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Adotou-se uma definição de cidades saudáveis desenvolvida criticamente nas formulações apresentadas por Márcia Faria Westphal, uma das pioneiras nesse campo de estudos.

Cidades ou municípios saudáveis constituem designações de uma estratégia

de promoção da saúde fundamentada em ações de caráter coletivo, orientadas para promover e fomentar processos favoráveis ao bem-estar e opor-se àqueles que o colocam em risco (Westphal, 1997). O termo estratégia, apropriado da arte militar para o âmbito da política pública utilizado nessa definição, remete à ideia de plano de ação e de forças sociais capazes de implementá-lo. Não por acaso o planejamento estratégico e o protagonismo da sociedade civil são apresentados como instrumentos para a operacionalização de tal estratégia.

Assim, a proposta de cidades saudáveis é concebida como uma estratégia de longo prazo, compreensível nos termos de um projeto e de um movimento pen- sados para experimentar a gestão democrática e participativa dos problemas das cidades (Westphal, 1997).

1 Projeto Cidades Saudáveis: Saúde, Inovação Tecnológica e Desenvolvimento Urbano na Área de Implantação do Complexo

Petroquímico de Itaboraí – RJ. Foi aprovado em 2007 nos termos do Programa de Desenvolvimento e Inovação Tecnológica em Saúde Pública (PDTSP), tendo sido concluído em 2011 – Vigilância Civil da Saúde na Atenção Básica: uma proposta de Ouvidoria Coletiva (2008-2011).

Contudo, a proposta de plano de governo “estabelecido com as instituições representativas da sociedade como um todo, todas as classes sociais, todos os setores da sociedade e em parceria com os setores do governo” (Westphal, 1997: 14) idealiza a sociedade e deixa de identificar os conflitos de interesses, inclusive de classes, capazes de bloquear o bem-estar para todos. Em consequência, o planejamento governamental não é neutro em matéria de interesses sociais e não comporta necessariamente todas as classes sociais.

Uma tentativa de superação desse limite aparece noutro estudo, formulado em coautoria, no qual se procura dar conta da consistência teórica dos estudos sobre determinantes sociais da saúde e, consequentemente, da política formulada para modificá-los. Admitindo-se que “pensar em determinação social da saúde implica em uma reflexão sobre a saúde enquanto objeto das ciências sociais”, Zioni e Wesphal (2007: 28) retomam as disputas paradigmáticas desse campo de saber científico, pautadas na disjuntiva entre estrutura e ação, e as diferentes alternativas surgidas em fins do século XX, para assumir a perspectiva de uma “sociologia da experiência” (Dubet, 1994).

A assunção dessa abordagem permite, como assinalado por Zioni e Westphal,

identificar os conflitos e os projetos que se encontram em disputa, a posição dos sujeitos envolvidos, as representações e as experiências envolvidas na definição dos problemas vividos, a participação dos atores e sujeitos na elaboração das propostas de enfrentamento. (Zioni & Westphal, 2007: 32)

O entendimento dos conflitos, no entanto, requer necessariamente o estudo das estruturas, seja na forma de cenário ou de situação abrangente, ou ainda, das condições dadas da ação dos homens ao qual se refere Karl Marx na obra

O 18 Brumário de Luís Bonaparte. É necessário remeter-se, portanto, à ideia de

totalidade social ou de totalização, ao se considerar a sociedade moderna como um processo histórico e, à medida que se examinam aspectos particulares desse processo considera-se uma totalização sempre parcial. Essa é a abordagem pre- valente nos estudos de sociologia urbana, a qual considera as desigualdades econômicas, as políticas públicas, os conflitos sociais, a violência e os direitos sociais e outras tantas reflexões apropriadas ao entendimento dos espaços urbanos, “verdadeiro palco de fatos sociais indutores de problemáticas socio- lógicas contemporâneas” (Barreira, 2010: 149).

Importa advertir, no entanto, sobre as limitações do urbano como um campo urbanístico porquanto esteja: sujeito às injunções e demandas de agentes situados em outras esferas do mundo social, quer dizer, em relação a campos mais autônomos e estruturados (Martins, 2006).

A ideia de campo, apropriada de Pierre Bourdieu por Jeová Dias Martins em sua tese de doutoramento, serve para descortinar os polos em torno dos quais tendem a se agrupar, idealmente, as forças sociais atuantes na cidade – a saber, a cidade mercado e o direito à cidade –, sem que isso signifique a precedência de um polo sobre o outro ou que essa definição venha a exaurir os sentidos das práticas urbanas. Campo urbanístico designa uma determinada composição “de agentes e instituições que reivindicam para si o monopólio da definição legítima do dever-ser da metrópole” ainda que, como adverte o autor, tal monopólio não seja necessariamente realizável (Martins, 2006: 40).

