• Nenhum resultado encontrado

DIREITOS DE GRUPOS E DIREITOS INDIVIDUAIS

A discussão sobre igualdade formal e substantiva apresenta um desdobramento importante, ligado à maneira como a ação afirmativa tiraria o foco do indivíduo e da igualdade legal entre todos os cidadãos para colocá-lo nos grupos. A Suprema Corte indiana tem demonstrado adesão ao princípio dos direitos de grupos ao discutir métodos aceitáveis para classificar os beneficiários das reservas (PARIKH, 1997). Para muitos opositores da ação afirmativa, políticas deste tipo tendem a essencializar identidades e a estigmatizar seus destinatários (FRASER, 2003; BAUMAN, 2001). Além disso, diz-se freqüentemente a respeito da discriminação reversa que ela produz uma contradição entre direitos individuais e direitos de grupos, acusação bastante freqüente no debate indiano.

Críticos alegam que a ação afirmativa exige que o Estado trate as castas e a identidade das tribos como fatos autênticos e reais, o que prejudica seu comprometimento com os princípios constitucionais da igualdade e do individualismo (BAYLY, 2001). As interpretações acerca da presença e formulação destes princípios na Constituição divergem: enquanto para alguns coexistem na Constituição Indiana duas noções conflitantes de igualdade - a igualdade de oportunidades entre os grupos étnicos e a igualdade de direitos entre os indivíduos (NESIAH, 1999) – para outros coexistem legitimamente no texto constitucional direitos de igualdade de competição entre indivíduos e grupos (GALANTER, 1991). O próprio líder Intocável B.R.Ambedkar apresentou esse tipo de preocupação durante as reuniões da Assembléia Constituinte, alinhando-se à primeira interpretação.

Dr Ambedkar regarded the rule about equality of opportunity as being more fundamental and one which an excessive degree of reservations would tend to undermine. (...) The point to be emphasized is that even if a strategy of expanding reservations were to be politically rewarding, it would still contradict the admirable principle laid down by the founders of the Indian Constitution, that reservations can be instituted only if ample safeguards are provided to ensure that equality of opportunity is available to the majority of the population (PRAKASH, 1997: 46).

Há acadêmicos que insistem na desconstrução das categorias identitárias indianas em favor da multi-identificação, pois acreditam que qualquer reforço oficial das castas é nocivo à sociedade. Há, por outro lado, aqueles que afirmam que uma forma de promover a justiça social é criar políticas de preferência utilizando-se os mesmos critérios em que se baseia a discriminação. Afirma-se, por exemplo, que se por um lado é de fato perigosa a utilização irrefletida e estática das castas pelo governo, por outro um uso cuidadoso de tais categorias pode ser fundamental para o avanço das políticas de anti-discriminação (JENKINS, 2004). Assim, um dos principais êxitos das políticas de reservas na Índia foi de caráter simbólico, pois elas atenuaram a associação entre a jati e a ocupação dos indivíduos ao possibilitar que Intocáveis e Shudras atingissem posições de grande prestígio social. Com isso, ao mesmo tempo em que legitimaram e oficializaram as castas em um nível, as reservas as desqualificaram em outro plano. Isto porque, dissociada de suas bases materiais, a consciência de casta perde parte de sua carga simbólica (QUIGLEY, 1994).

Contudo, como a Suprema Corte indiana declarou que o pertencimento à casta deveria ser avaliado por especialistas com conhecimento antropológico que levariam em conta traços etnológicos, divindades, rituais, costumes, rituais etc “característicos” da casta em questão, sua abordagem é essencialista e desconsidera as transformações das práticas dos diferentes grupos, gerando um reforço conservador das identidades tradicionais pelas políticas públicas (JENKINS, 2004). Na Índia, o debate se dá também em torno da necessidade de registro da população de OBCs além das SCs e STs porque seus membros são também beneficiários de políticas de preferência, mas seu pertencimento a estes grupos não é registrado no censo, apesar de o governo conduzir estudos etnográficos para o exame de grupos que reivindicam elegibilidade para as reservas. Na falta de dados recentes sobre as OBCs, o governo tem utilizado os dados coloniais, o que suscita muitas críticas (BAYLY, 2001).

