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4. OS MODELOS COMO PADRÃO DE EDIFICAÇÃO SOCIAL E POLÍTICA NA CHANSON

4.1. O homem medieval e a importância do enquadramento social

Para se inserir entre os seus semelhantes, e ser por eles aceito, o ser humano teve que se adaptar à realidade social a ele imposta, essa configuração é dada desde seu nascimento, São Tomás de Aquino em sua Suma Theológica, assim como Aristóteles analisava que o homem, como ser sociável, necessitava desse convívio, sendo um infortúnio viver fora dele. No período medieval, só era aceitável o isolamento, se a pessoa fizesse parte de uma ordem religiosa, que via no recolhimento uma forma de aproximação com Deus.

Nessa época, a participação social era importante, visto que as redes de relações engendradas eram complexas e plurais, o vivente dessa realidade assumia diversas personas, que não se resumiam em somente seguir papeis designados por uma ordem trifuncional determinada como se imagina.

A triplicidade é, com efeito, um dos elementos do sistema. Porque a desigualdade reina no universo: uns mandam, os outros devem obedecer. Por consequência, duas condições separam os homens, determinadas pelo nascimento, pela ―natureza‖: uns nascem ―livres‖ e outros não; uns nascem ―nobres‖ e outros servos. Permanecem nesta posição natural enquanto vivem na parte do universo maculada pelo pecado. Na medida em que conformam a sua existência com as exigências da ordo, em que respeitem a lei divina que lhes permite viverem como vivem os anjos, conseguindo assim escapar à impureza, os servidores (os servos) de Deus libertam-se daquilo que instaura a diferença de condições.181

Vendo-se inserido nessa concepção, cada individuo via-se diante duma ordenação social estabelecida e quase imutável, e por isso, deveria se resignar e aceitar tal coerência, pensando numa recompensa que seria alcançada no momento em que fossem julgados no fim. Para o homem medieval, as coisas seguiam a lógica celeste, e restava a todos se resignarem com sua sorte, já que a possibilidade de ascensão social pequena, os mais humildes olhavam para cima e viam a nobreza e o clero, já a nobreza olhava para baixo e via uma massa de pessoas destinadas a servir, sem questionar, sua autoridade previamente determinada pelas mãos divinas.

Dentro dessa realidade social, a camada com maior fonte de riqueza, a terra, era a nobreza, estamento econômico que recebia rendas da reserva dominal, cultivada por um vasto

181 DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. 2 ed.Lisboa: Editorial Estampa, 1994,

número de criados, que o sustentava e lhe dava a liberdade para não explorar fisicamente seus campos.

E pelo fato da sociedade europeia viver no clima de constante instabilidade e por ter sempre presente o espírito bélico das Cruzadas, seus membros viam nas práticas de guerra um movimento cotidiano, o que desencadeava uma série de consequências para as outras categorias dessa tripartição.

A verdade é que na sociedade medieval, cada um era obrigado a viver de acordo com a forma de vida em que nasceu e do meio em que as oportunidades surgiam, como um ―confinamento social‖. Os mais nobres possuíam o controle, por suas armas e sua ideologia de se acharem superiores aos demais. Ao pensar assim, os membros desse estamento não têm escrúpulos em desprezar os outros e praticar a falta de moderação e dar vazão a seus impulsos.

Esse padrão de ordens implantadas advém da visão que o homem medieval possuía de uma vida social harmônica, engendrada por Deus, ao contrário da lógica de convivência terrena concebida pelo homem, carregada de pecado, vícios e paixões sem controle, que necessitava de uma vigilância constante.

A esse mundo teoricamente organizado à perfeição de Deus, o homem do medievo precisava encaixar-se, e para isso tinha que seguir regras estabelecidas, convencionadas ante os poderes do céu e da terra.

O céu tendo como representante a Igreja, instância de representação de Deus, lugar de salvação, mostra ao homem o modelo de comportamento reto, cristão, que o levará para a morada celeste. Já a terra tem como emissária as realizações do homem, que induzem ao pecado, como o paganismo e ao uso extremado da força, que desumaniza a figura criada por Deus, a sua imagem e semelhança, que não tem outro fim senão a danação eterna.

A oposição entre o aqui embaixo e o além é inseparável da dualidade moral que estrutura o pensamento cristão. Essa dualidade é, de resto, o fundamento do modelo das duas cidade, que Agostinho lega à Idade Média e em virtude do qual o mundo se divide em dois conjuntos opostos: a cidade de Deus , que reúne os justos daqui de baixo e a cidade do Diabo , da qual fazem parte tanto os seres vivos atormentados pelo pecado como os danados e os diabos que povoam o inferno.182

A definição das posições a que se pode aderir, dá um mote de compreensão de como a religião era fundamental para se pensar padrões de comportamento em sociedade, assim como suas definições do que era ou não aceitável, de quais eram as penas impostas a

182 BASCHET, Jerôme. A Civilização Feudal: do ano 1000 à colonização da América. São Paulo:

quem não se enquadrasse em seu papel social previamente determinado e das recompensas adquiridas a aqueles que fossem aceitos nesse círculo, que era ao mesmo tempo, público e privado.

4.1.1-Transmissão de modelos.

A maioria da população medieval era formada por iletrados, como então passar a mensagem de como se deveria ou não agir, mostrar as consequências do vício e as maravilhas do paraíso?

A quem fosse incumbida essa missão seja os representantes da Igreja, os clérigos, seja os laicos jograis, ambos usavam de estratégias para a transmissão de suas mensagens, através de palavras, ou de imagens.

