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Viver (não) é preciso Instintos da espécie e desamparo primordial

No documento 2019VivianNolasco (páginas 39-43)

Navegar é preciso Viver não é preciso

Fernando Pessoa

Um dos grandes desafios da psicanálise na atualidade está em fazer frente ao movimento biologizante que reduz sujeitos a um puro organismo. No campo das relações primordiais – primeiras relações do pequeno ser com seu entorno – essa problemática torna-se ainda mais pungente. Enxergar o bebê como um mecanismo isolado sob o microscópio, utilizar lentes que o fragmentam, minimizando-o tão somente à sua maturação funcional, reduzindo-o à materialidade concreta de seu corpo, representa sério risco ao desenvolvimento psíquico e subjetivo. O corpo e sua materialidade são a circunstância de partida ao que ainda virá a se constituir.

Logo que nasce, o bebê exibe sua prematuridade para sobreviver, seu estado de organismo incipiente, quer do ponto de vista psíquico, quer do ponto de vista biológico. Quando ingressa no mundo, o bebê dispõe de uma pauta de recursos inatos, instintuais, padrões-comum a todos da espécie – com exceção daqueles que nascem com danos orgânicos ou os sofrem ao

nascer. O equipamento que o bebê humano traz consigo resulta bastante rudimentar para o enfrentamento com a vida. Se um adulto não lhe vier ofertar o seio ou mamadeira, não poderá se alimentar. É um estado indefeso para dar conta da própria vida, possuindo tão somente alguns reflexos constitucionais em seu repertório genético, neuro-anatômico – seus 24 reflexos arcaicos (JERUSALINSKY, 2013, p. 21). Conforme Jerusalinsky (2013, p. 24) os reflexos arcaicos são automatismos inatos, involuntários, posturas previsíveis que permitem com que o adulto cuidador se aproxime para atender o bebê, fazendo a correspondência mimética (imitando sua gestualidade), complementando sua ainda precária organização motriz inata e também, o que é fundamental, atribuindo-lhe significações.

Em consonância com a percepção do poeta sobre a vida, a estruturação psíquica de um sujeito dá provas de que viver não é preciso. O curso da vida psíquica não está assegurado por um equipamento genético que demarque com precisão métrica o destino e o curso dos acontecimentos. Sem a presença do adulto efetivando ações de significação, nenhum dos 24 reflexos garantiriam a permanência da vida. A esse estado de insuficiência, desajuda, Freud (1895, p. 335) chamou de desamparo primordial.

A relevância dos 24 reflexos arcaicos para a constituição psíquica reside no fato de que a partir deles inicia-se – ou não – a construção da relação com o outro, as trocas, as primeiras comunicações. Por meio dos reflexos poderá ser iniciado um reconhecimento recíproco entre mãe e bebê, graças ao fato de a mãe, além de reconhecer nele os indícios da espécie, fundamentalmente, poder encantar-se com as potencialidades do filho. Do lado do bebê, a complementaridade executada pela mãe, “gera no pequeno uma sensação de conforto pela correspondência mimética (desde a mãe, nesse caso) com seus automatismos” (JERUSALINSKY, 2013, p. 24). Os 24 atos reflexos, automatismos da espécie são:

sucção, quadro pontos cardinais da boca, orientação oral, mão-boca, cócleo palpebral, reflexo de olhos de boca japonesa, lateralização da cabeça para defesa respiratória, tônico cervical assimétrico, preensão palmar, preensão plantar, reflexo de Moro, reflexo de endireitamento, de extensão plantar, de extensão palmar, de subir escada, de marcha automática, de extensão cruzada, de defesa na queda frontal, de sustentação do tronco, de sustentação da cabeça, do saltarin, de seguimento ocular, de orientação auditiva, de linha média (JERUSALINSKY, 2013, p. 24).

