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1.2 Os direitos de cidadania no Brasil: entre o formal e o real

1.2.1 Direitos humanos

Segundo Maria Victoria Benevides (2004, p. 46) “[...] os direitos humanos superam as fronteiras jurídicas e a soberania dos Estados nacionais”. A autora aponta a universalidade dos direitos fundamentais, isto é, o ser humano como fonte de todo o Direito.

Llompart (et al., 2007) entende os direitos humanos enquanto conceito que emerge num momento histórico e cultural determinado. Trata-se de um conceito “vivo” que não está fechado devido à sua vinculação à dignidade humana e às suas necessidades básicas, que também evoluem conforme o contexto histórico e social. Neste sentido, as novas gerações de direitos humanos se integram aos direitos já existentes. O direito aqui significa “não discriminação”, ou seja, deve garantir igualdade mínima entre todos os seres humanos com igual reconhecimento a todos, de todos os direitos humanos.

Para o autor (2007), no século XVIII, o estado liberal de direito, marcado pela ideologia individualista traz conseqüências negativas ao reconhecimento dos direitos humanos: a prioridade ao reconhecimento dos direitos civis e políticos, pois estes garantem a liberdade individual frente ao Estado; com isso, se dá a exclusão da titularidade e benesses desses direitos para amplos setores da sociedade. Tal ideologia individualista é a expressão dos interesses sociais, políticos e econômicos muito concretos: os da burguesia enquanto classe social ascendente. Neste sentido, o individualismo identifica o sujeito universal com uma categoria concreta, a saber, o homem masculino, branco e proprietário. Nos séculos XIX e XX, tem início a incorporação dos direitos sociais, econômicos e culturais aos direitos individuais, processo que se acentua principalmente após a II Guerra Mundial, no momento que se dá também a passagem do Estado liberal ao Estado democrático de direito.

Maria Victoria Benevides (2004, p. 36-37) define os direitos humanos como aqueles direitos “[...] comuns a todos sem distinção alguma de etnia, nacionalidade, sexo, classe social, nível de instrução, religião, opinião política, orientação sexual e julgamento moral. Decorrem do reconhecimento da dignidade intrínseca a todo ser humano”. No entanto, alerta que

direitos humanos e direitos do cidadão não são sinônimos. Direitos da cidadania decorrem da ordem jurídico-política de um Estado, no qual uma Constituição estabelece os controles sobre os poderes e define quem é cidadão, que direitos e deveres ele terá [...]. Do ponto de vista legal, o conteúdo dos direitos do cidadão e a própria idéia de cidadania não são universais. (Ibidem, p. 38).

Todavia, a autora assinala que embora não sejam sinônimos, os direitos do cidadão podem coincidir com os direitos humanos, o que ocorre em sociedades efetivamente democráticas. Mostrando a diferença entre direitos humanos e direitos ligados à cidadania, Benevides (2004) aponta, por exemplo, os presos, que embora tenham os direitos civis limitados, continuam sendo titulares dos demais direitos; da mesma forma os jovens que, mesmo com alguns direitos de cidadania limitados pela faixa etária, são titulares plenos dos direitos humanos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 cristaliza – embora não preveja nenhum mecanismo de proteção aos direitos que proclama – “[...] o processo de internacionalização dos direitos humanos, sob os traços de universalidade e indivisibilidade a caracterizá-los, em intrínseca correlação”. (ALMEIDA, 2006, p. 121).

Para Benevides (2004, p. 37, grifos do autor), “direitos humanos são históricos; não estão congelados num dado período com uma lista fechada. Na mesma linha, cidadania e democracia são processos”. Tratando da disparidade entre a positivação dos direitos na Constituição e a sua efetivação de fato, Laurindo Dias Minhoto (2006) entende que no Brasil, a questão dos direitos humanos, assim como os direitos políticos em sua essência e os direitos sociais é algo que foi sem nunca ter sido.

Esta é uma das principais questões a ser enfrentada em relação à construção da cidadania no Brasil: a regulamentação positiva dos direitos, embora seja um avanço e facilite o trabalho de seus defensores, não garante de fato sua efetivação. Em se tratando dos presos adultos e dos jovens que se encontram institucionalizados por cometerem ato infracional, Maria Cristina Vicentin (2005, p. 182) aponta que

é no âmbito do crime, do abuso policial que os direitos humanos são mais violentamente rechaçados, configurando-se como “privilégio de bandidos”, e em que se pode visualizar o lugar que tem o corpo do criminoso e a falta de limites para tratá-lo e puni-lo. Em parte, a ótica vingativo-repressiva apóia-se na idéia de que diante da ineficácia do sistema judiciário são cabíveis meios privados, violentos e ilegais de conseguir as mesmas coisas.