Essas discussões apontam para a dimensão paradoxal da igualdade e diferença, pois indivíduos e grupos, igualdade e diferença não são opostos ou pólos, mas conceitos que estão em constante tensão e interdependência (SCOTT, 2005). Para Joan Scott, há três paradoxos fundamentais que perpassam a relação entre estes conceitos: (a) a igualdade é, ao mesmo tempo, um princípio absoluto e uma prática historicamente contingente; (b) as identidades de grupo definem indivíduos e, simultaneamente, negam a expressão plena de sua individualidade; (c) as reivindicações de igualdade envolvem tanto a aceitação quanto a rejeição da identidade de grupo atribuída pela discriminação, isto é, as demandas por inclusão tanto negam quanto utilizam os mesmos termos sobre os quais a discriminação se ampara.

Por trás da ação afirmativa há uma série de teorias sobre as relações entre indivíduos e grupos que remetem ao fato de que certas práticas sociais impediram a inclusão de algumas pessoas na categoria universal do ser humano e, assim, ela busca remover os obstáculos à realização dos seus direitos individuais. Dessa forma, a ação afirmativa trata os indivíduos como indivíduos, entendendo que para isso é necessário tratá- los como membros de grupos. Em outras palavras, essa política de erradicação da discriminação abraçou a diferença como uma forma de promover a igualdade (SCOTT, 2005). É interessante salientar que muitas das críticas feitas por Ambedkar ao Hinduísmo diziam respeito justamente à maneira como esta forma de organização social e religiosa não reconheceria a integridade do indivíduo como valor central. Assim, para ele as políticas de preferência representavam medidas temporárias que utilizariam como referência os grupos discriminados com o objetivo final de inverter sua marginalização da sociedade e possibilitar o tratamento de seus membros como indivíduos. A ideologia de castas e hierarquia hoje convive com a idéia de direitos individuais na Índia moderna (PARIKH, 1997).

The Hindu social order does not recognize the individual as a centre of social purpose. For the Hindu social order is based primarily on class or Varna and not on individuals. (AMBEDKAR, 2002: 83).

Isso levanta problemas, como o questionamento se uma política voltada para eliminar a discriminação poderia deixar de reificar a existência social de grupos, questão

esta que pode ser mais bem compreendida se levarmos em conta o fato de que a relação entre indivíduos e grupos é um processo constante de negociação em contextos históricos em transformação. Basta para isso recordar o debate entre Gandhi e Ambedkar acerca dos Intocáveis e da homogeneidade interna desse grupo: enquanto Gandhi negou que houvesse uma identidade e um interesse comum entre os Dalits que justificasse a adoção de um tratamento preferencial, Ambedkar buscou justificar a aplicação da ação afirmativa para as

Scheduled Castes argumentando que séculos de discriminação criaram um senso de

identidade negativa comum (MCMILLAN, 2005).

A ficção do indivíduo abstrato é uma construção da democracia liberal cuja finalidade é a promoção da igualdade formal, mas que desconsidera que as diferenças presumidas entre os indivíduos têm efeitos reais – ou seja, que o pertencimento presumido a um grupo faz com que certas pessoas não sejam percebidas como indivíduos. Assim, a ação afirmativa utiliza a premissa do indivíduo abstrato e a ficção de sua universalidade como ponto de partida para aproximar o legal e o social, mas, para isso, tem necessariamente que se destinar aos indivíduos como membros de grupos (SCOTT, 2005). É interessante notar que as preocupações com a identidade dos grupos e com a forma como elas são ou não atenuadas ou reforçadas pelas medidas de ação afirmativa sempre estiveram mais presentes nos debates sociológicos do que nos discursos dos membros das Scheduled

Castes (MCMILLAN, 2005).

Sociologists find it difficult to arrive at a definition of caste for it involves the subjective identification of caste via data that varies from group to group and from time to time (…) There is thus one meaning of jati in the context of matrimonial and kindship relationships, a different meaning for economic interactions and a third meaning for political purposes. Jati does not necessarily have the same meaning even within the political context” (SHAH, 2002: 5).