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No período entre os séculos XI - XIII, essa produção feita pelos leigos, terá uma função disciplinadora, onde tentará barrar o tom de agressividade vigente na sociedade. Surge a ideia de incentivar a civilidade por parte da nobreza, que ao utilizar o conceito de civilizado, o coloca como um meio de fundar uma autoconsciência aristocrática, que fabrica para si uma autoimagem baseada na concepção de um modo de proceder socialmente aceitável, iniciado num estrato elevado da elite cavalheiresca que queria se distinguir tanto para os outros, como para seus próprios olhos, forjando uma imagem baseada num código de leis próprio e exclusivo.

O padrão de ‗bom comportamento‘ na Idade Média, como todos os padrões depois estabelecidos, é representado por um conceito bem claro. Através dele, a classe alta secular da Idade Média, ou pelo menos alguns de seus principais grupos, deu expressão à sua alto-imagem, ao que em sua própria estimativa, tornava-a excepcional. 44

Essa codificação era determinada por padrões civilizatórios específicos classificados de acordo com os anseios e desejos que a nobreza desejava que seus membros seguissem.

Essa civilização, será exposta por sua camada criadora como uma evolução, um refinamento, além de ser um meio de controlar uma categoria ociosa resultante da Paz de

Deus45, transformando-os de desordeiros, em defensores da paz.

Anteriormente a visão entre barbárie e civilização era balizada no princípio linguístico, em seguida no princípio religioso e por fim na questão de ―cultivo‖ do espirito.

No medievo o cultivo46 é ação de Deus, moldado e controlado por Ele, que determinava sobre

esse meio quem era civilizado e quem não era. Uma das formas dessa determinação estava na cultura, muito difundida com a produção literária.

Mesmo tentando afastar-se das amarras religiosas, as obras apresentavam ainda elementos constitutivos dos ensinamentos cristãos, pois a vida cotidiana era fortemente inspirada pela religião. Isto também se reflete na construção no ideal nobre de perfeição.

A nobreza usava a literatura para o fortalecimento do ideário de modelo perfeito , forjando mitos e criando modos de expressão próprios e convivência social, divulgando novas formas de sociabilidade, de modelos estéticos, conduta de vida nobre, uma forma de ―ditar‖

44

Ibidem, p.190.

45

Paz de Deus é definida, em 989 d.C., no Concílio de Charroux. Aí se estipula, pela primeira vez, a existência de períodos de paz obrigatória.

46 YOUNG, Robert J.C. Cultura e a História da Diferença. In:______.Desejo Colonial :hibridismo em teoria,

moda ―captando‖ a essência de pessoas reais e transportando-as para um mundo onde todas as coisas são possíveis, as pessoas boas são reconhecidas pela honra e as más punidas por seus atos.

A elite manipula os seus e, além dela, o clero e os servos absorvem as obras, gerando efeitos na sociedade como um todo: dentro da nobreza, essa ideologia se traduz em códigos e costumes, entre os clérigos vem a aceitação, ou críticas que a repudiam tais produções, já entre os servos, pode-se concluir que a opinião deles é pouco conhecida, sabe-se que sua visão de mundo é de abnegação diante de uma realidade imutável, onde nada se pode fazer. Somente com o advento da burguesia que estas ideias serão contestadas mais energicamente, gerando disputas e com o tempo, algumas mudanças político-sociais.

As produções da literatura funcionarão como um meio de projeção de atitudes coletivas e individuais, além de padrões de sensibilidade gerados a partir de um microcosmo que expressa a percepção de um elemento da mentalidade coletiva do homem medieval. Ultrapassando barreiras de classe e ordem social, influenciando a todos sem distinção e moldando tradições e costumes.

Molde que se espalhará e fundamentará a identidade de uma época, em que a moral do cavaleiro não era somente sua, mas de seu estamento, não somente pessoal, mas

social, o que pede um comportamento incontestável47.

Mesmo envolvido nessa lógica de que faz parte de um grupo, uma ordem e uma família, o nobre medieval começa a se dar conta da sua dimensão como ser único dentro de uma conjuntura social.

A esse mundo teoricamente organizado à perfeição, o homem do medievo precisava encaixar-se e para isso tinha que seguir regras alhures estabelecidas, convencionadas ante os poderes do céu e da terra. Para isso, ele teria que seguir regras e estas estabeleciam um novo perfil de nobreza, civilizado e culto.

Os livros eram artigos de luxo, a educação e o ensino formal eram quase exclusivamente privilégio dos clérigos, os oratores não tinham somente a prioridade sobre o acesso à leitura, como também grande parte do que era produzido era feito por eles, que ganham concorrência com as produções feitas por e para leigos.

