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GERSON PRAXEDES SILVA POR QUE A ANTIGA MUSA AINDA CANTA? –

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Academic year: 2019

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POR QUE A ANTIGA MUSA AINDA CANTA? ESTUDO NARRATIVO, DOCUMENTAL E REFLEXIVO SOBRE TRÊS ENCENAÇÕES BRASILEIRAS DA OBRA

OS LUSÍADAS, DE LUÍS DE CAMÕES

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro, no Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Teatro.

Orientador: Prof. Dr. Edélcio Mostaço

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S586p Silva, Gerson Praxedes

Por que a antiga musa ainda canta? : estudo narrativo, documental e reflexivo sobre três encenações brasileiras da obra Os Lusíadas, de Luís de Camões / Gerson Praxedes Silva

– 2013.

288 p. ; 14,8 cm x 21 cm Orientador: Edélcio Mostaço Bibliografia: p.271-288

Tese (doutorado) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Artes, Doutorado em Teatro, Florianópolis, 2013.

1.Teatro brasileiro. I. Camões, Luís de. II. Mostaço, Edélcio (orientador). II. Universidade do Estado de Santa Catarina. Doutorado em teatro III. Título.

CDD: B869.2- 20.ed.

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POR QUE A ANTIGA MUSA AINDA CANTA? ESTUDO NARRATIVO, DOCUMENTAL E REFLEXIVO SOBRE TRÊS ENCENAÇÕES BRASILEIRAS DA OBRA

OS LUSÍADAS, DELUÍS DE CAMÕES

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro – PPGT, do Centro de Artes – CEART, da UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Teatro.

Área de Concentração: Teorias e Práticas do Teatro

Banca Examinadora

Orientador: __________________________________ Prof. Dr. Edélcio Mostaço

UDESC – Universidade do Estado de SC

Membros: _________________________________ Prof.a Dra. Maria Beatriz de Mendonça UFMG Universidade Federal de MG

__________________________________ Prof.a Dra. Maria Brígida de Miranda UDESC – Universidade do Estado de SC

__________________________________ Prof.a Dra. Maria de Fátima Souza Moretti UFSC Universidade Federal de SC

__________________________________ Prof.a Dra. Vera Collaço

UDESC – Universidade do Estado de SC

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A UDESC, pelos dois primeiros anos; e a CAPES, pelos dois anos restantes de Bolsa de Estudo para esta pesquisa;

Aos meus professores, aos meus alunos e aos artistas, pelas parcerias e pelo meu aprendizado;

A Equipe do PPGT – UDESC: Sandra, Mila e Francini, pela eficiência e simpatia de sempre.

A Délcio Marquetti, pelas aulas de História e empréstimo de importante bibliografia; A Mariza Bicudo, Sandra Faé, Miguel Augusto Ribeiro e Angelita Queiroz pelas leituras atentas e feedbacks; A Sônia Praxedes, Lázaro e Salete da Silva pelas paciências ao telefone; As Prof.as Vera Collaço, Maria Lúcia Candeias e Maria Brígida de Miranda; e ao Prof. Mário Bolognesi, pelas valiosas análises e sugestões no Exame de Qualificação;

Ao Prof. André Carreira e a Prof.a Elisabeth Lopes pelas prontas respostas e respectivos aceites para Membros Suplentes da Banca de Qualificação e da Banca de Defesa;

Aos encenadores Celso Nunes, Iacov Hillel e Márcio Aurélio; e aos dramaturgos José Rubens Siqueira e Valderez Cardoso Gomes, pelas entrevistas, risos e doações de materiais de pesquisa;

A ZéCarlos de Andrade, Fábio Saltini, Raimundo Matos de Leão e Deolinda Vilhena, pelas entrevistas concedidas e inspirações provocadas;

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Os símbolos e os sinais das diferentes culturas não são o mais importante. O que importa é o que existe por trás dos símbolos e que lhes dá significado. O nosso medo do indefinível levou-nos a acreditar que todos os aspectos do comportamento humano devem vir do condicionamento – genético ou social. O teatro, contudo, existe para abrir-nos a uma visão mais ampla.

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canta? Estudo narrativo, documental e reflexivo sobre três encenações brasileiras da obra Os Lusíadas, de Luís de Camões. 2013. 288 f. Tese (Doutorado em Teatro – Área: Teorias e Práticas do Teatro – Linha de Pesquisa: Teatro, Sociedade e Criação Cênica)

– Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro, Florianópolis, 2013.

