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3. ANÁLISE JURÍDICA DOS DADOS PRIMÁRIOS COLETADOS: O DIREITO

3.3 Direito como perpetuação

Ao delimitar o estudo aos últimos trinta anos, não se nega que as investidas do capital na tentativa de desconstrução do Direito do Trabalho são históricas e remetem à própria origem da legislação social no País. Sem pretender aprofundar as questões relativas a esse aspecto, é mister compreender as recentes alterações legislativas e construções jurisprudenciais em um contexto mais amplo, para se concluir que os discursos e estratégias apenas se repetem sob moldes mais ou menos distintos, mantida intacta a proposta de atender aos interesses do capital e ampliar a exploração da classe trabalhadora.

A Lei n. 13.467/2017 (“Reforma Trabalhista”), aprovada sob críticas de juristas e pesquisadores, reproduz parcialmente o conteúdo de projetos já apresentados ao Poder Legislativo há mais de uma década. Souto Maior (2018b), nesse sentido, relembra o PL5483/2001, enviado ao Congresso durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso. Propunha-se a alteração do art. 618 da CLT, de maneira a permitir que os ajustes pactuados por acordo ou convenção coletiva deveriam prevalecer sobre a lei, desde que respeitada a Constituição e normas relativas à saúde e segurança no trabalho.

Já ali se disseminava a ideia de que era preciso “modernizar” as relações de trabalho e que a Consolidação trabalhista seria arcaica para comportar as necessidades de uma realidade mais interconectada economicamente e tecnológica. Esses argumentos costumam ganhar espaço em momentos de crise e instabilidade, o que favoreceu a aprovação da Reforma,

103 ocorrida após o impeachment da então Presidente da República e durante momento de crescimento do desemprego e de queda nos índices do Produto Interno Bruto (PIB).

A Reforma introduziu centenas de alterações à CLT, mas serão aqui analisadas apenas aquelas que guardam maior pertinência com o objeto de estudo, na esfera do Direito coletivo do Trabalho. Nas entrevistas realizadas entre novembro e dezembro de 2017, a lei vigorava há pouco, razão pela qual alguns dos trabalhadores-estudantes não conheciam suas disposições ou mostraram-se confusos quanto às mudanças normativas.

A extinção do caráter compulsório da contribuição sindical, principal fonte arrecadatória das entidades de classe, foi talvez o ponto em específico mais mencionado. Alguns dos entrevistados demonstraram contrariedade em pagar a quantia dirigida ao sindicato, o que também pautou muitas críticas ao modelo sindical vigente no País. Mas a exclusão de apenas um dos elementos que conformam esse modelo se prestou menos a validar a liberdade sindical prevista na Constituição do que para desarticular as organizações classistas, agora desprovidas de recursos para as atividades mais elementares. Ainda que seja cedo para prever seus efeitos, é razoável supor que medidas de contingência venham a afetar a manutenção de sedes e o custeio com pessoal, com reflexo no próprio desempenho das atribuições sindicais.

Outra providência adotada pela norma e já suscitada no tópico anterior consiste na redução dos espaços de participação das entidades representativas. Ao permitir que as negociações sejam travadas diretamente entre empregado e empregador, em determinadas hipóteses, ignorando-se as balizas legais, o legislador ampliou a influência da racionalidade contratualista, deturpando ainda a própria finalidade da intervenção dos sindicatos nesse processo. Souto Maior (2018b), a esse respeito, afirma:

Assim, e considerando a abertura feita para a negociação individual, que também fragiliza a organização coletiva, a atuação sindical somente será tolerada para que os sindicatos chancelem a vontade do empregador, havendo, então, uma tendência de docilização da atuação sindical, como efeito, inclusive, de sua própria estratégia de sobrevivência. A sobrevida dos sindicatos não advirá, como se sustenta, de uma radicalização na atuação, premiando os sindicatos fortes e representativos. A tendência é exatamente o contrário, até por efeito da vontade individual dos trabalhadores, advinda de uma motivação moldada pela lógica econômica e a necessidade de sobrevivência.

As duas frentes em que a norma atua para degradação do sindicato, quais sejam, o estrangulamento dos recursos para manutenção e a redução das prerrogativas da entidade, se somam à prevalência do negociado sobre o legislado, em termos bastante próximos aos que já haviam sido apreciados no Congresso Nacional em décadas anteriores. Conforme a nova

104 disciplina, sindicatos da categoria profissional – agora fragilizados – poderão dispor “livremente” com entidades patronais ou diretamente com o empresariado inúmeros direitos, alguns deles resguardados pela Constituição, podendo “violar” patamares mínimos fixados pelo ordenamento.

