• Nenhum resultado encontrado

Direito natural e direito positivo

No documento Rousseau: dialética e teleologia (páginas 84-88)

Capítulo III- O Contrato como final da história

3.2 Direito natural e direito positivo

Esse descompasso entre liberdade civil e moral ocorre porque não existe, de fato, correspondência entre as leis que regem os corpos políticos e a lei moral. Porém, de direito, essa possibilidade não é negada. Por Rousseau, pelo contrário, ela é abraçada. Para que isso ocorresse, as leis dos homens deveriam espelhar-se na lei da natureza:

Si les lois des nations pouvaient avoir, comme celles de la nature, une inflexibilité que jamais aucune force humaine ne put vaincre, la dépendance des hommes redeviendroit alors celle des choses; on réuniroit dans la république tous les avantages de l’état naturel à ceux de l’état civil; on joindroit à la liberté qui maintient l’homme exempt de vices, la moralité qui l’élève a la vertu. 135

Para Rousseau, há dois tipos de dependência: a das coisas e a dos homens. E, sendo “o único que faz a sua vontade” e, que portanto, é livre de fato, “aquele que não precisa para tanto colocar o braço de outrem na ponta dos seus” , a liberdade estaria em livrar-se da dependência dos homens e 136 voltar à dependência da natureza. Essa dependência, tal qual gozava o homem natural, devolveria-lhe a verdadeira liberdade.

Sem mais, gozando, no estado civil, de uma liberdade imperfeita , o 137 pacto social, nos termos do Contrato, seria uma maneira do homem obedecer a si mesmo por meio da obediência às leis da natureza expressas na forma da lei positiva. Tendo-se em vista que esse si do homem corresponde à sua natureza livre e boa, e que o desenvolvimento de sua liberdade no curso histórico deu vazão a todos os tipos de vícios, essa mesma liberdade, quando sugere a "Se as leis das nações pudessem ter, como as da natureza, uma inflexibilidade que nunca

135

alguma força humana pudesse vencer, a dependência dos homens voltaria então a ser a das coisas; reunir-se-iam na república todas as vantagens do estado natural e do estado civil; juntar-se-ia à liberdade que mantém o homem sem vícios a moralidade que o educa para a virtude.” Emílio, II. Tradução Brasileira. p. 78.

Emílio, II. Tradução Brasileira. p. 76.

136

Emílio, II. Tradução Brasileira. p. 77.

obediência à lei expressa por uma vontade geral “de uma força real” , 138 entrega-se ao ordenamento natural.

Para Rousseau, o direito positivo, consolidado por obra da liberdade, deverá sair em busca da natureza e de suas leis. Por isso, dizer que “tal direito (…) não se origina da natureza: funda-se, portanto, em convenções” não 139 significa dizer que não há uma lei natural, ou mesmo uma lei das leis, que tal qual a lei natural sirva de fôrma para se fazer boas leis. Pois, não seria isso que Rousseau pretende ao formular um novo modelo de pacto: restaurar a liberdade perdida e, portanto, a natureza perdida? 140

Assim não fica difícil afirmar que o Contrato Social pode ser visto como uma tentativa de adequar a convenção à natureza, de modo que essa não seja obscurecida ou esmagada por aquela. A partir das suas investigações conjecturais, nota-se que o primeiro movimento da natureza humana produziu o afastamento entre a lei dos homens e a lei natural. Conduzindo-se a partir de suas próprias regras, o homem chega à diversas proposições de direito positivo. Desenrolar que culmina, no pior dos casos, no pacto (proposto pelo rico) que tende a perpetuar o afastamento entre direito positivo e direito natural, ao legitimar a escravidão de uns em relação aos outros. Está claro também que Rousseau repudia essa forma de pacto, ao ponto de denunciá-la em seu segundo Discurso e propor uma nova maneira de pacto social no Contrato.

