ciência.