A pretexto de adequar os contratos às demandas próprias de cada setor ou de dinamizar a economia e, com isso, gerar empregos, a disposição permite, na prática, que se façam ajustes aquém do patamar legal, isto é, a flexibilidade proposta, diante do poder patronal e da debilidade dos organismos classistas, será praticada para reduzir direitos e ampliar lucros.

Como bem destaca Galvão, a liberdade e a maior autonomia foram reivindicadas também pelos sindicatos desde a década de 1970, mas o projeto neoliberal conseguiu incorporar essa demanda, moldando-a para adequá-la aos seus próprios interesses:

Com o advento do neoliberalismo, as antigas demandas dos movimentos sociais e dos sindicatos pela autonomia frente ao Estado são redimensionadas, consagrando um modo de relação entre Estado, capital e trabalho, em que esses dois agentes são vistos como “parceiros sociais, interessados em negociar autonomamente as regras que regem sua relação, independentemente da intervenção da lei. Dessa maneira, o neoliberalismo se reapropria de duas bandeiras do movimento social e sindical que remontam ao final dos anos 70, investindo-lhe de outros significados: a luta pela extensão dos precários direitos sociais e trabalhistas converte-se em denúncia aos “privilégios” de uma minoria que age corporativamente, ao passo que a luta pela ampliação da participação política e sindical se transmuta no combate aos excessos da legislação e na contratualização das relações de trabalho. (GALVÃO, 2007, p. 102)

Interessante destacar, a propósito do que foi comentado no início deste tópico, que a autora faz referência ao projeto de “Reforma Trabalhista” na década passada, mas as semelhanças entre os discursos, métodos e resultados apenas nos alertam para a falsa impressão de que os direitos conquistados não estão mais em disputa, porque incorporados ao ordenamento. Possivelmente, e essa é uma das hipóteses com que se trabalha nesse estudo, a dinâmica geracional entre aqueles trabalhadores que compuseram o período mais ativo da história sindical recente, na década de 1980, ameaçada pela ditadura e pela recessão, foi diversa da que experimentam hoje os jovens trabalhadores-graduandos entrevistados.

Para eles, nascidos sob o regime democrático e amparados por um período de maior estabilidade econômica, o respeito às leis é decorrência da observância ao próprio Estado de Direito, uma vez que respaldadas na legitimidade dos representantes escolhidos e no processo legislativo. Sobretudo em um curso de Direito, a insurgência frente à norma soa incoerente, porque não haveria vícios (formais) que maculassem seu pleno vigor. É justamente essa

105 percepção legalista estrita, resumindo a norma a sua literalidade e destituindo-a de seu contexto, que precisa ser desconstruída.

Souto Maior (2017b) ao dispor sobre as atecnias da Reforma, embora concentre o argumento em elementos dogmáticos, propõe que o Direito do Trabalho e a Justiça laboral podem sair fortalecidos desse momento, se a Lei n. 13.467/2017 foi interpretada e aplicada tendo em vista a Constituição e os tratados internacionais aos quais o Brasil está vinculado. Alude ainda aos princípios que norteiam a legislação laboral, como instrumento para coibir os abusos que a norma pode ensejar e restabelecer o sentido protetivo de que se imbui o aparato normativo laboral.

Aliás, o exercício interpretativo, de acordo com o magistrado, poderia ser ferramenta de ampliação desses direitos, para dar efetividade a garantias esvaziadas por falta de regulamentação – as lacunas apresentadas anteriormente, a exemplo da proteção contra dispensa arbitrária. Para isso, caberia à Justiça especializada o empenho em resistir às limitações que a mesma norma impôs à função judicante. De acordo com o diploma aprovado em 2017, a Justiça laboral, no exame de acordos e convenções, deverá ater-se à “[...] conformidade dos elementos essenciais do negócio jurídico […] e balizará sua atuação pelo princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva” (BRASIL, 2017, Art. 8º, §3º).

Esse comando apenas demonstra o incômodo causado pela Magistratura trabalhista na efetivação do Direito do Trabalho e na defesa da classe trabalhadora. Evidentemente há segmentos conservadores no Judiciário que não espelham esses esforços – destaque-se a postura assumida pelo então presidente do Tribunal Superior do Trabalho, que se pronunciou favoravelmente à “Reforma Trabalhista” – mas é inegável que a tentativa de restringir a atuação judicial se explica pelo trabalho hermenêutico desenvolvido para proteger os direitos laborais. Exemplo significante consistiu na formulação de 125 enunciados sobre a interpretação da Lei n. 13.467/2017, na 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, em 2017, evento que reuniu não apenas magistrados, mas procuradores, auditores fiscais e advogados.

Essa resistência pelo Direito não tem sido exercida apenas pelo Judiciário, mas também por parcelas da sociedade em diferentes vertentes, inclusive a acadêmica, como se analisará adiante, a partir dos dados obtidos na pesquisa empírica.

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