Para Rousseau, foi a arte e não a natureza que instituiu a desigualdade. Ela é criação dos homens e de suas leis, que há muito não se espelham na lei natural. Se nos deixássemos guiar pela lei natural teríamos direitos iguais‑141 e

Emílio, II. Tradução Brasileira. p. 78.

138

CS. Livro I, Capítulo I. Tradução Brasileira. p. 54.

139

"Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada

140

associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes.” CS. Livro I, Capítulo VI. Tradução Brasileira. p.69-70.

Já que as leis da natureza não se modificam em relação aos particulares.

seríamos livres. Mas, da mesma forma que Rousseau aponta que a ruptura, promovida pelo homem entre ele mesmo e a natureza no início dos tempos, mergulhou-lhe no universo das convenções, nunca afasta a ideia de que seja possível retornar à ordem natural.

Aliás, parece ser justamente isso que propõe Rousseau, em seu Contrato Social: recuperar a liberdade da qual gozavam os homens naturais. Essa liberdade, entretanto, somente seria recuperada quando ocorresse a subsunção da convenção, criada pelo homem, à uma espécie de lei natural, que, como veremos, é uma lei divina. Diz-nos Rousseau quando passa a tratar da lei:

Toute justice vient de Dieu, lui seul en est la source; mais si nous savions la recevoir de si haut nous n’aurions besoin ni de gouvernement ni de loix.142

No parágrafo, Rousseau primeiramente identifica a justiça divina à ordem natural, trabalhando com a ideia de que existe uma separação entre as leis terrenas e as leis que vêm do alto. A partir dessa dicotomia, expressa que as leis criadas exclusivamente pelo engenho humano não garantem a justiça. Ele vai dizer também que se baseássemos nossas leis na justiça que vem do alto, não haveria necessidade de termos governos ou leis. O que nos permite concluir que se fosse possível alcançar a forma da justiça, esvaziar-se-ia a necessidade de um contrato social . 143

Esse contrato que coloca fim à necessidade de si mesmo expressa a ideia de um fim da história pelo qual o direito positivo abraça a lei natural. Capaz de formular suas próprias leis, o homem, que no decorrer do tempo tratou de opor-se à lei natural, a ela recorre a partir reconhecimento se sua justiça. Ao fazer isso, no entanto, abandona seu processo histórico, por meio "Aquilo que está bem e consoante à ordem, assim o é pela natureza das coisas e

142

independentemente das convenções humanas. Toda a justiça vem de Deus, que é sua única fonte; se soubéssemos, porém, recebê-la de tão alto, não teríamos necessidade nem de governo, nem de leis.” CS. Livro II, Capítulo VI. Tradução Brasileira. p.105.

do qual transformava-se continuamente, chegando à finalidade de sua existência.

Mas esse fim não nos é imposto e nem imediato . Trata-se de uma 144 conquista humana no interior da história. A continuidade do excerto anterior traz a ideia de que a razão nos permitiria alcançar a formulação da lei natural, mas que em nada resultaria sua aplicação sobre os homens se ela não fosse reciprocamente admitida entre nós. Pode-se, dessa forma, reiterar a ideia de Meira de que o Contrato não seria um plano de ação. Ao menos não de ação imediata como se admitia entre os revolucionários franceses. Afinal, não basta que a razão alcance os princípios do direito político, é necessário que esses princípios sejam aceitos pelo povo que irão reger.

Aqui, Rousseau trabalha com uma ideia muito parecida com a que desenvolve no Capítulo II

144

do Emílio. Ele vai dizer que é preciso a um educador que perca tempo para poder ganhá-lo. Ou seja, não basta impor a seu aprendiz um preceito, mas é melhor que ele o aprenda por sua própria experiência. A educação não seria um processo imediato, mas exigiria paciência para que se ganhe real aprendizado e a autonomia do estudante em relação ao mestre. O Legislador, nesse sentido, cumpriria a mesma função de um tutor em relação ao povo.

No documento Rousseau: dialética e teleologia (páginas 84-88)