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3. Uma abordagem da teoria dos jogos

3.3 Discurso como estratégia

Duas dificuldades centrais emergem da aplicação da teoria dos jogos a uma situação discursiva. Enquanto o papel do jogador parece ser relativamente fácil de situar no indivíduo, os conceitos de estratégia e recompensa exigem um pouco mais de reflexão. Voltemo-nos em primeiro lugar para o domínio da estratégia.

Nas aplicações tradicionais da teoria dos jogos o leque de estratégias é, regra geral, fácil de definir. Muitas das situações clássicas, como o dilema do prisioneiro, opõem uma dicotomia cooperação/desvio que é facilmente delimitável. Mesmo quando falamos de um leque ilimitado de opções, como a escolha de um valor numérico entre 0 e 100, é relativamente fácil situar uma estratégia particular no espectro do conjunto de estratégias possíveis e aplicar uma fórmula matemática para determinar as recompensas.

No domínio do discurso a situação assume contornos mais nebulosos. Mesmo tendo um limite de 800 caracteres, como acontece nas caixas de comentários, o leque de estratégias é quase infinito, não-linear e torna-se impossível estabelecer uma relação direta com recompensas exatas. Para agravar ainda mais o nosso problema, os signos apenas podem surgir na intersubjetividade (Volosinov, 1986, p. 12), o que significa que uma estratégia só existe verdadeiramente enquanto tal quando entra em jogo. Assim, uma aplicação da teoria dos jogos ao discurso exige uma simplificação do mesmo, a criação de um enquadramento artificial de categorias que se materializem num leque de opções útil para compreender o comportamento do ponto de vista da racionalidade. No caso desta dissertação, a categorização construída foi a da agressão/não agressão.

A segunda questão, a das recompensas, é aquela em torno da qual gravitam todas as outras questões levantadas nesta dissertação, uma vez que apenas podemos considerar um

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comportamento racional que pesa ganhos e custos se chegarmos a um entendimento sobre quais são os ganhos e custos para os jogadores, para os comentadores, para os cidadãos. Tal como no caso da estratégia, a nossa resposta começa pela introdução de um constrangimento: a ideia de que as recompensas estão intrinsecamente ligadas ao conceito de poder. Este é um constrangimento porque implica a introdução de uma noção relacional: só é possível ter poder sobre algo ou alguém. A conceptualização das recompensas no campo do poder implica também a exclusão de outro tipo de recompensas que podem estar presentes no discurso, nomeadamente os ganhos relacionados com a fruição pessoal desligada do poder, como a fruição estética do conteúdo dos comentários ou o treino e exercitação da escrita e argumentação.

Apesar destas possíveis críticas, o nosso objetivo nesta dissertação é o de estudar a participação como algo indissociável do poder, tal como sugerido por Carpentier (2007). No entanto, a noção de poder que aqui queremos expor não é apenas aquela que foi avançada por Carpentier que separa ‘control-haves’ de ‘control-have-nots’. Interessa-nos também estudar as relações de poder entre os intervenientes que não estão propriamente ligadas a uma propriedade do poder que é adquirida através de cargos governamentais ou editoriais, algo a que Foucault (1991, p. 26) chama a microfísica do poder:

“Now, the study of this micro-physics presupposes that the power exercised on the body is conceived not as property, but as a strategy, that its effects of domination are attributed not to ‘appropriation’, but to dispositions, manoeuvers, tactics, techniques, functioning; that one shoulf decipher in a network of relations, constantly in tension, in activity, rather than a privilege that one might possess; (…)”

Isto implica a existência de relações de poder não só entre a redação e os leitores, entre o Estado e a esfera pública, mas também entre os vários intervenientes do espaço das caixas de comentários. O que está aqui em causa não é só um poder económico ou autoritário, mas um poder discursivo e intersubjetivo. Este tipo de poder é colocado em evidência no trabalho de Elias e Scotson (1994) sobre a comunidade de Winston Parva. Nesta comunidade a dicotomia entre os ‘melhores’ e os ‘piores’ não tem origem em qualquer diferença em termos de posses materiais, acesso a recursos ou mesmo nível de educação, a diferença é instituída apenas porque um grupo se considera superior, a dominação ocorre no terreno do simbólico. Assim, podemos considerar que o conflito nas caixas de comentários é orientado pela procura do poder simbólico enquanto recompensa.

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Numa última nota relativamente à noção de poder, importa salientar que os mecanismos que permitem a obtenção de poder e a eficácia das estratégias dependem, também e sobretudo, dos participantes. Embora os websites possam introduzir mecanismos de valoração, a natureza da participação discursiva faz com que o próprio discurso influencie os processos de obtenção de recompensas. “A definição dos instrumentos e das causas legítimas da luta faz, com efeito, parte das causas da luta e a eficácia relativa dos instrumentos que permitem dominar o jogo (o capital nas suas diferentes espécies) está igualmente em jogo, logo sujeita a variações segundo o decorrer do jogo” (Bourdieu, 2010). Esta característica é posta em evidência no esporádico metadiscurso dos comentadores sobre a legitimidade dos comentários e dos comentadores em geral.

Assim, o que está em disputa nas caixas de comentários é a definição da opinião pública da hegemonia, dos grupos ‘superiores’ e ‘inferiores’ de Winston Parva. É uma batalha sangrenta para impor uma interpretação da notícia. Se enquadrarmos os comentários dentro da noção de representações sociais proposta por Moscovici, estes funcionam como mecanismos de ancoragem para o fenómeno ‘novo’ que é a notícia. Após termos definido as recompensas como poder, importa perguntar como conseguiremos chegar a uma esquematização das relações de poder em jogo.

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