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6. Jogos de Interação: a luta pelo poder entre os comentadores

6.1 Pensar fora da caixa: a visão dos jornalistas

Os jornalistas, particularmente aqueles que lidam diariamente com as caixas de comentários, são simultaneamente observadores privilegiados e atores nestes espaços de participação. Assim, consideramos essencial para a consolidação da nossa análise escutar as perceções e opiniões de jornalistas com responsabilidades nas caixas de comentários do Jornal de Notícias e no Público.

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Uma das vertentes que pretendemos explorar foi a dos constrangimentos que estão inerentes à gestão destes espaços. No caso do Jornal de Notícias percebemos que, para além da falta de recursos e tempo, a decisão abrir indiscriminadamente todas as notícias do jornal a comentários sem moderação não passou pelos jornalistas e foi de responsabilidade empresarial. No caso do Público, embora as linhas orientadoras do jornal apontem no sentido de uma maior interação com os públicos, a implementação deste princípio encontra alguns obstáculos quer na mentalidade de alguns jornalistas, quer na falta de tempo dos profissionais: “é uma coisa que paradoxalmente se agravou no momento em que dissemos ‘agora é que vamos falar muito com os leitores’, devido ao despedimento coletivo de 50 pessoas”, afirma Hugo Torres. A partir destes testemunhos percebe-se, por um lado, uma tensão entre a vertente económica do negócio e a atenção dada às caixas de comentários e, por outro, entre as funções tradicionais da profissão do jornalista e as exigências da interação com os leitores. “Os comentários são mais uma preocupação da nossa pequena comunidade [de jornalistas] do online do que propriamente da redação”, explica Cláudia Luís, do Jornal de Notícias.

Uma informação extremamente pertinente para a nossa análise reside nas perceções dos jornalistas sobre a agressividade. Estas perceções complementam a nossa análise não só porque representam um ponto de observação distinto, mas também porque a interação dos jornalistas com os comentários não se limita às duas secções que estudamos. No caso do JN, a agressividade é sobretudo associada aos comentários abusivos e perversos. A jornalista Cláudia Luís afirma mesmo que só é concebível justificar alguns dos comentários que são feitos com algum tipo de perturbação mental. O editor do online, Nuno Marques, fala do facto de os comentadores gostarem da “má-língua” de “mandar o bitaite”. De facto, foi no JN que observamos uma maior frequência de comentários de trolls que agiam sob pseudónimos. “Nós já os conhecemos, já sabemos o nome que eles utilizam e o tipo de comentários que fazem”, afirma a Cláudia Luís.

No caso do Público, Hugo Torres atribui as motivações por trás dos comentários agressivos ao contexto, ao conjunto de fatores culturais, sociais e económicos que caracterizam o Portugal de hoje. Para o gestor de comunidade do Público, “tudo aquilo que afeta as suas vidas e que elas [as pessoas] queriam dizer ao primeiro-ministro, dizem-no aqui”. Esta visão da agressividade nas caixas de comentários enquadra-se nas conclusões que retiramos com a análise dos dados. Os comentários são uma forma de fazer chegar mensagens aos decisores sobre assuntos que são relevantes para os públicos. Hugo Torres arrisca mesmo dizer que

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“algumas das pessoas que comentam têm a perfeita consciência de que as caixas de comentários são acompanhadas pelos assessores dos políticos de topo.” Este tipo de constatação remete-nos para a um pensamento estratégico de alto nível que encara o comentário como uma forma de construir a representação da opinião pública.

Hugo Torres fala ainda das posições mais extremas e da postura dos comentadores. “Nós temos que nos manter tão no centro quanto nos seja possível e há pessoas que não admitem isso, não admitem que em certos assuntos que alguém se posicione no centro, consideram que só existe uma verdade absoluta”, refere. Embora não tenhamos abordado a questão do posicionamento dos comentadores relativamente ao trabalho jornalístico, esta ideia de que as pessoas estão comprometidas com uma posição coincide com a hipótese das coligações que avançamos. Uma das opiniões de Nuno Marques alinha-se com esta ideia de que a discussão fica em segundo plano face às posições absolutas e agressão: “Poucas pessoas gostam de discutir, a maior parte gosta de mandar ‘bitaites’”.

Uma outra ideia pertinente do editor do JN é a de que os comentários negativos acabam por afastar os comentadores que contribuem de uma forma positiva. Esta ideia liga-se com a replicação da agressividade que observámos na nossa análise das interações entre os comentadores. De facto, a ideia de que as intervenções do conjunto dos comentadores condicionam o discurso individual é transversal ao pensamento estratégico que sugerimos nesta dissertação.

Um último tema a abordar no que concerne às caixas de comentários é a sua utilidade para o trabalho do jornalista. Apesar do principal foco do nosso trabalho estar orientado para a relação entre o poder e a participação, esta é uma vertente que merece ser mencionada por representar uma possível função das caixas de comentários. A este respeito, as informações recolhidas em ambos os jornais são concordantes: os comentários podem ajudar o trabalho dos jornalistas.

O tipo de contribuições fornecidas neste âmbito pode dividir-se em dois tipos: os comentários relativos ao trabalho do jornalista e os comentários que contêm informação pertinente para a notícia. Os entrevistados de ambos os jornais destacam como positivo o feedback construtivo que recebem em relação às peças. No caso do Público, Hugo Torres destaca o exemplo de alguns jornalistas que vão enriquecendo e corrigindo o texto com base nos comentários dos leitores. No entanto, a concordância também se verifica relativamente ao feedback destrutivo que é encarado como frustrante. “O feedback negativo irrita-nos todos os

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dias”, explica Nuno Marques. O editor conta-nos que uma pequena gralha gera muitas vezes páginas e páginas de insultos ao jornalista, o que torna a leitura dos comentários um trabalho penoso para os profissionais. Relativamente ao segundo tipo de contribuições, as informações pertinentes para a notícia, todos os entrevistados relatam casos em que os comentários foram úteis. A identificação de vítimas e informações mais especializada são alguns exemplos apontados. Os jornalistas explicam que os comentários nunca podem servir como fonte, mas fornecem pistas para investigação do jornalista, que procura confirmar a informação para depois a publicar.

Em jeito de resumo, podemos afirmar que existem vários pontos de contacto na perceção dos jornalistas das duas publicações. As contribuições para o trabalho dos jornalistas, a escassez de recursos e as posições extremas dos comentadores são alguns dos pontos comuns. A respeito das motivações da agressividade, as perceções variam um pouco. No Jornal de Notícias, as representações da agressividade são mais influenciadas pelos trolls, enquanto no Público a interpretação aproxima-se mais da agressividade estratégica. Consideramos que a componente estratégica se encontra presente em ambas as publicações, mas que no JN os comentários mais extremos relativizam a agressividade estratégica.

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