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Diques de contenção A instalação do recalcamento originário

No documento 2019VivianNolasco (páginas 74-77)

Em Freud (1895), os signos de percepção provenientes das experiências de satisfação inauguram a pulsão, o auto-erotismo e a alucinação primitiva, todos esses movimentos fundantes de valor vital. Somado a eles, temos as vias colaterais de ligação, que produzem uma detenção para a fruição pulsional irrefreável, necessárias para que aconteça a complexização do psiquismo em instâncias superiores. É necessário que a função narcísica ligante, manifesta na visão totalizadora que a mão tem do bebê, “esteja atravessada por uma proposta da cultura em que a cria seja impelida a aceitar certas renúncias pulsionais que abrem vias de sublimação” (BLEICHMAR, 2005, p. 312).

Bleichmar (2005, p. 312) procura delinear um percurso possível para as operações psíquicas que, por meio da renúncia materna, conduzirão, no bebê, ao abandono dos prazeres primários. Essa complexa operação psíquica é denominada de recalque originário. Antes do recalque originário, a pulsão destina-se a se satisfazer, ou tramita por outras vias que não poderemos abordar no escopo deste estudo. Esse é um tempo muito arcaico e precoce de um aparelho psíquico ainda em constituição, ainda sem uma ancoragem que venha demarcar o lugar do sistema inconsciente para nele fixar então os representantes pulsionais – aqueles que não mais deverão ter o destino da satisfação – e sem que exista ainda um Eu que dê cabida à posição de sujeito.

Para que o aparelho se espacialize – e se especialize – terão que incidir, sobre os primeiros modos de satisfação pulsional direta, as interdições primárias. Elas são “renúncias pulsionais, proibições relacionadas à constituição do eu” ((BLEICHMAR, 2005, p. 94). As

interdições primárias, como deixar de mamar no seio, não-chupar o dedo, controlar os esfíncteres, constituem uma contra-força frente à satisfação pulsional, um contra-investimento. A materialidade deste contra-investimento ganha vida na relação que o adulto tem com a lei moral e com suas próprias renúncias. De outro modo, como um bebê que suga seu dedinho, que chupa o bico em deleite, iria conseguir energia e força para abrir mão desta forma prazerosa se não fosse, uma vez mais, com o auxílio da intervenção alheia, da pessoa experiente que vai sustentar essa interdição?

A contra-força que a mãe executa decorre de seu próprio repúdio a tolerar que o filho siga chupando o dedo, o bico, mamando na mamadeira, que faça xixi nas calças sem avisar. O repúdio e o asco da mãe fazem limite para a liberdade do filho. Necessariamente, a aplicação do contra-investimento essa “força de ordem contrária” (BLEICHMAR, 2005, p. 312) precisará conter em si uma intensidade igual ou maior que a exigência pulsional para, num mesmo movimento, operar na fixação da pulsão e, na medida em que ocorre essa fixação, fundar o sistema Inconsciente – especializar – como lugar, como topos psíquico – espacializar. Depreende-se, desta articulação, que as primeiras operações do recalcamento originário irão repartir aquilo que antes era uma região indiferenciada depositando, por fixação, os representantes pulsionais da satisfação primária no inconsciente.

Se exitosas, as interdições inauguram no bebê a renúncia ao autoerotismo. A fixação da pulsão e seus representantes funda a diferença entre os sistemas psíquicos, originando o Inconsciente e abrindo outro território que virá a ser o Eu. A vigência do recalque originário se verifica na consolidação da instauração dos sistemas psíquicos diferenciados “o pré-consciente- consciente como modo de operação da lógica e o ego como lugar de investimentos narcisistas, como sede do sujeito” (BLEICHMAR, 2005, p. 116).

Uma metáfora que permite transformar em imagem plástica a ideia da interdição primária são os diques de contenção que ‘contra-investem’ a força do mar na Holanda, assegurando a existência e habitabilidade de seu território. Na Holanda, país que tem uma porção de seu território abaixo do nível do mar, a contenção da inundação da água em seus limites é realizada por diques. Graças a eles a torrente marinha do Mar do Norte, que destruiria sua integridade, fica contida. Assim também acontece ao psiquismo. Por exemplo, o primeiro modelo de renúncia pulsional é o desmame. O movimento de abandonar o seio, movimento de renúncia a este objeto de satisfação, não pode ser feito somente pelo bebê. Tampouco a passagem do tempo ou a maturidade neurológica levariam o pequeno a abandonar este objeto da pulsão. É a mãe quem coloca a interdição. Ela é quem primeiro deve renunciar a seguir amamentando. Desta renúncia materna, o bebê poderá retirar a força, a energia para renunciar

também. A renúncia materna funciona ao molde de um dique que contém a energia pulsional contra-investindo sua força. Essa interdição materna, ao mesmo tempo que proíbe, oferta uma força que é capital para a renúncia do filho. Em sendo assim:

a sexualidade inconsciente recalcada do adulto, propicia a implantação da pulsão, é seu recalque, a existência de uma pautação, o que garante, no interior de cada cultura, os limites de apropriação do corpo do outro humano – e em primeira instância da cria como outro indefeso -, condição do recalque originário (BLEICHMAR, 2005, p. 118).