O objetivo desta tese é estudar três encenações teatrais brasileiras que possuem como ponto de partida comum a obra Os Lusíadas, do poeta português Luís de Camões. Essas montagens ocorreram em São Paulo, Brasil, em períodos distintos, compreendidos entre a segunda metade do século XX e o início do século XXI. A primeira é a de Celso Nunes, com adaptação de Carlos Queiroz Telles, em 1972. Iacov Hillel assinou a direção da segunda montagem, adaptada por José Rubens Siqueira, em 2001. O terceiro espetáculo foi dirigido por Márcio Aurélio e adaptado por Valderez Cardoso Gomes, também em 2001. O que as torna objeto de pesquisa relevante para o Teatro Brasileiro e para a literatura sob o ângulo da Estética Teatral e da História do Espetáculo são as múltiplas leituras artísticas inseridas em circunstâncias históricas distintas. Nas transcriações para a cena, a partir de uma obra não destinada ao palco como Os Lusíadas, transparecem as relações entre as linguagens e as significações dos espetáculos e da obra literária. Este estudo busca reconstituir três possibilidades diferenciadas de encenação e de adaptação teatral, as quais deram voz e formas cênicas às ideias e aos ideais da poesia clássica. O trabalho apoia-se em teorias teatrais de Patrice Pavis e de Anne Ubersfeld, em historiadores como Werner Jaeger e Jacques Le Goff, em estudiosos camonianos como José Maria Rodrigues e Segismundo Spina, e em outros nomes que se destacam no que concerne ao tema estudado. Desse modo, as análises pontuam aspectos sobre esses espetáculos, sobre essas adaptações dramatúrgicas e sobre o texto original, o qual serviu de matéria-prima para as novas criações. Ao estabelecer pontos específicos de cada linguagem e navegar pelo amplo dialogismo espetacular e intertextual conformado, o horizonte que se mostra aponta a encenação teatral como obra de arte autônoma.

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narrative, documentary, reflective study about three Brazilian stagings of Luis de Camoens´The Lusiads. 2013. 288 p. Thesis (Doutorado em Teatro – Área: Teorias e Práticas do Teatro – Linha de Pesquisa: Teatro, Sociedade e Criação Cênica) – Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro, Florianópolis, 2013.

This thesis aims to study three Brazilian theatrical stagings that have as a common starting point the work Os Lusíadas– The Lusiads, from the Portuguese poet Luís de Camões. These stagings took place in São Paulo, Brazil, in distinct periods, between the second half of the twentieth century and the beginning of the twenty-first century. The first is that of Celso Nunes, with adaptation of Carlos Queiroz Telles, in 1972. Iacov Hillel directed the second staging, adapted by José Rubens Siqueira, in 2001. The third spectacle was directed by Márcio Aurélio and adapted by Valderez Cardoso Gomes, also in 2001. What makes them objects of research relevant to the Brazilian Theater and to literature from the perspective of Theatrical Aesthetics and of History of Entertainment are multiple artistic readings inserted in distinct historical circumstances. In transcreations to the scene from a work not intended for the stage as Os Lusíadas transpire relations between languages and meanings of the theater spectacles and the literary work. This study seeks to examine three different possibilities of staging and of theatrical adaptation, which gave voice and scenic forms to the classical poetry´s ideas and ideals. This work draws on theatrical theories of Patrice Pavis and Anne Ubersfeld, on historians such as Werner Jaeger and Jacques Le Goff, on Camoens scholars like José Maria Rodrigues and Segismundo Spina, and on other names that stand out regarding the topic of the present study. Thus, the analyses punctuate aspects about these theater spectacles, these dramatic adaptations and the original aforementioned text, which served as raw material for new creations. By establishing specific points of each language and navigating the broad spectacular and intertextual dialogism conformed, the horizon that is shown points the theatrical staging as autonomous work of art.