No caso da palavra, para chegar ao público a que se destinava, o portador dela deveria expô-la ao maior número possível de pessoas, e para isso a memória era fundamental, como nos diz Le Goff:

Muitos dos homens da Idade Média são analfabetos, como é o caso da grande maioria dos leigos até ao século XIII. Nesse mundo de iletrados, a palavra tem uma força especial. Das pregações o homem medieval extrai noções, anedotas, instrução moral e religiosa. E certo que o texto escrito tem um grande prestigio baseado no prestigio das ≪Sagradas Escrituras≫ e dos clérigos, homens de escrita, a começar pelos monges, como o scriptorium — o lugar da escrita, o aposento essencial de todos os mosteiros — comprova. No entanto, o grande veículo de comunicação e a palavra. Isso pressupõe que a palavra seja bem conservada. O homem medieval e um homem de memória, de boa memória183.

Através das palavras e de gestos, a mensagem era transmitida nas pregações e alcançava seu público alvo de forma mais contundente, e outro instrumento era utilizado, o corpo.

Elemento que podia ter conotações diversas, elogiosas, onde o corpo ganha uma imagem social representando a ordem do mundo, onde cada uma das três ordens é definida por partes específicas do corpo.

O melhor desenvolvimento dessa metáfora foi de João de Salisbury, por volta de 1159, no seu famoso Policraticus: a comunidade política (res publica) é um corpo do qual o rei é a cabeça, o Senado o coração, os juízes e governadores de províncias os olhos, ouvidos e língua, os guerreiros as mãos, os arrecadadores de impostos e fiscais o ventre e o intestino, os camponeses os pés. Na realidade medieval, o Estado típico era, portanto, um reino184.

183 LE GOFF, Jacques. O Homem Medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989. p.27

Uma ideia que usa o corpo como exemplo é de significação religiosa, onde Cristo é a cabeça, porém posteriormente, é pensada uma nova configuração, usando o mesmo objeto, mas enquadrando-o na imagem política, a cabeça não é mais o Cristo e sim o monarca - que gera a disputa entre a Igreja e o Estado, para ver quem era mais essencial na fisiologia politica.185

Dentro dessa perspectiva, de ressignificação modelares, muitos daqueles que ―pertenciam ao mundo‖, no fim de suas vidas entregavam seu corpo a causa celeste, abrindo mão dos vícios terrenos e abraçando o hábito monástico como uma forma de reparação física e espiritual.

Quantos se entregaram pelos ritos não da vassalagem, mas da servidão, submeteram- se, tornaram-se propriedade de um santo, seus homens ou suas mulheres ―de corpo‖, tais como esses ―servos de santuário‖ dos quais muitos saíam da mais alta nobreza, tão numerosos na Alemanha, na Lorena, doravante protegidos neste mundo e no outro.186

Outras visões trazem a imagem do corpo como portas para o pecado, em que por meio dele, despontam os pecados capitais, que levam o homem a queda, e onde no inferno segundo alguns textos da época, esses pecadores tem que pagar suas penas.

E mesmo após a morte, esses pecadores sentem os martírios, afligidos por uma

espécie do que Le Goff chama de ―receptáculos incertos‖187 , pois apesar da ausência de um

corpo físico, os mortos apresentam sensações corporais.

A materialidade é onde se dá a danação, mas também a salvação e dentro do espaço físico que o cristão deve buscar a fiança para a recompensa final. E para isso, é necessária a indicação de como proceder, e tomando em conta tal perspectiva, percebe-se a construção de modelos que regerão as formas de comportamento social.

A audiência percebe que a Chanson de Roland, recebe e espelha os elementos constitutivos que sociedade em que seu autor vivia sugere como ideal. E isso cria entre o publico alvo, a nobreza alocada nas cortes, e os comunicadores da Chanson uma relação entre necessidade e oferta. As elites também apreendem isso, e investem nela e em outras obras, pois queriam expandir a comunicação dos modelos e os produtores as ofertavam, como explica Duby:

185 LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Uma História do Corpo na Idade Média. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira,2006, p.169.

186DUBY, Georges. História da vida privada 2: da Europa feudal à Renascença. São Paulo: Companhia das

Letras, 1990, p.40.

187 LE GOFF, Jacques. Os Limbos. Signum Revista da ABREM. São Paulo, v.5: Associação Brasileira de

Para que fossem escutadas, era de fato preciso que essas obras, de alguma forma, estivessem relação com o que procurava as pessoas para as quais eram produzidas, com sua situação real. Inversamente, elas não deixaram de influir sobre a conduta daqueles que lhe davam atenção.188

A Canção tem um caráter pedagógico, onde à sua maneira, exprime valores e formas de procedimento acerca da função social de uma camada, no caso específico, do nobre. Essas virtudes começam a ser explanadas em seus personagens, que por si só já possuem um apelo à perfeição, são lendários e conhecidos por suas boas ou más ações.

Ela demonstra exemplos positivos e negativos, referenciados nos exércitos que entram em embate, de um lado os cristãos, representados pelo império carolíngio, que personificam a justiça, o direito e a salvaguarda da Cristandade.

Já do lado oposto, o exército sarraceno, primeiramente liderado por Marsil e posteriormente por Baligant, traduz em suas linhas as práticas mais condenáveis aos olhos de Deus e da nobreza, idolatria, traição, práticas de artes maléficas, que exprimem tudo o que deve ser combatido pelo homem do período.

É na observação desses dois lados, que se inicia a análise acerca de como foram construídos os moldes sociais para influenciar os consumidores da Canção a seguir os ditames apreciados pela nobreza.

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