Os reflexos, que constituem a pauta necessária para avaliar as condições básicas do bebê, são também as vias de acesso que permitem o ingresso e a abertura ao outro, já que é a partir do automatismo genético-orgânico que se abre o caminho para o encontro humano e, portanto, para as possibilidades ou obstáculos da estruturação psíquica. Conforme Foster e Jerusalinsky (2004, p. 276) “os reflexos arcaicos são respostas automáticas a estímulos

específicos, que permitem organizar a atividade de intercâmbio com o meio e facilitar a adaptação inicial”. Para os autores existem dois tipos de reflexos arcaicos, “os corticalizáveis e os que se mantêm por toda vida, em níveis de controle subcortical, como os relativos à respiração e à circulação sanguínea, quer dizer, todos os neurovegetativos e os reflexos musculares, superficiais e profundos”.

Neste ponto, um parêntese fundamental para dar espaço a uma importante discriminação. A infância define-se por quatro dimensões decisivas: crescimento, maturação, desenvolvimento e constituição psíquica. Nas práticas com as infâncias vemos esses diferentes acontecimentos serem tomados como sinônimos. É aqui que mora o perigo dos reducionismos técnicos e das práticas patologizantes. A práxis interdisciplinar depende da discriminação e da complexização da expressão dessas distintas dimensões, ainda que no bebê elas aconteçam de forma tramada. O discurso técnico, quando não pode reconhecer seus próprios limites, com frequência incorre na tentação de preencher o não saber sobre os bebês e crianças pequenas com condutas de finalidade diagnóstica, o que se torna um grande risco considerando os tempos de estruturação precoce.

Conforme Jerusalinsky (2016, p. 16), o crescimento diz respeito ao aspecto orgânico – aumento de peso, tamanho, volume do organismo, todos mensuráveis. Se um bebê não cresce, algo não vai bem. A maturação é um aspecto orgânico não diretamente mensurável. Consiste num processo no qual as estruturas anatomofisiológicas se desenvolvem para que possam exercer suas funções. Por exemplo: a postura e gestualidade do bebê são regidas pelos reflexos arcaicos – comandados sub-corticalmente pelo sistema nervoso central, os quais devem ir silenciando ao longo dos primeiros meses da vida para dar lugar à produção voluntária da gestualidade e do movimento – regulados no córtex cerebral. A maturação tem, portanto, tempos cronológicos definidos e janelas neurológicas que são momentos de maior abertura a estimulação. Com o fechamento dessas janelas, a ocasião para que se produza uma inscrição é mais difícil, mas não impossível.

Intervir nos problemas de desenvolvimento, segundo a autora, significa apostar na produção por um sujeito de desejo, a fim de que seu sofrimento não seja impedimento para sua vida. Tal intervenção deveria ser feita “na idade que for e com o corpo que tem” (JERUSALINSKY, 2016, p. 17) Nos casos em que a criança nasce com uma patologia orgânica, ainda assim, “seu destino não está traçado, pois as experiências de vida são centrais até mesmo para a formação do organismo, que não nasce pronto” (JERUSALINSKY, 2016, p. 19). Neste sentido, “a dimensão da infância está acima de qualquer patologia” (JERUSALINSKY, 2016, p. 19).

Acerca da noção de desenvolvimento, Jerusalinsky (2004, p. 23) descreve como sendo a expressão funcional, assimilante, capacidade de adaptação ao mundo social, assim como a realidade do mundo alcançada pela criança por apoio aos recursos maturativos. Essa noção inclui habilidades mentais e físicas, mas também abrange os processos que organizam a personalidade. Nas questões do desenvolvimento “aparecem recortes, precisamente porque o que se desenvolve são as funções e não o sujeito”. O autor concebe neste ponto a parcialidade própria da pulsão. Nesta parcialidade, vão surgindo representantes específicos aos órgãos do corpo e a seu funcionamento em relação ao entorno.