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SUMÁRIO

AVISO AOS NAVEGANTES... 15

1DAS NAUS POÉTICAS LITERÁRIAS E SEUS VIAJANTES ... 23

1.1 OS CLÁSSICOS E AS ÁGUAS ATEMPORAIS ... 23

1.2 OS POETAS NOS MARES DA ANTIGUIDADE ... 27

1.3 AS ÁGUAS DA IDADE MÉDIA E DA RENASCENÇA ... 33

1.4 O POETA PORTUGUÊS DO MAR ... 44

1.5 O POEMA CANTO A CANTO ... 49

1.6 O DISCURSO POÉTICO E O LEGADO HISTÓRICO ... 74

2DAS POÉTICAS CÊNICAS CONTEMPORÂNEAS E SEUS VIAJANTES ... 81

2.1 ESCLARECIMENTOS DE BORDO ... 81

2.2 O TEXTO E A ENCENAÇÃO TEATRAL: DUAS NAUS, UM DESTINO ... 85

2.3 ADAPTAÇÕES TEATRAIS DE TEXTOS NÃO DESTINADOS AO PALCO... 89

2.4 A TEATRALIDADE É UMA NAU DE MIL MÁSCARAS ... 93

2.5 UMA PRODUTORA:RUTH ESCOBAR E TRÊS ENCENAÇÕES ... 101

3A VIAGEM, DE CELSO NUNES E CARLOS QUEIROZ TELLES ... 105

4OS LUSÍADAS, DE IACOV HILLEL E JOSÉ RUBENS SIQUEIRA ... 165

5OS LUSÍADAS, DE MÁRCIO AURÉLIO E VALDEREZCARDOSOGOMES .. 211

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 255

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AVISO AOS NAVEGANTES

A encenação teatral é um fenômeno complexo, no qual transparecem diferentes aspectos artísticos que se entrelaçam e solicitam distintos modos de aproximação. A multiplicidade de elementos que a compõem e as tantas formas possíveis que podem resultar as propostas estéticas dos encenadores e de todos os criadores envolvidos na realização cênica implica profunda verticalidade em seu estudo. Refletir sobre a encenação e sobre aspectos específicos na sua elaboração também solicita um olhar atento ao amplo leque de suportes teóricos que perpassam este e outros campos do conhecimento dentro das ciências humanas. Assim, na procura de respostas, novas perguntas são lançadas e a investigação no campo da encenação teatral tem avançado e oferecido instrumentos teóricos mais consistentes (FERNANDES, 2010; GUINSBURG, 2008), que dialogam complementarmente com as práticas teatrais. Esta abordagem de pesquisa se insere nesse contexto e procura contribuir nas investigações sobre a Encenação Teatral; seus processos coletivos; as imbricações entre os textos teatral, literário e a cena; a História do Espetáculo; e os clássicos diante dos olhares contemporâneos.

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quem testemunha o momento vivo do espetáculo de teatro é primordial. Diferentemente, as reconstituições também apresentam sua pertinência ao observar por outros e diferentes ângulos o espetáculo acontecido, o que resulta maior riqueza de olhares sobre o mesmo f(ato).

A literatura, por sua vez, se alimenta dela própria para desvendar outras e novas possibilidades. Um texto é sempre reflexo de outro ou outros que lhe servem de guia, fonte ou mesmo inspiração (BARTHES, 1977). É como se, quem escrevesse, precisasse pisar o solo onde outros deixaram suas marcas, necessitasse vasculhar seus rastros abaixo da superfície e sacudir a poeira encontrada. Dessa maneira, no mesmo solo, agora o novo escritor caminha e desenha as suas próprias pegadas. No dizer de Barthes (1988, p. 70), “um texto é feito de escrituras múltiplas, oriundas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação”. Para Iser (1999, p. 67), a especificidade da literatura “é produzida mediante uma fusão do fictício e do imaginário”, e também se refere ao jogo como sendo a estrutura reguladora dessa interação, tema que remete às reflexões de Huizinga (1980) em seu Homo Ludens. Há, também, os processos de adaptação de obras literárias clássicas, reconhecidas e veneradas, que prescindem de um olhar contemporâneo para que possam transmitir seu legado, prova de fogo a mostrar se ainda possuem algo que as fez ultrapassar o desafio do tempo. A linguagem poética é, para Pignatari (1977, p. 26), “um corpo estranho nas artes da palavra. O poeta é aquele que ajuda a fundar culturas inteiras, pois não trabalha com o signo verbal e sim o signo verbal.” Na obra literária, a imaginação do leitor configura o que as palavras evocam. A arte dramática passa por outro processo. O drama contém elementos de representação e de expressão, o que amplia a complexidade das poéticas teatrais.