Segundo Patrice Canivez (1991), os direitos humanos fundamentam-se na consciência moral do indivíduo, são os direitos que ele reconhece nos outros. Para a autora, o fundamento dos direitos humanos é o respeito incondicional da pessoa, mesmo que saibamos da distância existente entre a afirmação de princípios e a realidade das práticas.

Roig e Añón (2004, p. 94) apontam que não há direitos universais sem a satisfação das necessidades básicas. Os direitos humanos “[...] existem porque satisfazem necessidades

básicas. [...] os direitos humanos estão ligados àqueles valores, necessidades e interesses que fazem com que um ser humano possa atuar como um agente moral”. Para os autores, as necessidades fazem parte da dependência do homem em relação ao mundo que pertence e, neste sentido, a necessidade existe mesmo que a pessoa não seja carente dela, pois remetem às objetivações culturais e sociais, o que dá conteúdo à própria condição humana.

Para Llompart (et al., 2007) os direitos humanos devem ser respeitados acima das diferenças pois transcendem as culturas e as ideologias. Devem ser entendidos, portanto, enquanto um conceito cultural e histórico fruto da “[...] conjunção de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos a nível nacional e internacional”.(Ibidem, p. 100, tradução nossa)27.

Entendemos que as questões da não concretização dos direitos em sua totalidade, assim como da exclusão social, econômica e material fazem parte do sistema capitalista em sua essência, podendo ser superadas na totalidade somente em uma outra forma de produção e sociedade. No entanto, não podemos deixar de buscar formas de amenizar e confrontar essas questões na atualidade. No sentido da concretização dos direitos de cidadania e direitos humanos, diversas questões devem ser superadas. Uma das mais relevantes é a exclusão, a invisibilidade que milhares de pessoas sofrem na atualidade.

A exclusão é um dos grandes problemas a serem enfrentados no Brasil. É questão fundamental na busca pela consolidação dos princípios democráticos que formam a base de nosso país com o fim da ditadura militar (1964-1985). É tema essencial também no debate sobre a materialização dos direitos humanos, uma vez que se trata, primordialmente, de desrespeitos a muitos desses direitos. Para Tânia Regina De Luca (2003, p. 488), “as desigualdades sociais deitam raízes profundas na ordem social brasileira e manifestam-se na exclusão de amplos setores, que seguem submetidos a formas variadas de violência”.

Carlos Nelson Coutinho (2000) aponta que o fenômeno da exclusão se dá tanto em escala mundial – entre os países ricos e os pobres – quanto em escala nacional, com a divisão entre classes sociais. Para o autor a globalização somente é possível a partir da exclusão de diversos setores da população: quer seja entre países ou dentro de cada um deles.

Hoje se reproduz em escala mundial o fenômeno da exclusão: e o capitalismo, em sua nova etapa, a da globalização financeira, tem aprofundado cada vez mais essa exclusão. [...] O fenômeno da exclusão,

ainda que em medida diversa, não é exclusivo dos países ditos “emergentes”, mas é uma tendência mundial. (COUTINHO, 2000, p.136).

Segundo Marco Aurélio Nogueira (2001, p. 72), em resposta à globalização os Estados reduzem a ação de proteção social e, da mesma forma, diminuem as tentativas de ativar e planejar a economia e o crescimento. Conseqüentemente, o número de pobres, desempregados e excluídos aumenta demasiadamente. O resultado desse processo é “[...] um apartheid social. De um lado, ficam os que podem ‘continuar utilizando os recursos como sempre fizeram’. De outro, os que têm apenas ‘o direito de ver, pela mídia, como estariam passando os bem-de- vida’. Uma tragédia, de cujas repercussões ninguém escapa”. Para Fernanda Leão de Almeida (2006) a expansão veloz da globalização gera também uma expansão veloz da exclusão social. Neste sentido, o reconhecimento de todos os direitos a todas as pessoas é essencial para combater a exclusão social.

Falamos não apenas em exclusão no sentido econômico do termo, mas também em relação aos direitos conquistados e legitimados na Constituição de 1988 – a chamada Constituição Cidadã – e nos diversos pactos e acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário. Entendemos que tanto o problema da desigualdade na distribuição de renda como da chamada exclusão social são estruturais, sendo importantes as reformas, mas não tomadas como fins e sim como meios de uma mudança profunda e que se faz necessária na estrutura social. Para Carlos Nelson Coutinho (2000, p. 133) “devemos, por meio de reformas profundas, de reformas de estrutura, apontar na direção da transformação da ordem social”. No mesmo sentido, Nogueira (2001, p. 79-80) aponta que a reforma política pode ser definida “[...] pela capacidade sociopolítica de conceber uma nova sociedade. Só faz sentido se estiver vinculada aos destinos da população, à sua promoção, à defesa de seus direitos”.

