• Nenhum resultado encontrado

O DISCURSO POÉTICO E O LEGADO HISTÓRICO

1 DAS NAUS POÉTICAS LITERÁRIAS E SEUS VIAJANTES

1.6 O DISCURSO POÉTICO E O LEGADO HISTÓRICO

O episódio da Ilha dos Amores, que inicia no Canto Nono e se prolonga para o Canto Décimo, traça um paralelismo interessante: ao lado de considerações esotéricas relativas aos duros caminhos para se obter sabedoria e conhecimento superior, histórico e cosmogônico, as práticas sensuais e amorosas de amor livre e pagão entre as ninfas e os marinheiros são provocativas e heréticas em relação às doutrinas católicas. Esse amor pagão celebrado é também forma de realçar os mundanos prazeres sob jugo do pensamento moralizante católico, com clara preferência e defesa aos primeiros.

Os episódios que compõe Os Lusíadas, ainda que com seus personagens entrelaçados e presentes que os perpassam dentro da trama preparada para tal, subdividem-se: são mitológicos e simbólicos; bélicos; líricos; naturalistas e há, ainda, um cavalheiresco. Esses episódios estão distribuídos entre planos temáticos. O Plano do Poeta, onde o autor tece opiniões e considerações a respeito dos desafios impostos ao homem na Terra e a necessidade de enfrentá-los, a importância do saber e das letras, as lamentações sobre o ofício e sobre o poder atribuído ao dinheiro – quando motivo de traições corruptas –, os valores das glórias e honrarias, e a apologia às expansões territoriais, tendo como pano de fundo a busca do conhecimento; O Plano da Viagem, em que acontecimentos entre a partida das naus de Lisboa, a chegada a Calecut e o retorno a Lisboa são narrados; O Plano da História de Portugal, anterior e posterior – sob a forma de profecias – à viagem de Vasco da Gama; e, ainda, o Plano da Mitologia, que possibilita a ação dos personagens históricos, movidos por forças divinas representadas pelos deuses. Este último plano apresenta o espírito da tradição pagã, presente nos poemas épicos herdados literariamente.

Como representações dos episódios mitológicos estão os dois concílios dos deuses – no Olimpo e no mar. Os naturalistas são representados pelo Fogo de Santelmo e pela Tromba Marítima. O episódio cavalheiresco aparece no conto Os doze de Inglaterra. Os que tratam das experiências bélicas são as batalhas de Ourique, do Salado e de Aljubarrota. O Velho do Restelo, o Gigante Adamastor e a Ilha dos Amores são simbólicos e, ainda, a Despedida das naus na praia do Restelo, a Fermosíssima Maria

e a morte de Inês de Castro como episódios de viés lírico. A viagem das palavras é realçada ao grau máximo por Camões, que se utiliza de inúmeras figuras de linguagem para seu intento. No plano histórico, o preço a pagar pela aventura foi alto. Os dados reais do fim desta viagem pelo mar apontam que três navios chegaram a Calicut. Um foi queimado. Não houve concretamente acordos com o Samorim e, no retorno, outro navio não resistiu às condições e também foi queimado. Após ultrapassar o Cabo das Tormentas, as duas caravelas que restaram perderam-se de vista e prosseguiram viagem em direções diferentes. Nicolau Coelho conseguiu chegar em Cascais e Vasco da Gama precisou aportar a sua nau na Ilha Terceira, onde Paulo da Gama faleceu. Outra caravela auxiliou Vasco, que chegou em Lisboa quase dois meses depois de Coelho. A aventura de dois anos levou consigo 93 homens dos 148 que embarcaram. Mas, evidentemente e valendo-se de meios poéticos fundados na imaginação fértil e no trabalho infinito e rigoroso com as palavras, Camões eterniza a poesia como instrumento artístico para glorificar os homens.49