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alterações e por quê? Que desafios os envolvidos nos processos de trabalho encontraram e de que modo responderam a eles para a concretização dos espetáculos? A partir de estudos e registros posteriores, o que é possível reter de um espetáculo teatral, dadas as complexidades desse evento efêmero? De que forma os outros elementos materiais da representação o espaço, o cenário, o figurino, a iluminação, a maquiagem contribuíram para a composição de sentidos nos espetáculos? Como uma obra épica de conquistadores foi percebida, quatro séculos depois, em terras colonizadas por representações dos "descendentes" dos "heróis" do poema? O poema transcende esta última questão? O que ficou de Camões hoje? E por que sobreviveu? Assim, ao provocar uma tensão dialógica entre a arte da encenação e a reconstituição desta, procuro investigar aspectos espetaculares e intertextuais de três encenações sobre uma mesma obra poética e, com isso, registrar processos na poética cênica brasileira contemporânea. A investigação das três montagens escolhidas procura responder a hipótese da encenação como arte autônoma, uma nau de infinitas máscaras, independente e com linguagem própria.

O poema, que traz homens e deuses em ação, desembarca quatrocentos anos depois de publicado, em 1572, atravessando os mares agora muito navegados da América do Sul. Seu fado é ser encenado nos palcos do teatro paulistano e brasileiro. Estudiosos da obra existem desde a sua publicação, como se verá adiante. Enquanto texto clássico, consta no currículo de estudos da Literatura das escolas brasileiras do Ensino Médio há aproximadamente sete décadas, segundo João Etienne Filho (1980, p. 13). Seus efeitos junto aos estudantes variam desde paixões pelas aventuras e peripécias dos navegantes por parte de alguns poucos até a recusa por parcelas significativas de alunos. Faço parte daqueles sonhadores – à época ainda sem conhecer e compreender melhor as desventuras de quem se propunha apaixonado por idealismos que viajavam pelos mares sem sair do banco escolar, impulsionados pela voz e a figura da professora de literatura. A voz acompanhava um olho apaixonado pelo que lia e os versos do bardo português seguiam abrindo os mares e mentes daquele bando de moleques curiosos para além daquelas geografias conhecidas.

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sentidos espetaculares. Nessa procura pelo equilíbrio entre as linguagens, não voltar à visão “puramente literária do teatro, mas reconsiderar o lugar do texto na representação; não mais discutir infinitamente se o teatro é literatura ou espetáculo, mas distinguir o texto tal como o lemos em livro e o texto tal como o percebemos na encenação.” (PAVIS, 2008, p. 185). Assim, com base nas investigações documentais sobre: o poema original; as três adaptações deste para o palco; a fortuna crítica dos espetáculos; as entrevistas com os diretores e com os escritores/adaptadores; os registros fílmicos; e a iconografia, o trabalho procura responder, dentro dos limites do recorte escolhido, questões pertinentes e atuais que permeiam os estudos sobre a Encenação teatral, seus processos e suas propostas estéticas.

No que diz respeito ao estudo das adaptações, o trabalho pretende estabelecer pontos convergentes e de distanciamento da escritura original, esta confrontada com os procedimentos adotados pelas releituras. Em todos os casos, o foco estará nas estratégias criativas, sem juízos de valor, sem maniqueísmo das “infidelidades” em relação à obra original, julgamentos ou preconceitos, mas escolhidos por serem significativos dentro da ótica da criação artística, das relações entre texto e encenação teatral e, portanto, das relações colaborativas na realização dos espetáculos. O acesso aos arquivos dos processos realizados, os contatos com seus realizadores e as posteriores reflexões sobre o assunto tem como principal foco de atenção o que, ou em que medida, cada espetáculo respondeu às circunstâncias específicas de seus contextos históricos.

Sendo a obra original um clássico renascentista e ponto de partida comum para as três criações cênicas, torna-se necessário lançar breve – porém fundamental – luz sobre o que antecedeu essa criação literária. Um estudo aprofundado, embora condensado em algumas páginas, sobre as questões literárias que envolvem este estudo e servem de pano de fundo para o motivo principal: As tantas faces possíveis das poéticas cênicas contemporâneas. Esta “moldura” se mostra pertinente para a melhor compreensão e embasamento do leitor para o quadro cênico que se fará posteriormente.

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suas musas antigas, inspiradoras de novas criações; e as circunstâncias históricas e culturais existentes quando do surgimento do poeta: O Renascimento e a Idade Média, raízes da cultura moderna, que permearam a expressão poética de Luís de Camões. Para isso, historiadores como Werner Jaeger e Jacques Le Goff, entre outros teóricos de relevo, servem de base para os estudos. Ainda, de maneira bastante sintética pois a literatura sobre o tema é vastíssima e não se apresenta como primeiro plano neste trabalho –, este capítulo pontua aspectos sobre a vida de Camões e sua relação com os clássicos que o antecederam, além de uma síntese descritiva e reflexiva detalhada d' Os Lusíadas, Canto a Canto. Estudiosos como José Maria Rodrigues, Carolina Michaëlis de Vasconcellos e Segismundo Spina figuram como expoentes teóricos para a pesquisa.

