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REVISÃO TEÓRICA

3. Direitos Sociais e o contexto do Brasil

3.2 Direitos Sociais, políticas públicas e Psicologia

Na busca avançada de estudos e discussões na base de dados do SciELO (Scientific Electronic Library Online), cruzando a expressão ‘Direitos Sociais’ e ‘Psicologia’, encontram-se oitenta e sete (87) resultados, sendo que, quando pesquisada unicamente a expressão ‘Psicologia’, têm-se vinte e um mil, cento e trinta e um trabalhos (21.131). Articulando o termo Psicologia e ‘Políticas Sociais’ encontram-se duzentos e quinze (215) trabalhos e com a expressão Psicologia e ‘Políticas Públicas’ o número cresce para trezentos e oitenta e oito (388) resultados. Esses números não representam a amplitude de possibilidades da prática profissional e dos estudos realizados com o tema dos Direitos Sociais e das políticas públicas e sociais em Psicologia. Contudo, indicam alguns dados que podem ser considerados para analisar a produção de conhecimento da área.

De acordo com Miron e Guareschi (2017), o tema dos Direitos Sociais, política, políticas públicas, cidadania, dentre outros, acompanha o processo de institucionalização da profissão que se estabelecia em meados da década de 1988, rompendo com posições teóricas e práticas até então presentes no cenário brasileiro. Engendradas em um campo socio-histórico de transformação política nacional, “de forma sutil e dispersa” (p.355), a construção da garantia de direitos tornou-se interesse para as(os) psicólogas(os), delineando o tema como objeto de análise da profissão.

Relacionada às disputas de poder e às problemáticas sociais e políticas da época, Scarparo e Guareschi (2007) descrevem que a participação de intelectuais em movimentos de emancipação política naquela época, com crescente e expressiva quantidade de psicólogas(os), situava a problemática dos direitos em articulação com o questionamento do papel e da responsabilidade social da Psicologia, os efeitos de suas práticas e teorias, na

44 sociedade brasileira. Cabe destacar que os trabalhos utilizando o conceito de subjetividade foram centrais no avanço das discussões sobre a relação entre Direitos Sociais, políticas públicas e Psicologia. Ao problematizarem o modo como as pessoas se relacionam consigo, com os outros e com o mundo, eles possibilitaram complexificar a análise das incidências do Estado contemporâneo na vida da população, seus processos e efeitos, evidenciando diferentes produções de subjetividades nas políticas em articulação com as práticas psicológicas (Prado Filho & Martins, 2007).

Conforme Yamamoto e Oliveira (2010), os últimos 25 (vinte e cinco) anos demonstraram a inserção de psicólogas(os) em diferentes políticas públicas, prioritariamente, no campo de trabalho das políticas de saúde e de assistência social. Como consequência, muitos dos estudos, teorias e relatos de experiências se desenvolveram com foco nessas duas esferas dos Direitos Sociais. Tal realidade demandou da formação universitária uma adequação dos modelos consagrados de atuação profissional, devido a conjunturas impostas pelas próprias políticas, ressignificando a noção de Psicologia e de suas, até então, estratégias terapêuticas usuais. A inserção de profissionais fora de espaços privados, nas políticas públicas de garantia dos Direitos Sociais, nas comunidades, vilas, ruas e demais cotidianos do Brasil, emprestaram certa brasilidade às práticas profissionais, exigindo intervenções situadas socio- historicamente.

Dentre os temas que emergem a partir dessa prática, situada está a noção de território e territorialidade. As políticas públicas de garantia dos Direitos Sociais como, por exemplo, o Sistema Único de Saúde e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), organizam-se pela lógica do território nos municípios brasileiros, planejando e executando suas ofertas de serviços e abrangência das intervenções por recortes geográficos. Referente ao Direito Social à saúde, pelo SUS, a noção territorial se expressa nas próprias diretrizes da política: via descentralização, regionalização das ações, organização dos serviços com vistas à expansão do acesso, cobertura da população que o compõe, uso racional de recursos, atenção às necessidades regionais e estímulo à participação popular local, nos espaços de controle social (Gadelha, Machado, Lima & Baptista, 2009).