Os discursos poéticos e os históricos têm seus pontos de convergência e de divergência. Muito do que se esconde por trás das palavras, em obra de tal porte e distanciada pelo tempo por tantos anos, fica por se decifrar. Os encontros sempre foram confrontos de culturas, o que significa também derramamento de sangue e destruição de tantas delas.50 O sigilo que cercava as

49 Nas palavras de Ivan Teixeira, Camões julga a poesia “uma necessidade político-

cultural, porque consiste no meio mais adequado para a cristalização dos modelos de conduta guerreira, moral e política dos grandes homens. Pela crença da época, havia homens cujo comportamento devia ser imitado pelos cidadãos comuns. Mas, para que tais homens se tornassem modelos, deveriam antes ser transpostos para o universo ideal da arte, convertidos em arquétipos e, depois, dados à contemplação social.” (TEIXEIRA, 2008, p. 314-315).

50 Em síntese notável, António Borges Coelho escreve que “a expressão encontro de

culturas, encontro real, permite aplacar as consciências sensíveis, mas o encontro envolveu sempre confronto e também destruição de culturas. [...] Na expansão portuguesa houve de tudo um pouco: descobrimentos, em absoluto, e não apenas para os europeus, de novas terras, novos mares, novas estrelas, como diria Pedro Nunes, e viagens de descobrimento; evangelização com mão armada e também com martírio e novos métodos linguísticos; transfega e troca de riquezas, de ideias, de técnicas, de animais e de plantas; guerra e paz armada com violência extrema de todas as partes; fome de honra; coragem para além do que pode a força humana; altruísmo, sacrifício; antropofagia no limite e recusa dela; troca de cerimônias, de vocábulos; confronto de culturas. [...] Na expansão europeia, iniciada com os portugueses no século XV, a que abre os mares do universo, os navios são o veículo, a casa, a fortaleza, o templo, a

documentações e procurava proteger as descobertas marítimas e as construções das caravelas dos espiões de toda a Europa que convergiam para Lisboa não poderia ser ínfimo. Os mapas, mais completos e cada vez com mais anotações dos nautas portugueses – que também buscavam colher informações de outros construtores – eram moeda valiosa.51

Outro exemplo – e daí muito do que se diz da Escola de Sagres e de D. Henrique, o Navegador, e seus estudiosos de várias nacionalidades – é posto em xeque, exatamente pelas escassas documentações, embora existam.52 Como o poema,

muita informação histórica é cercada de hermetismos cifrados. As caravelas eram pequenos barcos, se comparados a naus chinesas que cruzavam aqueles mares, mas eram instrumentos rápidos e próprios para exploração do mar Atlântico, além, é claro, de serem navios de guerra.53 Os bombardeiros ganhavam melhores salários

do que os pilotos, sinal claro da função e importância.54Estudos

aprofundados, com o tempo, alteraram os formatos das velas. Quadradas, redondas ou triangulares, tudo pensado para exercerem funções diferenciadas em contato com os ventos e até

oficina, a tenda e o armazém das mercadorias e da pólvora, o tronco dos escravos, o porta-navios, o caixão.” (COELHO, A. B., 2001, p. 88 a 90).

51 Segundo José Maria Rodrigues, “Foi tal o segredo que se guardou a respeito do

caminho e do destino da expedição do Gama, que em Veneza só dela se soube, por via do Egito e com muitas inexactidões, quando os portugueses já estavam na Índia.” (RODRIGUES, 1931, p. 43).

52 Sobre a questão, são pertinentes as informações de Mário Domingues: “Um dos

problemas que mais preocupou D. Henrique, logo desde as primeiras navegações no Atlântico, foi a criação de um tipo de embarcação adaptável a este oceano. As velhas barcas – as barchas – que se empregavam na navegação costeira e que se aventuravam até a Flandres e o Tamisa, acusavam deficiências; e, quando D. Pedro, nos estaleiros de Sua Senhoria do Adriático, tomava notas minuciosas da tonelagem, mastreação e velame das caravelas venezianas em construção, colhia elementos, subsídios preciosos para facilitar os trabalhos de D. Henrique.” (DOMINGUES, 1965, p. 301 e 302).