No segundo capítulo, as reflexões têm por base os aportes teóricos de Patrice Pavis e Anne Ubersfeld, no sentido de situar e relacionar este trabalho dentro do múltiplo panorama contemporâneo das poéticas cênicas, atuante e multidisciplinar; as relações e distanciamentos entre análise e reconstituição de um espetáculo; o texto e a encenação como criações artísticas complementares; as adaptações cênicas; as muitas faces da teatralidade; e, finalmente, sobre a produtora dos três espetáculos em questão, Ruth Escobar, e seus propósitos de levar a epopeia para a cena. A determinação obstinada e seus obstáculos dentro das relações humanas necessárias para realizá-los. A partir daí, a nau começa a seguir pelos mares das três experiências cênicas e de adaptações dramatúrgicas brasileiras.

No terceiro capítulo investigo A Viagem, primeira encenação d’Os Lusíadas. As versões adaptadas e suas relações com a obra original por Carlos Queiroz Telles para a encenação de Celso Nunes. O capítulo apresenta aspectos dos procedimentos criativos e artísticos que responderam a estas questões, o espaço como elemento cenográfico influente na dramaturgia e na direção, bem como análises de críticos teatrais sobre o espetáculo, encenado em 1972.

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críticas publicadas na época e as reflexões sobre a montagem que estreou no início de 2001.

No quinto capítulo, analiso Os Lusíadas na adaptação do original por Valderez Cardoso Gomes para a encenação de Márcio Aurélio. O nome da obra é também mantido neste terceiro espetáculo, pesquisado dentro de tópicos semelhantes já destacados. O espaço é novamente modificado, agora por solicitação antecipada da produtora, premissa que influencia a concepção dramatúrgica e espetacular. Estreia também em 2001, mais ao final daquele ano.

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Ela está no horizonte – diz Fernando Birri –. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para caminhar.

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1 DAS NAUS POÉTICAS LITERÁRIAS E SEUS VIAJANTES

1.1 Os clássicos e as águas atemporais

Novas e distintas leituras de experiências cênicas tendem a reinventar os textos clássicos. Por consequência de inúmeras propostas artísticas que escapam aos enquadramentos conceituais e/ou estéticos, os clássicos perdem suas máscaras aparentemente imutáveis e sisudas e se mostram flexíveis e a dialogar com o agora. Os estudos literários estimam que a invenção da escrita possui idade aproximada de cinco mil anos, e que teriam sido os sumérios, um povo ao sul da Mesopotâmia hoje Iraque que, de origem desconhecida, estabeleceu-se pela região antes ainda da chegada dos semitas, povos assírios e babilônios. A chamada escrita cuneiforme, pela forma de seus caracteres, tornou possível a gravação em tábuas de barro ao que se considera o primeiro clássico literário da história, A epopeia de Gilgamesh.1

Essa história mítica narra a busca pela imortalidade, de um rei considerado divino em sua cidade-estado, pois teria ele dois terços de sua constituição divina e um terço dela humana. Gilgamesh reinava em Uruk e governou por 126 anos. Enkidu, seu mais valoroso companheiro de lutas, era ligado ao mundo agrícola e selvagem. A epopeia é repleta de evocações aos domínios da morte, e o argumento procura destacar o avanço do herói para além dos limites da vida humana comum. A aventura de Gilgamesh e Enkidu em adentrar uma floresta sagrada proibida aos mortais e matar o guardião desta é considerada pelos deuses atrevimento e transgressão. Julgada em conselho, a punição era a morte de um deles. Enkidu morre e somente nesse momento a dor de Gilgamesh tem a plena consciência de sua própria mortalidade.

Ele continua a vagar na esperança de ultrapassar a morte, apesar das advertências e desenganos que encontra pelo

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caminho. Fica em relevo a mudança de atitudes interiores a cada passo que avança, em um processo pessoal e evolutivo de compreensão da existência efêmera dos homens. Seu início é o de um jovem rei autoritário que desconhecia limites de tirania. Quando se torna irmão guerreiro de Enkidu por considerá-lo tão grande quanto ele, partem em busca de fama e se tornam matadores de monstros, estes representações dos estreitos limites da vida humana. Na volta da jornada, resignação, derrota e iluminação em face da compreensão de sua finitude. Nos registros desse poema antigo, redescoberto aos poucos no século XIX, consta versão narrativa de evento muito semelhante ao da Arca de Noé, que integra o Antigo Testamento da Bíblia Hebraica, além de paralelos com as lendas de Héracles nas obras gregas (mais conhecido como Hércules, nome dado pelos antigos romanos). Gilgamesh passa a ser considerado o mito que influencia os textos fundadores da tradição ocidental: a Bíblia e os poemas homéricos, e que permeia a concepção do que seja clássico.

