• Nenhum resultado encontrado

FUNDAMENTAL AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

2. O direito fundamental à educação

O direito à educação, direito público subjetivo, é considerado para a maior parte da doutrina e da jurisprudência como sendo direito de eficácia plena e de aplicação imediata. Tanto que nos julgados do STF percebemos a inexistência de limites (tão invocados para a aplicação de direitos sociais) quando tratamos da saúde e da educação.

a. Definição e fundamento

A educação é um direito humano fundamental que deve ser garantido pelo Estado; por meio dela, nos desenvolvemos enquanto seres humanos e contribuímos para o desenvolvimento da sociedade como um todo.

Fernando Savater destaca que

[...] o ser humano é um ser inconcluso que necessita permanentemente da educação para desenvolver-se em sua plenitude, motivo por que a finalidade da educação é cultivar a

25

humanidade. Esse caráter humanizador57 implica que a

educação tem um valor em si mesma e que não é unicamente uma ferramenta para o crescimento econômico ou social, ainda que também o seja, como costumava perceber-se a partir de visões mais utilitaristas.58

A educação – que ocorre ao longo da vida do ser humano –, assim, é um processo,

em que a criança ou o adulto convive com o outro e, ao conviver com o outro, se transforma espontaneamente, de maneira que seu modo de viver se faz progressivamente mais congruente com o do outro no espaço de convivência. O educar ocorre, portanto, todo o tempo estrutural contingente com uma história no conviver, e o resultado disso é que as pessoas aprendem a viver de uma maneira que se configura de acordo com o conviver da comunidade em que vivem59.

Conforme já mencionado anteriormente, a democracia pressupõe igualdade de oportunidades e participação social, efetivados por meio da educação. Isto porque a Democracia não pode prescindir de cidadãos preparados para exercê-la. MONTESQUIEU ressalta a necessidade de o povo, de participação imprescindível à democracia, ter acesso às informações que lhes subsidiem no sufrágio:

O povo, na democracia, é sob certos aspectos, o monarca; sob outros, é o súdito. Não pode ser monarca senão por meio de seus sufrágios que constituem suas vontades. A vontade do soberano é o próprio soberano. [...] O povo é admirável para escolher aqueles a quem deve confiar parte de sua autoridade. Para deliberar, não dispõe senão de coisas que não pode ignorar e de fatos que são palpáveis. 60

Vemos, assim, a relação direta entre a educação e o exercício democrático, que se consubstancia não só no voto, mas na vivência cidadã ativa, participativa, na capacidade de julgar e escolher.

57Paulo Freire reconhece o homem enquanto ser histórico e por este motivo, ser que “está sendo”, ser

inacabado, inconcluso, “em e com uma realidade, que sendo histórica também, é igualmente inacabada”, e o mais importante, ser que se sabe inacabado, consciência na qual se encontram as raízes da educação como manifestação exclusivamente humana; educação que Paulo Freire define como um “que-fazer permanente” devido à inconclusão humana e à realidade sempre em mutação, maneira pela qual a educação se refaz constantemente na práxis, afinal, “para ser tem que estar sendo”.

58 SAVATER, Fernando (2006), “Educação de qualidade para todos: um assunto de direitos humanos”. –

Brasília: UNESCO, OREALC, 2007. Documento de discussão sobre políticas educativas no marco da II Reunião Intergovernamental do Projeto Regional de Educação para a América Latina e o Caribe (EPT/PRE), 29 e 30 de março de 2007, Buenos Aires, Argentina, 2007. p. 138.

59 MATURAMA, Humberto. Emoções e Linguagem na Educação e na Política. Belo Horizonte: Editora

UFMG, 2002, p. 29. apud KONZEN, Afonso Armando. Pertinência Socioeducativa. Reflexões sobre a natureza jurídica das medidas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2005. p. 80.

60 MONTESQUIEU. Sociedade e Poder. In. WEFFORT, Francisco C. Os Clássicos da Política. 14ª ed.

26

b. Educação e Ensino

Primeiramente, faz-se necessário diferenciar os vocábulos educação e ensino, uma vez que apesar serem utilizados como equivalentes, possuem significados distintos; educação tem significado mais amplo que ensino. BITTAR61 diferencia os vocábulos, argumentando que:

[...] a educação envolve todos os processos culturais, sociais, éticos, familiares, religiosos, ideológicos, políticos que se somam para a formação do indivíduo. Trata-se de vislumbrar na educação, nesse sentido, a formação e o desenvolvimento das faculdades e potencialidades humanas, sejam físicas, sejam morais, sejam intelectuais por quaisquer meios possíveis e disponíveis, extraídos ou não do convívio social.