A cidade como espaço do valor de troca predomina sobre a cidade como espaço do valor de uso, pois esse predomínio responde à lógica do sistema eco- nômico no qual está inserida. Tanto mais equivalente à imposição, quanto menor a capacidade de resistência dos grupos sociais mais vulneráveis. O resultado pode ser a desterritorialização, como é o caso das comunidades que moram nos arredores da Área de Proteção Ambiental (APA) de Guapimirim, a exemplo dos coletores de caranguejos do bairro de Itambi, em Itaboraí, limítrofe com a APA. Para isso, o Comperj estabeleceu o Programa de Remanejamento e Monito- ramento da População Deslocada. É a contrapartida social “dos pré-requisitos que os gestores do Estado se apoiam: visão em curto prazo, interesses globais sobrepondo-se aos interesses locais, racionalidade estritamente técnico-científica.” (Moysés, 2010: 8).

Ao se contrapor ao modelo de desenvolvimento hegemônico, Moysés (2010) traz a contribuição de Celso Furtado na obra Cultura e Desenvolvimento em Época

de Crise. A apropriação do pensamento do grande cientista social parece perder

a correlação entre desenvolvimento capitalista e luta social implícita na seguinte passagem do Prefácio daquela obra:

Como escapar da armadilha da ‘racionalidade econômica’ que, entre nós, opera inexoravelmente no sentido de favorecer aqueles que controlam o poder? A resposta é simples: modificando as bases sociais de sustentação desse poder. Vale dizer: assegurando uma participação efetiva no processo político dos segmentos sociais vitimados pela referida racionalidade econô- mica. Nenhum avanço real é exequível sem desenvolvimento político, sem democratização substantiva, sem a presença organizada na esfera política de amplos segmentos da sociedade civil, particularmente da massa trabalhadora. Nosso real atraso é político e não econômico. (Furtado, 1984: 12)

A participação institucionalizada tem sido apresentada como alternativa à fragmentação de interesses vigente na sociedade, sem se apresentar de fato

como uma forma de democracia participativa. Em geral, a participação tem um caráter setorial e de cunho consultivo. As audiências públicas, nas quais estudos são apresentados e discutidos, não encaminham nenhum mecanismo para a participação no processo decisório. Por isso assumem o papel de uma abertura à sociedade civil meramente formal. Superar essa limitação é um desafio para pesquisas de caráter participativo.

Uma reflexão sobre o conceito de vulnerabilidade social parece necessária para apreender contextos urbanos em processos de transformação acelerada, como vem acontecendo em Itaboraí.

Lucio Kowarick (2009) chama atenção para a construção histórica do conceito de vulnerabilidade no contexto do pensamento científico-social e político norte-americano, que passou de conotação progressista estruturada na década de 1960 para uma concepção conservadora na qual a culpabilização dos indivíduos e populações em situações de fragilidade social é explícita. É nessa perspec- tiva que ganha sentido a ideia de subclasse, como um conjunto de desajustados que preferem viver à custa de programas sociais a inserirem-se na economia de mercado. Salienta criticamente o autor que, mesclada a certas concessões de cunho liberal que não alteraram a tônica da concepção, foi uma interpretação mais amortecida dos ideais conservadores que triunfou e se sustenta ainda na discussão sobre culpar ou não os pobres urbanos por seus infortúnios.

Compreenda-se que um aspecto fundamental da questão da vulnerabilidade está no afastamento do Estado, sob a orientação neoliberal, de suas respon- sabilidades sociais.

Transpondo sua reflexão para os ambientes urbanos brasileiros, Kowarick (2009) enfatiza que orientar a análise da vulnerabilidade, considerando-se exclusivamente a ideia de exclusão social, dificulta o reconhecimento de que nas cidades de hoje existem formas extremamente precárias de inclusão que não podem ser desconsideradas. É nessa direção que o autor constrói seu pensamento e suas investigações unindo uma vulnerabilidade socioeconômica, referente à falta de garantias de trabalho, saúde e saneamento, educação, moradia e estrutura urbana e à vulnerabilidade civil, concernente a insegurança, falta de proteção e exposição à violência.

Na prática, em termos de ações, essa fundamentação teórica significa a tomada de posição em favor do desenvolvimento de práticas construídas em comum com a população local; no caso da presente reflexão, de metodologias participativas no campo da educação e saúde. Metodologias estas que, entre outros

resultados, possam contribuir para a democratização das políticas públicas, para o fortalecimento das organizações populares e para a melhoria da qualidade dos serviços públicos de saúde oferecidos às populações que vivem em contextos de pobreza.

Caso contrário, os sentidos continuarão a escapar aos pesquisadores cien- tíficos, principalmente dos campos da educação e da saúde, dependentes de um conhecimento produzido sobre as classes populares baseado exclusivamente na ideia da sociedade e da política como representação. A incapacidade relativa de fazer uma investigação científica na perspectiva popular foi denominada por Victor Valla, em releitura de José de Souza Martins, de crise de compreensão (Valla, 1995). Para superá-la ainda é necessário estudar a realidade com metodologias capazes de incorporar o modo como as pessoas das classes populares elaboram seu conhecimento do mundo, com toda a ambiguidade implicada pela situação de opressão e medo em que se encontram cotidianamente (Lima & Stotz, 2010).

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