Quando se trata do termo, e particularmente em relação a este estudo, é pertinente diferenciar entre o sentido contemporâneo e o sentido renascentista. Para Camões e os homens de seu tempo, “clássico” tinha o sentido de exemplo a ser seguido, e este era atribuído às obras gregas e latinas que faziam parte de uma formação humanística. A noção designa um estilo, pertencente à antiguidade greco-latina, “clássica” porque se distingue de outras – mais antigas ou mesmo contemporâneas, mas que não estão dentro dos limites ocidentais – e que contempla um conceito de humanidade e um ideal artístico que tem caráter modelar. (JAEGER, 2001).2

Para nós, hoje ainda, reconhecer um clássico tem a ver com o ensinamento, dentro de um currículo escolar, de obras

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consideradas exemplares e de qualidade superior, porém as referências estão mais propícias a discussões e já não se responde com certezas tão enfáticas – possível apontamento

clássico comportamental de nossos dias – que o seu ponto de vista é o único a ser considerado. Há relatividade no conceito de clássico, e nessa alteração é que se pode reconhecer um processo histórico autoconsciente da humanidade no decorrer do tempo. A relativização, fruto do reconhecimento de que o presente determina de que maneira uma obra é ou se torna clássica, conclui que ela o é para alguém e/ou para um coletivo que segue determinada tendência.

Assim, o conceito se expande e/ou divide-se, e essa multiplicidade pressupõe princípios, valores de determinadas comunidades, que são eleitas a exercer poderes simbólicos de atribuições de valores. Dessa maneira, pode-se falar de “clássicos da literatura”, “clássicos do cinema”, “clássicos da música popular brasileira” e ainda assim com suas subdivisões a considerar. Significa dizer que, mesmo mantendo os sentidos históricos para a palavra “clássico”, acrescenta-se o sentido referencial de algo buscado no passado, mas apresentado e colocado diante dos interesses do presente e de suas muitas feições especializadas. Este tem a possibilidade de escolher, de interferir, de relativizar os valores e julgamentos herdados do passado. O presente tem o poder de alterar, de modificar, feito um artesão com a argila, a prima secular que se apresenta a ele. Mas essa matéria-prima também apresenta seu preço. E quem dela se aproxima tem a percepção de que parece existir algo de misterioso em seu interior, que preserva sua identidade e sentido, e a cada nova escavação reverbera outras surpresas.

Para Ítalo Calvino (2004)3, os clássicos são aqueles livros que em geral se está relendo, alusão às suas múltiplas camadas de leitura. Ao pensar o conceito de clássico na atualidade, o autor considera e se refere aos livros como riquezas, tanto para quem os tenha lido e amado como para quem se debruça a decifrá-los pela primeira vez nas melhores condições de poder apreciá-los. Exercem influência particular e notável nas reminiscências das memórias, porque nunca conclui o que tinha para dizer. Alçadas ao grau de talismãs, essas obras provocam inúmeros discursos

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sobre elas, mas possuem algo que as mantém resguardadas e trazem ao leitor atual a marca de leituras anteriores e os traços que deixaram na(s) cultura(s) que atravessaram, portanto persistem como um rumor a predominar na atualidade.

O tempo, desse modo, não autentica um clássico, antes figura como testemunha dele. Os clássicos, por sua vez, são expostos e testados continuamente na linha do tempo. Os mitos clássicos são fontes inesgotáveis de interpretações, sempre dispostos a serem recriados e remodelados à luz de novos tempos. Nesse sentido, Werner Jaeger, em Paideia, é lapidar ao tratar do assunto: Ao exemplificar Platão e as intervenções que este faz a Homero ao mutilar partes inteiras de sua obra, o autor constata que, para o guarda filológico que zela exageradamente pela palavra original do poeta, isto será inaceitável, “Mas esta concepção, que em nós se tornou carne e sangue, é o produto de uma cultura que chegou já ao seu termo e que guarda as obras do passado como tesouros felizmente salvos do naufrágio.” (JAEGER, 2001, p. 779).4

Essa ausência de rigidez – que hoje se apresenta ao termo clássico dados os seus muitos sentidos e significados, característica que o possibilita navegar por diferentes espaços de abrangência e por manifestações artísticas que desconhecem fronteiras e rotulações e mesclam tendências múltiplas contemporâneas também pode e deve ser aplicada nos entrelaçamentos possíveis entre encenação teatral e texto, seja ele dramático ou não, tal a intenção deste estudo.