As obras da literatura laica expressavam o ponto de vista do estamento a que era dirigida: a nobreza. Construía sua autoimagem, além de resgatarem fatos do passado, suprindo

47

algumas aspirações mundanas, ausentes nas obras clericais, que se as pusessem, geralmente eram representadas sobre um viés negativo.

Com a intensa circulação de nobres foram se formando pequenas cortes. Nelas, o rei era visto sob uma aura quase sobrenatural, etérea, distante, e quem fosse próximo a ele, seria valorizado pois para frequentar a corte régia era necessário obter um certo refinamento e numa sociedade eminentemente guerreira poucos tinham um refinamento e um grau de instrução satisfatório.

Com o advento das cidades, estas se tornaram o centro de tudo o que era novo e elitizado, vendo isso, as pequenas cortes começaram a imitá-la e essa reprodução era disseminada pelos trovadores que de passagem pelas cidades e vilas reproduziam seus hábitos aos senhores dos distantes feudos visitados por eles.

Essa noção era embasada no princípio onde esses exemplos eram chaves para manter a ordem social, e determinar as funções de cada estrato na dinâmica social, e nessa época, a narrativa histórica se confunde com a religião nas hagiografias, e com a ficção com as gestas, que tinham como uma das temáticas fatos reais.

Na Canção de Rolando percebe-se exatamente a profunda relação de poder do monarca em relação aos demais personagens, todos nobres, e a presença do herói idealizado na persona do protagonista, que representa o imaginário do cavaleiro ideal para o período. Este molde se espalhará e fundamentará a mentalidade e identidade de uma época, em que a moral do cavaleiro não era somente sua, mas de sua classe, não somente pessoal, mas social, o

que pede um comportamento incontestável48.

Além disso, a obra apresenta características morais como a forte religiosidade e a visão de oposição contra o estrangeiro, numa antecipação do que percebemos na sociedade moderna com relação aos povos culturalmente diferentes. Sendo que aquele que é social ou culturalmente distinto é visto como inculto, atrasado ou incivilizado.

A Canção mostra como exemplo, o protagonista como o herói que luta por seu povo, em prol de sua fé, tendo força, fé e coragem sem iguais, capaz de passar pelos maiores

desafios em defesa de seus objetivos49.

Nela percebe-se a riqueza cultural do medievo nessa manifestação, mesmo que produzida por e para uma estrita camada da população, ela dá um ponto de vista sobre a camada que determinava os vieses da vida da maioria da população em sua época.

48 Ibidem. p.29. 49

2.5 A Palavra, o Gesto, o Símbolo e a Memória

Jacques Le Goff em Para uma outra Idade Média: tempo, trabalho e cultura no

Ocidente, fala do silenciamento das fontes50 com relação a alguns aspectos sociais do medievo que não eram considerados significantes pela elite do período, ele defende a ideia de que o discurso é moldado de acordo com as demandas econômicas e sociais.

Toda a teia de discursos engendrada do período é construída sobre o viés de manutenção da ordem vigente, onde cada um faz sua parte e mantem a harmonia engendrada por Deus, e quem ferisse tal disposição seria punido na terra e além dela. Assim é exercida

uma violência simbólica51, onde o dominado apresenta uma aderência extorquida pelo

dominante através de uma comunicação racionalizada, ou seja, aquele que detêm o poder, o impõem.

Duby chama atenção para esse aspecto quando diz: ―Com efeito, as omissões

formam um elemento fundamental do discurso ideológico: essencial, sua significação deve ser elucidada‖ 52

Mesmo sem uma máquina administrativa53 como conhecemos hoje, o período

medieval apresenta mecanismos sociais constituídos para essa função: a Igreja e o Palácio. Estas duas instâncias controlavam costumes, tradições e comportamentos, criando um ―mecanismo de unicidade‖, que era seletivo para quem mandava e compulsório para quem obedecia.

No período, a sociedade era marcada por traços de dominação e subordinação evidentes em todos os campos socioculturais. Todo o sujeito, independentemente da situação econômica, via-se envolvido no contexto de subordinação, seja a seu senhor da Terra (suserano), seja ao senhor do Céu, e de dominação - dentro de seu grupo com relação a seus pares ou com relação aos mais pobres.

A nobreza montará todo um arcabouço de argumentos baseados nos padrões de comportamento, como forma de valorização socioideológica que consistirá na disseminação de um discurso civilizatório.

50 LE GOFF, Jacques Para uma outra Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Petrópolis, RJ:

Vozes, 2014, p.138.

51 BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p.100.

52 DUBY, Georges. História Social e ideologias das Sociedades In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História

novos problemas. 4 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves,1995, p.137.

53 CHARTIER, Roger. Textos, símbolos e o espírito francês. História: Questões e Debates. Curitiba-PR,

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