Luciano Oliveira (1997) entende que a exclusão se designaria a partir de três elementos principais: a não inserção no mercado de trabalho; a desqualificação que torna diversos cidadãos economicamente desnecessários e, a ameaça que representam por serem excluídos, devendo, portanto ser eliminados. Deste prisma, podemos pensar que no Brasil, temos milhares de pessoas nesta situação: tanto sem emprego quanto sem a qualificação exigida e que, portanto, se tornam alvos fáceis das políticas de segregação implementadas pelo Estado brasileiro.

Entendemos que a exclusão pode se dar também em termos de não acesso ou negação dos direitos de cidadania a grupos ou parcelas da população. Neste sentido, Maria Cristina Vicentin (2005, p. 176) nos traz uma questão relevante no que se refere à juventude brasileira:

“se a cidadania implica uma reciprocidade entre o sujeito e o Estado, e se o Estado descumpre a legislação, como exigir dos jovens o cumprimento de deveres, quando seus direitos não cessam de ser cassados?”.

Para Luiz Eduardo Soares (2006, p. 214) “[...] a exclusão da cidadania, o empobrecimento provocado pelas políticas neoliberais, o aprofundamento das desigualdades são fatores de maior relevância, mas apenas se traduzem em mais violência pela mediação de determinadas condições culturais”. A violência passa a fazer parte do nosso cotidiano, mas ela não vem apenas de baixo para cima; muitas vezes vemos ações também violentas vindas de cima, da classe dirigente e do Estado – apoiado por essa classe. Dentre as principais medidas de cunho violento do Estado no “combate” aos excluídos, está a política de encarceramento em massa.28 Essa monopolização da violência pelo Estado torna o controle e a repressão da sociedade cada vez mais legalizada e violenta. Como conseqüência desta política

[...] a repressão emerge como a atividade estatal, por excelência, correspondente à inibição da violência generalizada e difusa, cujas complicações fragmentárias impediram o desenvolvimento da economia e a expansão do controle democrático sobre os poderes, nas mais diversas esferas. (SOARES, 2006, p. 206).

Nos discursos referentes à exclusão e inclusão social, Fernandes (2007, p. 4) enxerga certa ambigüidade, uma vez que se “[...] reconhece a desigualdade, a discriminação e a violação dos direitos básicos [...]. Os excluídos não são apenas rejeitados fisicamente, mas representam as mais variadas formas de sentido e categorias que rompem o vínculo social”. Segundo José de Jesus Filho (2006, p. 56), essa contradição ocorre, pois no Brasil “[...] quando a prioridade é a segurança, em nome da ideologia da lei e da ordem, os direitos inerentes à cidadania são postos em segundo plano”.

Embora os direitos humanos busquem a igualdade, ainda não conseguem, de fato superar a condição de exclusão de grande parcela de seres humanos. Neste sentido, falar de igualdade é falar de uma ampliação progressiva e enriquecedora das oportunidades de vida das pessoas. Segundo Fernanda Leão de Almeida (2006, p. 125)

[...] para efetivar o processo de igualdade entre os homens, a simples tolerância à diversidade não é suficiente ao rompimento de situações e práticas discriminatórias injustificáveis, em crescente expansão e escala universal. Daí a importância da adoção de providências capazes de,

28 Não apenas das prisões de adultos, mas também na internação de adolescentes e jovens em instituições

concretamente, elevar ao seio da coletividade grupos ou indivíduos socialmente vulneráveis.

Devemos considerar os direitos de forma vinculada às pessoas concretas de seus titulares, como por exemplo, as mulheres, os jovens e as crianças pois “[...] a equiparação é uma meta e a diferenciação uma técnica para alcançar essa equiparação”. (ROIG e AÑÓN, 2004, p. 43). Para tanto, não só as diferenças devem ser reconhecidas, respeitadas e garantidas, mas também as desigualdades devem ser reconhecidas para que possam ser superadas.

Todavia, aceitar as diferenças não basta. Os direitos fundamentais devem ser reconhecidos e garantidos para a efetivação da igualdade. A pluralidade do ser humano faz pensar que para a universalidade dos direitos humanos se efetivar, devem ser garantidos em situações especificas. Assim, o reconhecimento e garantia dos direitos fundamentais, bem como o princípio da igualdade são essenciais na luta para a efetivação da democracia na atualidade.