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1.2 Os poetas nos mares da Antiguidade

A epopeia, uma narrativa literária de caráter heroico e grandioso, atinge interesses sociais e nacionais. Ambienta-se numa atmosfera maravilhosa, em que se movimentam deuses e heróis, celebrizando eventos do passado de um povo, necessários à interpretação e à preservação da memória coletiva. Há epopeias em prosa, que falam dos cavaleiros e suas façanhas, chamadas de canções de gesta medievais; e há epopeias em versos, os chamados poemas épicos. O medievalista Georges Duby (1987), através do estudo de uma canção de gesta do século XIII, traz apontamentos sobre o universo mental do período medieval, bem como parte de seus rituais, especialmente aqueles praticados pela nobreza da época, o mundo da cavalaria, das cortes e suas intrigas políticas, e também o ritual de preparação para a morte. As canções de gesta eram encomendadas a pedido dos próprios interessados ou de algum familiar. Na poesia épica desse período têm destaque a obra A Canção de Rolando (La Chanson de Roland), datada do século XI, que narra as aventuras de Carlos Magno, do Império Franco, na luta contra os mouros na Península Ibérica; e A canção de Mio Cid, mais conhecida como El Cid, que narra a história do nobre Rodrigo Díaz de Vivar em uma Espanha dividida entre reinos cristãos e muçulmanos, do século XI.5 Porém, se faz necessário voltar ainda bem mais no tempo para estabelecer a importância da tradição literária e as conexões entre os pilares da poesia épica e os cantadores – e contadores – de histórias, responsáveis por revivê-las através dos tempos, e que são bases importantes para esta investigação.

Nas antigas civilizações, um poema épico era o resultado da criação de inúmeras narrativas orais, em um processo muito lento de elaboração. Esses registros literários, a partir da tradição oral de todo um coletivo de poetas e seus discursos cantados e contados desde tempos imemoriais, procuravam estabelecer e fixar um conjunto de informações consideradas fundamentais da história de um povo. Num trabalho posterior, todo o material coletado dessas narrativas era compilado e aproveitado para que

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resultasse na produção de um único poema. Era então uma espécie de organização do conhecimento herdado de experiências humanas do passado, com vistas à sua preservação. Em cerimônias coletivas, um poeta possuía a incumbência de declamá-lo, com acompanhamento musical, onde oferecia seu talento e trabalho aos membros da coletividade, tendo estes a oportunidade de conhecer os feitos e conquistas de seus antepassados e de se identificar com eles. Isso tinha por intuito criar laços mais fortes entre os participantes de um mesmo coletivo social, fazia parte de um repertório coletivo e esse coletivo gostava de ver os “seus” envoltos em estórias que envolviam a participação dos deuses. Esses códigos de ética fornecidos pelas atitudes dos personagens dentro de situações em que eram postos à prova continuam a vigorar através de outros sistemas de signos. A narrativa, conforme Todorov, “não se contenta com a descrição de um estado. Exige o desenvolvimento de uma ação, isto é, a mudança, a diferença. Toda mudança constitui, com efeito, um novo elo da narrativa. (TODOROV, 1980, p. 62). A ideia de mundo e a crença religiosa daquele período é o que hoje entendemos por Mitologia. Essas narrativas mitológicas eram, portanto, base e força expressiva dos homens pensadores desse tempo e exigiam estratégias estruturais e sequenciais para a transmissão das ideias contidas no interior da estória.

A Ilíada e a Odisseia, poemas épicos gregos atribuídos a Homero e que datam entre os séculos XII e VIII a. C., têm essas características e são consideradas as mais bem acabadas manifestações da poesia épica.6 Destacavam as personagens de coração mais forte, a coragem e a amizade, a inteligência e a força, a hospitalidade, a obediência aos deuses – por isso sendo suas preferidas e vencendo as batalhas e aventuras arriscadas – sem esquecer a fidelidade aos reis. O cenário da Ilíada é o da guerra entre Grécia e Troia, iniciada quando o príncipe troiano Páris rapta a rainha grega Helena, em um conflito que teve a duração de dez anos. Na narrativa há a predominância dos combates de Agamêmnon, Aquiles e Heitor, e se passa por volta do ano mil a. C.. Os gregos vencem por estratégia de Odisseu, no famoso episódio do Cavalo de Troia. Por semelhança, vestígios

6 Para aprofundamentos: Odisseia. Disponível em:

http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/odisseiap.html;

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ainda hoje da antiga cidade de Troia, no oeste da Turquia, são associados às descrições do poema de Homero. As manobras para o saque de Troia são veladas, dadas as características épicas que deixam em relevo as grandezas idealizadas das conquistas pelos vencedores.