53 Paulo Miceli apresenta duas explicações para a origem etimológica da palavra

caravela. Ele parte de Henrique Lopes de Mendonça (Estudos sobre navios portugueses nos séculos XV e XVI. Lisboa: Tipografia da Academia Real de Ciências, 1892), para quem a palavra “deriva de caravo, palavra que, através do arábico, teria vindo do latim (carabus) ou do grego (karabos)”. Caravo teria evoluído para caravela. Miceli também apresenta a explicação de João da Gama Lobo Pimentel Barata, citada em “A caravela – Breve estudo geral”, in Stvdia. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical – Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1987), para quem o termo deriva de karabos (lagosta), usado pelos gregos para caracterizar um modelo antigo de embarcações. (MICELI, 2008, p. 70).

54 “Primeiros anos do século XVII: Mestre: 740$000. Bombardeiro: 880$000. (FALCÃO

contra eles55, para soprarem a favor e sempre em frente.

Os Lusíadas, apesar de ser um poema porta-voz da fé católica que solicita expansão, traz em seu núcleo central a mitologia greco-romana e a cultura pagã. Camões escreveu um épico humano e histórico. A epopeia arcaica reúne mito e história. O herói primitivo necessariamente é uma figura semilendária, para dizer o mínimo. Exige a presença e interferência dos deuses no plano das ações humanas. Na concepção de Camões, a interferência continua, porém a tônica é sobre a história feita por homens de carne e osso, na busca da superação de suas limitações. Para isso, há uma inversão de papéis: Os homens são decididos, impassíveis e firmes, o que seria o papel dos deuses. Estes é que são movidos por contradições e sentimentos humanos como paixões, ciúme, ódio, crueldade, dúvida, grandeza e miséria. Nas figuras dos deuses, Camões mostra os limites e os riscos a que a espécie humana, em busca de realizar as suas potencialidades, está exposta. A poesia épica, para ele, possuía um alto valor, uma espécie de conduta ética para a vida, expressão do ser coletivo. Por isso, de forma paradoxal e criativa, critica os desmandos, as injustiças e a decadência dos feitos do homem moderno.56

Nessas corrosivas críticas, é possível esboçar no poeta traços característicos de um caráter pouco submisso a, pelo menos, parte das figuras importantes da corte e do clero, mas

55 “Em 1441, recomeçaram no Atlântico as viagens de estudo, chamemo-lhes assim. A

primeira, capitaneada pelo jovem Antão Golçalves, levava uma missão específica: trazer do rio do Ouro óleo e pele de lobos marinhos; a segunda, comandada por Nuno Tristão, cavaleiro de comprovada valentia, devia cumprir uma das ordens prediletas do Infante: ultrapassar o mais possível o último ponto Sul da Costa da África até então atingido. Mas a embarcação deste último era diferente de todas as que, até essa data, haviam sulcado os mares, e ao seu modelo dera-se o nome de caravela. Não se parecia com a caravela veneziana nem com a mourisca [...] o mais ligeiro, o mais manejável e o mais belo navio que se veria então. [...] Com suas velas triangulares, que lhes permitiam aproveitar a mais leve aragem que soprasse de qualquer quadrante, navegavam rapidamente à bolina, isto é, contra o vento, o que representava uma vantagem enorme sobre todas as outras embarcações.” (DOMINGUES, Idem, p. 302).