45 Assim, analisar a clínica em Psicologia, a produção de subjetividades e os processos terapêuticos, inserindo uma lógica de cuidado territorial, requer colocar em análise os paradoxos e ambiguidades em torno dos dispositivos Estatais constituídos para o esquadrinhamento da população em uma perspectiva territorial. Cadastros, fichas de acompanhamento, visitas domiciliares, regiões de pertencimento, formas identitárias (gestantes, adolescentes, hipertensos, diabéticos, homens violentos...), mapas das famílias, etc., incluem a população em práticas de controle pelas políticas públicas e passam a fixar e segmentar os usuários à medida que o Estado adentrar no território (Hillesheim & Bernardes, 2014).

Entretanto, para Hillesheim e Bernardes (2014), a noção de território das políticas ainda permanece restrita a um recorte geográfico e não a uma perspectiva de território existencial subjetivo. O que a política compreende como geográfico, transmuta-se no direcionamento dos modos de circulação, de habitar e de ser, que expropriam, impedem de circular, produzem sentimentos de pertença ou de identificação sobre aqueles que habitam determinado recorte espacial. Assim, considerar o território como espaço subjetivo e de relações sociais é evidenciar a complexidade da dinâmica territorial: uso dos recursos de um território, compreensão das migrações, crescimento demográfico, desigualdades regionais, interesses, saberes, formalidades, informalidades, legalidades, ilegalidades, sujeitos e conflitos que compõem as condições socioespaciais e operam em um determinado local (Hillesheim & Bernardes, 2014).

Para a Psicologia, a noção de território se faz presente na prática de garantia do Direito Social à saúde, orientando o modo de organização de um dos pontos altos da política públicas de saúde mental, a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Essa política se fundamenta na ideia de território e territorialidade amparada pela Lei nº10.216, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais (2001), considerando os diferentes setores da vida de usuárias e usuários, incluindo o contexto socio-histórico e territorial, para a formulação das práticas de cuidado e dos Projetos Terapêuticos Singulares (PTS). A relação saúde-transtorno, nessa perspectiva, torna-se mais ampla e complexa do que relativa apenas a um organismo individual. O cuidado, assim, abrange uma perspectiva ampliada e

46 integral de saúde, sob princípios de um tratamento humanizado (Ministério da Saúde, 2015).

Ampliar a noção de saúde no exercício clínico da Psicologia requer inserir os diferentes Direitos Sociais – educação, trabalho, lazer, moradia, etc. – como elementos inerentes a uma constituição subjetiva cidadã, demandando um olhar multifatorial sobre a compreensão dos adoecimentos. Situar o exercício da cidadania como expressão de saúde, parte da orientação que institui a “atuação territorial, a intersetorialidade das políticas e o trabalho em rede” como “elementos (...) que orientam a perspectiva da desinstitucionaliza- ção, bem como, a Estratégia de Atenção Psicossocial (EAPs)” (Severo & Dimenstein, 2011, p.642). Essas premissas, pilares da política de saúde mental no Brasil, reconhecem os diferentes serviços públicos de Direitos Sociais como ferramentas às estratégias terapêuticas, já que atuam como possíveis vias para a constituição de subjetividades autônomas, cidadãs e para a produção de qualidade de vidas.

Contudo, estudos têm apontado que a construção de autonomia e reabilitação psicossocial no Brasil, na perspectiva da cidadania, tem enfrentado limitações uma vez que o contexto brasileiro carece de equipamentos sociais que garantam os direitos previstos em Constituição (Severo & Dimenstein, 2011). Os Projetos Terapêuticos de reabilitação psicossocial terminam por comportar duas concepções de cidadania predominantes nas práticas profissionais, que incidem sobre a subjetividade de usuárias e usuários, nos serviços substitutivos: uma que favorece processos de normalização social e outra que possibilita reconstruir modos variados de se conviver com a diferença (Severo & Dimenstein, 2011).