Por sua vez, ensino representa uma relação mais pontual, que se destaca de um processo de aprendizado, direcionado e direto, em que se podem detectar dois polos relacionais, a saber, o educador e o educando. O ensino tem mais a ver com o engajamento da atividade educacional em relações privadas ou públicas de prestação de serviços educacionais, tenentes à formação elementar do indivíduo nas ciências, nas práticas e nos saberes constituídos pelos progressos da humanidade. Quando se menciona a palavra ensino, está-se a vislumbrar uma atividade de transmissão de conhecimento dentro de parâmetros predefinidos, formais, portanto, por meio dos quais se transporta a experiência de um para outro ser.

RANIERI nos chama atenção para o imenso número de palavras que deriva de ambos os vocábulos, mostrando-nos que estes são empregados pela Constituição Federal de 1988, pela LDB (Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996) ou mesmo pelo ECA (Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990), muitas vezes como sinônimos62.

Das palavras educação e ensino derivam – ou a elas se associam, direta ou indiretamente – os termos “educador”, “educando”, “professor”, “magistério”, “aluno”, “creche”, “pré- escola”, “universidade”, “pedagogia”, “frequência escolar”, “dias letivos”, “critérios avaliativos” etc. Nesse conjunto, podemos ainda distinguir, em outro estágio interpretativo, entre o direito à educação e os direitos na educação, que nos remetem

61 BITTAR, Eduardo G. B. Direito e Ensino Jurídico: Legislação Educacional. São Paulo: Editora Atlas

S.A., 2001.p. 15-16.

62 RANIERI, Nina Beatriz Stocco. “O Estado Democrático de Direito e o Sentido da Exigência de

Preparo da Pessoa para o Exercício da Cidadania, pela Via da Educação”. Tese (Livre-Docência) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009, p. 277.

27

a “qualidade”, “acesso à escola pública e gratuita próxima da residência”, “participação em entidades estudantis” etc.

Concluímos, assim, que o ensino é apenas “um capítulo da educação de uma pessoa”, enquanto que esta envolve diferentes processos socioculturais que formam o indivíduo. Vale ressaltar que ambos (educação e ensino) são positivados e garantidos pelo Estado. (CF, arts. 205 e 206.). Igual definição encontramos na Convenção contra a Discriminação na Escola de 1960, art. 1º, nº 2 (no Brasil, Decreto nº 63.223, de 6 de setembro de 1968), que define o ensino como a educação que se dá no ambiente escolar. Assim, todos devem ter o direito de acesso ao ensino, que é o “meio pelo qual a pessoa adquire conhecimentos formais para seu engajamento social”. Neste sentindo, ele qualifica o indivíduo desenvolvendo suas habilidades e integrando-o socialmente63, constituindo-se no que BITTAR define como o meio para a realização de parte do processo educacional e instrumento de grande importância para a realização de justiça social. O acesso ao ensino acaba, assim, desenvolvendo potencialidades humanas (puramente técnicas, ou puramente intelectuais ou aplicativas64).

Por sua vez, a educação, sendo mais, ampla, fortalece os liames éticos, dignifica o cidadão, ampliando seus horizontes e suas opções intelectuais, morais, sociais, cívicas e laborais. É a educação que alavanca o cidadão para o desenvolvimento65; assim, cabe a ela a formação da consciência cívica, base do progresso social, constituindo-se em um meio de fortalecimento dos elos racionais e culturais, um “ingrediente capaz de reduzir as desigualdades, de favorecer a distribuição de riquezas, de modo que, em suas múltiplas funções, a educação é sempre indicada como um bom remédio social”66.

Ao longo da Constituição Federal, a educação aparece sob diferentes formas e termos, sendo importante observarmos os significados e conceitos que cada um deles leva. A principal diferenciação entre os termos educação e ensino é que enquanto a primeira visa sentimentos como pertencimento, reconhecimento, amor e os põe sob o controle da vontade, o ensino é instrução e se dirige ao intelecto. Tal diferença fica

63 A escola é depois da família o primeiro espaço de troca e interação social do indivíduo, sendo o seu

primeiro contato com o outro.

64 BITTAR, Eduardo G. B. Direito e Ensino Jurídico: Legislação Educacional. São Paulo: Editora Atlas

S.A., 2001.p. 15-16.

65 MONTORO, André Franco Jr. Estudos de filosofia do direito. 3.ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999. p.

171–173.

66 BITTAR, Eduardo G. B. Direito e Ensino Jurídico: Legislação Educacional. São Paulo: Editora Atlas

28

evidente quando pensamos na educação como um todo, que não se limita ao espaço escolar, enquanto o ensino, mais restrito, é aplicado neste.