56 A crítica do Poeta tem relação direta com o amadurecimento de sua experiência.

Carolina Michaëlis de Vasconcellos escreve a respeito: “A elaboração completa estende-se portanto por cinco lustros: de 1544 (ou 1545) a 1570. Principiada com ímpeto juvenil, quando tudo parecia sorrir ao apaixonado e genial fidalgo – cavaleiro e quando o sol da pátria estava perto do seu apogeu, a epopeia foi adiantada de vagar, após graves estudos e duras experiências, e só saiu à luz quando a velhice batia à porta, e as provas de decadência do país haviam multiplicado.” (VASCONCELLOS, 1931, p. 21).

parece ser bem visto por alguns deles, muito influentes ou, diga- se de passagem, totalmente imprescindíveis para a liberação do poema: o Rei D. Sebastião e o Censor do Santo Ofício, Frei Bartolomeu Ferreira. Isso pode se estender também à ausência, na obra de Camões, dos procedimentos e outros textos usualmente utilizados que acompanham as obras nas edições da época.57 A edição da obra aparece num contexto ímpar, alheio às

praxes literárias, e ainda hoje permanecem insolúveis as questões sobre as edições Princeps, de 1572, onde o pano de fundo da discórdia orbita em torno da pergunta: qual é a versão original?

À primeira vista, esse é um canto de guerra em defesa dos desbravadores, um elogio aos conquistadores. Aos que empreendem aventuras em busca de conquistas humanas, desafiando os perigos da Natureza e as Leis (con) Sagradas por crenças atavicamente enraizadas no imaginário coletivo em detrimento dos que têm suas terras conquistadas e devastadas. E, de fato, não há como negar isso. Porém, parece guardar em seu baú – feito tesouro antigo – um possível fundo falso. Em lugar da discussão dialética entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, entre o Deus cristão e os deuses pagãos, o poema – próprio da herança renascentista e admitindo ser esta um conjunto de ideias e valores culturais presentes desde épocas remotas que atravessam o tempo – parece ser escrito para uma parcela de pessoas que partilham da mesma sede de conhecimento. O caráter da coletividade é realçado e não o da individualidade, embora de uma coletividade de pessoas com forte individualidade.

Assim, para os que carregam em si semelhantes fomes de saber e de conhecer para desvendar a “Máquina do Mundo”, o poema serve de fonte alentadora, exatamente como na função das

57 Sheila Moura Hue, a esse respeito, escreve: “Como nasce, editorialmente, um mito?

[...] Os mistérios sobre a 1. Edição de Os Lusíadas são diretamente proporcionais a um determinado tipo de silêncio que cerca, materialmente, o livro. [...] A edição Princeps do primeiro poema épico português sai sem os habituais e então prestigiosos textos preliminares (epístola dedicatória, prólogos, poemas laudatórios), mas, do ponto de vista das instituições – Santa Inquisição e Paço –, vem bem defendido e privilegiado, denotando uma excelente recepção por parte das instâncias oficiais então fundamentais para a publicação das obras. E o fato de Os Lusíadas terem sido impressos, em 1572, com todos os seus deuses gentios e lascivas ninfas, em tempos de ortodoxia tridentina, também revela um comportamento excepcional por parte dos censores: os preconceitos sobre o caráter pecaminoso da mitologia grega parecem ter- se dobrado diante da obra de vanguarda que souberam então, ver nela.” (HUE, 2003, p. 118 a 134).

lendas na mitologia antiga. Contrariamente às manobras políticas estratégicas e obscuras da parcela esmagadora dos representantes de poderes instituídos em quaisquer tempo e nações, o poeta e seu canto transcendem as questões maniqueístas, se vistos com olhar mais atento e aprofundado. Se é verdade a máxima de que há dois tipos de pessoas: as que assistem os acontecimentos da arquibancada e as que encaram os desafios na passarela, o poema é um elogio às bravuras dos que abandonam suas zonas de conforto. Desse modo, o aperfeiçoamento do homem é o que se estabelece como farol luminoso no conjunto desse épico de Camões, ainda que esse brilho clownesco na face sorridente e idealista venha acompanhado de borrões na maquiagem, desfeita pelo suor e o cansaço. Estes sabem da outra parte que chora.

2 DAS POÉTICAS CÊNICAS CONTEMPORÂNEAS E

Documentos relacionados