Por meio dessa compreensão denota-se a intrínseca relação entre desenvolvimento e constituição psíquica, considerando que os órgãos se diferenciam e se organizam em sistemas - motor, perceptivo, fonatório, dos hábitos, adaptação, principalmente, por meio da sua dimensão mental. Acerca da noção de desenvolvimento, Jerusalinsky (2004, p. 23) descreve como sendo a expressão funcional, assimilante, capacidade de adaptação ao mundo social, assim como a realidade do mundo alcançada pela criança por apoio aos recursos maturativos. Essa noção inclui habilidades mentais e físicas, mas também abrange os processos que organizam a personalidade. Nas questões do desenvolvimento “aparecem recortes, precisamente porque o que se desenvolve são as funções e não o sujeito”. O autor concebe neste ponto a parcialidade própria da pulsão. Nesta parcialidade, vão surgindo representantes específicos aos órgãos do corpo e a seu funcionamento em relação ao entorno.

Por meio dessa compreensão denota-se a intrínseca relação entre desenvolvimento e constituição psíquica, considerando que os órgãos se diferenciam e se organizam em sistemas - motor, perceptivo, fonatório, dos hábitos, adaptação, principalmente, por meio da sua dimensão mental.

O conceito freudiano de apoio, demonstra a forma como a sexualidade humana se estabelece “apoiando-se numa das funções somáticas vitais” (FREUD, 1905, p. 172) Apoiada no corpo, a pulsão, se consolida como “o representante psíquico de uma fonte endossomática” (FREUD, 1905, p. 159), e sua existência valida a diferença entre excitações, provenientes desde dentro do aparelho em constituição, e estímulos, provenientes do exterior. Para Freud a “pulsão, é um dos conceitos da delimitação entre o psíquico e o físico” (FREUD, 1905, p. 159) Outra forma de conceituar consiste em compreendê-la como “uma medida da exigência de trabalho feita à vida anímica” (FREUD, 1905, p. 159) desde o soma.

Em concordância com a noção de apoio, Jerusalinsky refere que “se o desenvolvimento depende de um processo maturativo, a constituição de um sujeito não depende para nada dele”. E mais: “tal processo maturativo faz limite para esse sujeito, porém não o condiciona nem o

determina” (JERUSALINSKY, 2014, p. 37) A constituição psíquica é processo que se dá por sobre o corpo, a partir daquilo que incide sobre ele, portanto, depende das simbolizações, das marcas de desejo depositadas pelos pais. Freud, em seu texto Os três ensaios sobre a teoria da

sexualidade, afirma que a infância se manifesta como o momento de abertura para as inscrições

que formarão o psiquismo. Neste artigo, o autor deixa explícita a noção do psiquismo como estrutura por vir, que não nasce pronto, e demarca com ênfase que a capacidade de receber e reproduzir impressões nunca é maior do que precisamente nos anos da infância. Sobre esse aspecto específico, dedicamos grande parte do esforço de parte desta pesquisa – a verificação da estruturação psíquica.

É deste modo que os reflexos arcaicos, mecanismos automáticos e involuntários, os instintos, são a base orgânica para a inscrição cerebral - a corticalização - e o estabelecimento posterior dos atos voluntários no bebê. O instinto vai se tornando outra coisa mais além do orgânico. Para que surjam os atos voluntários, se faz necessário que os reflexos arcaicos passem a ir “silenciando até desaparecerem completamente ao longo dos primeiros meses de idade. Quando não desaparecem constituem indícios clínicos de transtorno no sistema nervoso central” (JERUSALINSKY, 2002, p. 47). A autora assevera que para o advento do ato voluntário, há um salto a ser produzido. A maturação e a corticalização, por si só, não garantem seu surgimento. Quer dizer que entre o ato reflexo e o ato voluntário há um salto. O que aciona esse salto que, partindo do ser vivo, conduz ao ser humano e a uma manifestação de subjetividade? Qual seria seu operador? Em busca de pautar algumas respostas a esse interrogante adentro a função da presença e da ausência do outro. Para tanto, recorro a Freud.

No documento 2019VivianNolasco (páginas 39-43)