Tais motivos por si só já seriam suficientes para a criação de medidas efetivas que permitam a todos não só o acesso à educação, mas também sua manutenção. Isto porque ele acaba por tornar-se o acesso aos demais direitos, à participação efetiva do indivíduo na sociedade. No mesmo sentido, para BITTAR:

Sabendo-se que não se pode pensar em construir um Estado Democrático de Direito mantendo a maior parte dos cidadãos excluídos ou alijados do processo educacional é que foi ampliada a disciplina normativa da questão da educação, no contexto da construção da Constituição Cidadã. Por isso, a CF/88 dedica um capítulo inteiro à questão da educação, após colocar em patamar todo especial, entre as garantias fundamentais do art.5º, os direitos intelectuais e a liberdade de expressão, que são a condição para que o ensino livre exista e se desenvolva.67

Assim, no que tange ao ensino público, este deve ser acessível a todos, de qualidade, devendo haver forte investimento nos professores, em programas suplementares – como a oferta de alimentação, material escolar e transporte –, no policiamento, entre outros. Também são condições de realização do ensino público no Brasil a igualdade de oportunidades e a garantia de vagas para todos.

Na presente pesquisa, adotaremos o termo escolarização para tratar desta educação formalizada pelo equipamento estatal e controlada não apenas de forma instrumental, mas também ideologicamente.

c. Acesso à educação

O acesso à educação pode ser considerado um dos mais eficazes meios para alcançar este direito tão primordial que é a dignidade da pessoa humana. A dignidade diz com a condição humana do ser humano, guardando íntima relação com as complexas manifestações da personalidade humana68. SARLAT ao tratar das dimensões da dignidade salienta como esta é vista enquanto constituinte do valor próprio que

67 BITTAR, Eduardo G. B. Direito e Ensino Jurídico: Legislação Educacional. São Paulo: Editora Atlas

S.A., 2001.p. 20-21.

68 SARLET, Ingo Wolfgang (org.). As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma

compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. 2ª. ed. e ver. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. p. 15.

29

identifica o homem, sendo algo real, irrenunciável e inalienável. Significa que a dignidade deve ser não apenas reconhecida e respeitada, mas protegida e promovida.

O presente trabalho se propõe a tratar do direito à educação nas situações de privação de liberdade, situações nas quais muitas vezes encontramos indivíduos que foram privados desta dignidade social, deste reconhecimento simbólico tão necessário ao ser humano, acabando a buscar outras formas de reconhecimento e de afirmação enquanto ser humano, realizando o que OLIVEIRA chama de descolamento:

Diante da recusa do reconhecimento simbólico destes jovens, ante o desprezo e indiferença a que são submetidos eles buscam inventar outro espaço, um deslocamento de lugar, o que o permite definir o delinquente juvenil como ‘um adolescente desalojado que busca de forma exacerbada um atalho de reconhecimento’69

Como resignificar esses jovens socialmente excluídos, senão através da educação em seu sentido mais amplo, capaz de dentro da reclusão resignificar a vida intra e extramuros dos jovens, conferindo-lhe um sentido.

Com relação ao conceito de educação, PAULA afirma que

juridicamente podemos conceber a educação como um direito público subjetivo. Deve ser materializado através de política social básica, porquanto indiscutível relacionado à cidadania e à dignidade humana, dois fundamentos constitucionais da República Federativa do Brasil (CF, art. 1º), bem como é pertinente aos objetivos primordiais e permanentes do Estado brasileiro (CF, art. 3º), notadamente o referente à erradicação da marginalidade.70

A educação abrange, assim, tanto o atendimento a crianças em idade escolar (2-18 anos) em creches, pré-escolas e ensino fundamental, quanto àqueles que não tiveram acesso à educação na idade própria, como é o caso da grande maioria dos encarcerados no Brasil. Implicando ao Estado o dever de proporcionar a efetivação desse direito.

Cumpre mencionar que este dever é do Estado como um todo, isto é, das ações conjuntas de seus órgãos e Poderes. Neste sentido, SARI afirma a necessidade de

69 Oliveira, Carmen Silveira de. Sobrevivendo no inferno. A violência juvenil contemporânea. Porto

Alegre: Sulina, 2001, p. 99. apud VICENTIN, Maria Cristina Gonçalves. A vida em Rebelião. Jovens em conflito com a Lei. São Paulo: Hucitec: Fapesp, 2005. p. 210)

70 PAULA, Paulo Afonso Garrido de. “Educação, Direito e cidadania”, Revista Igualdade. Livro 0.

30

um novo entendimento sobre gestão pública que vise impulsionar mudanças na área educacional:

Trata-se de incluir e valorizar novos agentes sociais capazes de provocar avanços e de conferir mais eficácia às ações decorrentes das políticas públicas. Por isso, entende-se que, além das responsabilidades confiadas ao Poder Público, também são atribuídos deveres à sociedade, aos cidadãos e às suas entidades representativas. No Poder público não basta a atuação do Executivo para garantir o já instituído; é indispensável a vigilância do Poder Legislativo e também do Poder Judiciário, bem como do Ministério Público, sobre as realizações em curso e sobre as novas demandas sociais71

Assim, o acesso à educação, mais do que um direito fundamental, é uma obrigação estatal e questão de política pública; ao tratarmos do direito fundamental à educação, não podemos nos esquecer que ele não deve ser apenas protegido, mas deve ser garantido e implementado.