Essas duas intervenções predominantes podem estar ancoradas no que formulam Venturini, Galassi, Roda e Sérgio (2003), quando indagam sobre o modelo de sujeito idealizado, resquícios da modernidade, que ronda as práticas de cuidado em saúde mental. Esse projeto de sujeito estaria calcado na necessidade de recuperar aquilo que ‘faltaria ao louco’ para que ele possa atender expectativas de ser ‘racional’, ‘consciente’, ‘lógico’ e, portanto, ‘mentalmente normalizado’. Macedo e Dimenstein (2009) identificam, também, nas atuações da Psicologia no SUS e no SUAS, “uma adesão a um ideal de produzir sujeitos autônomos, produtivos, saudáveis e conscientes dos seus

47 direitos, logo se configurando como práticas normativas” (p.293). Descrevem haver ações que expressam a tentativa de ruptura aos modelos identitários hegemônicos; contudo, são intervenções em constante contradição, já que os direitos no Brasil, para as autoras, teriam sido afirmados com objetivos civilizatórios da República pela “coalizão histórica entre Saúde, Ordem e Progresso” (p.296).

Assim, as ambiguidades e paradoxos se fazem presentes na articulação entre a clínica em Psicologia, os Direitos Sociais e as políticas públicas. A interferência do mercado econômico e a imperativa preocupação com a produção e circulação do capital, de acordo com Guareschi, Lara e Adegas (2010), fazem emergir conflitos entre aquilo que são os direitos garantidos na Constituição e os interesses do mercado econômico. Em uma prática Estatal permeada por racionalidades mercantis, produzem-se efeitos subjetivos que atuam sobre os corpos nos quais se investe que não remetem unicamente a uma garantia de direitos. Na relação entre Estado, economia, direito e produção de subjetividades, efetivar a garantia de direitos pode vir a operar como forma de controle e homogeneização dos corpos, produzindo, pela via das políticas públicas, certa inversão das relações sociais em relações econômicas. Dito de outra forma, ao configurarem-se políticas públicas atravessadas por lógicas de mercado, as estratégias de governo em prol da garantia de acesso aos Direito Sociais, incluindo as intervenções da Psicologia, estariam arranjadas por elementos que são, também, de interesse econômico (Guareschi, Lara & Adegas, 2010).

É o que se demonstra em estudo sobre a articulação entre questões econômicas e a formulação de Projetos Terapêuticos Singulares, de adolescentes internados compulsoriamente em um serviço de saúde mental por uso de drogas. Nesse estudo, constatou-se, a partir da análise de 107 internações, que a internação compulsória se apresenta como uma medida estratégica para governar sujeitos que advêm de situações de rua, abandono, pobreza e marginalização (Guareschi, Lara, & Ecker, 2016). O diagnóstico psiquiátrico, obrigatório para que o jovem tenha acesso ao serviço, como uma categoria de classificação, marca no real o que não existia a priori e, através do processo de internação compulsória, passa a administrar a vida de muitos dos adolescentes, sob mecanismos de investimento que buscam a produção de

48 determinados modos neoliberais de circulação social (Guareschi, Lara, & Ecker, 2016).

Nesse panorama, a articulação entre Direitos Socias, políticas públicas e Psicologia, no Brasil, expressa a presença de diferentes fatores de análise que ampliam a compreensão sobre como o exercício de Direitos Sociais incide nos

processos subjetivos e terapêuticos em curso, na clínica em Psicologia, articulado às políticas públicas brasileiras. Contexto precário de políticas

públicas, violação dos Direitos Sociais, desigualdade social, território, territorialidade, intersetorialidade, trabalho em rede, processos de normalização ou de afirmação das diferenças, relações de poder, produção de autonomia, cidadania, classificações psiquiátricas, assim como mercado econômico e a circulação de capitais, são alguns desses fatores, com seus paradoxos e ambiguidades, presentes no contexto brasileiro da prática em Psicologia.

Com o objetivo de avançar na análise sobre como a noção de Direito Social incide na clínica em Psicologia, nas intervenções terapêuticas e como discursividade que produz práticas e subjetividades nos cotidianos das vidas sobre as quais intervém, faz-se necessária uma aproximação com a noção de clínica em Psicologia no país e como ela contribui evidenciando outros fatores de análise.