O controle esfincteriano empresta outro exemplo das primeiras renúncias pulsionais da criança. Nele “a criança proíbe a si mesma um prazer ligado às fezes por amor à mãe, por amor ao outro” (BLEICHMAR, 2005, p. 119). A ação do recalque é mais uma ação específica e vital proveniente do semelhante que prova a prioridade do outro na instalação da vida psíquica e, por consequência, pode ser compreendida como a chancela ao direito a ser humano. Isto se dá graças ao empréstimo de energia indispensável para a efetivação das renúncias pulsionais no início da vida e por toda vida. Aquilo que for renunciado como forma de satisfação, fixa-se ao inconsciente deixando como sequela, do lado do Eu, uma formação de caráter.

As restrições impostas pelos pais fazem dique e colocam limite à liberdade pulsional na criança. Uma situação como essa só pode ser aceita sob a base do amor que circula entre eles. Ao executar um conjunto de proibições no decorrer do desenvolvimento do filho – primeiro o seio, depois, cada um a seu tempo, a mamadeira, o bico, os cheirinhos apaziguadores, o objeto transicional, o co-leito, as fraldas – os pais, ao mesmo tempo que oferecem o investimento para efetivação das renúncias, também brindam a criança com a possibilidade de poderosas satisfações substitutas para esses prazeres primários destinados ao abandono; tais satisfações substitutas estão ligadas ao amor próprio e ao sentimento de si, que ora se constroem, e que necessitam um incremento de investimentos. Aplaudem alegres o bebê que deixa de chupar o bico, aquele outro que não precisa mais do fraldas; o bebê, por sua vez, se enaltece com os elogios, que assomam como verdadeiros incentivos para prosseguir no abandono dos seus primeiros prazeres, substituindo-os por outras formas de satisfação. Com isso a renúncia pulsional, que para se constituir necessitou força do contrainvestimento dos pais, poderá arregimentar mais potência a partir do ganho narcisista – elogios dos pais, dos familiares, da professora – que o bebê e a criança pequena agora capitalizam a cada renúncia exitosa. Assim o dique interno recebe um reforço que adquire força desbastando justamente a força da satisfação pulsional primária, agora em desuso. Quando esse dique se constituir como estrutura interna no psiquismo da criança, o que antes era renúncia pulsional sustentada desde fora pelos

pais, passa ser uma operação interna, de força própria, o recalque originário. Podemos observar os saltos qualitativos provenientes das renúncias à medida que o bebê passa da alimentação líquida à sólida; do choro, grito e gestualidade para a construção da linguagem; adquire a postura ereta e o caminhar; controla os esfíncteres e descarta os excrementos como dejetos repulsivos.

Para Bleichmar (2005, p. 123), o recalque originário deixa a libido livre como condição para a sublimação, abrindo assim caminho para essas novas aquisições que são gigantescas nesse tempo do desenvolvimento psíquico. Nos casos em que isso não se produz, “assistimos a fenômenos de contrainvestimentos permanentes”, causando o sofrimento de uma renúncia constante e ameaçadora, o “aparelho psíquico pode ficar em risco de fratura ou de empobrecimento”.

Podemos imaginar essa situação utilizando novamente o exemplo dos diques de contenção da Holanda. Falhas em alguns pontos desses diques colocariam em risco a estrutura construída para preservar as possibilidades de vida e trabalho das pessoas e provocaria uma situação de ameaça permanente, demandando a urgência de constantes ações de reforço em sua estrutura. O mesmo também se dá no psiquismo. Isto ocorre em razão de que a não instalação, ou falhas na instalação do recalque originário deixam o Eu sob constante ataque pulsional. Esse estado de coisas impede o ego de efetivar novas conquistas, novos “modos de identificação e novos modos de circulação e intercâmbio com o objeto”.

Aquilo que sobrevém como enunciado materno e se plasma em gesto cumpre a função de ligação e derivação de excitações, antecede a linguagem e prepara o campo da sublimação – “O ego enquanto resíduo libidinal dessas primeiras relações diz respeito àquilo ligado, ao amor do outro, enquanto o pré-consciente relaciona-se com formas de estruturação e contra- investimento” (BLEICHMAR, 2005, p. 313). São essas as condições fundamentais sobre as quais o sujeito poderá construir seu pensamento lógico.

3.5 Como poderei viver sem a tua companhia? Os Jogos Constituintes do Sujeito e a

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