Na Odisseia, que narra eventos que aconteceram logo após a Guerra de Troia, o personagem central é Odisseu também chamado e mais conhecido por Ulisses , o grego já com a fama de brilhante estrategista pela guerra anterior, além de conhecido por sua sagacidade na arte de navegar. A Odisseia

conta a sua longa viagem de retorno ao lar, saindo de Troia de volta a Ítaca, uma ilha a oeste da Grécia continental. A viagem, também pelo período de dez anos, é permeada de problemas e aventuras fantásticas. Encontros com deuses, feiticeiras, monstros, canibais e uma jornada ao Mundo Subterrâneo, o que faz do poema uma grande estória de aventura que atravessa os tempos. Essas estórias “redimensionavam artisticamente as guerras, as viagens, os mitos e as lendas do povo, pondo em evidência suas crenças e seus valores.” (TEIXEIRA, 2008, p. 16).

A dimensão de Homero e sua obra é singular e ampla, por onde transparece o olhar antropocêntrico da concepção grega do mundo. Suas epopeias influenciaram a cultura romana, especialmente no governo de Otávio Augusto (63 a. C. 14 d. C.), à época correspondente ao nascimento de Cristo, no surgimento ou aparecimento do Império como forma de organizar politicamente Roma.7 Os cantos dos aedos cantores populares que perambulavam pela Grécia ainda nos tempos dominados pela tradição oral a declamar e entoar poemas e canções – e atribuídos a Homero, serviram de modelo ao poeta latino Virgílio (71 – 19 a. C.), para a composição da sua Eneida (séc. I a. C.). Virgílio, ao lado de Ovídio (43 a. C. – 17 d. C.)e Horácio (65 – 8 a. C.),são considerados os maiores poetas romanos de seu tempo.

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(JAEGER, 2001; TEIXEIRA, 2008). Quanto a reconhecimento, Ovídio apontava que as folhas de louro – com as quais se faziam coroas para poetas e heróis – só serviam mesmo para temperar o arroz. Camões também viria mais tarde a compreender essa ausência de reconhecimento (em vida), embora sem o humor crítico mordaz do outro poeta.

No caso de Virgílio, diferentemente dos poemas anônimos da oralidade atribuídos a Homero, já se trata de um poema originalmente escrito por um único poeta. Ele escreve a Eneida8

por encomenda do Imperador Otávio Augusto, com a intenção de legitimar Roma, à altura das grandes conquistas heroicas passadas, novamente pela arte e por meio de artifícios semelhantes aos utilizados outrora. Assim, pode ser também uma criação cosmogônica para legitimar o Império. Em 12 cantos e 9826 versos, Virgílio conta as aventuras do herói troiano Eneias, que imigrou para a Itália depois de Troia ter sido destruída pelos gregos. Ele procurava um lugar seguro para refazer sua vida e a dos seus. Na região de Lácio, criou raízes e lançou as bases fundamentais para a grande Roma do futuro. Novamente aqui se encontram os perigos de uma viagem por mar, tempestades provocadas por intervenção dos deuses, chegadas e partidas, amores e relatos sobre a guerra de Troia, a exigência dos deuses de que o herói cumpra sua missão e a visita ao Hades, o mundo dos mortos. A jornada do herói está sempre no cerne das mitologias (CAMPBELL, 1996, p. 131), e qualquer que seja o motivo que o impeça de seguir adiante rumo ao que lhe é destinado figura como uma espécie de traição à própria consciência. Significativamente, Eneias recebe informações de Anquises, no Hades, sobre o futuro de Roma. Ele fica incumbido pelos deuses da tarefa de fundar a nova Troia: Roma. O herói segue viagem e outras guerras se estabelecem, até que vence o duelo com o inimigo. O argumento procura também, como não podia deixar de ser, colocar em relevo os valores e as virtudes caros à sociedade latina, sintetizando as correntes de pensamento na Roma de então.

Não por acaso, Virgílio é personagem de presença fundamental no texto de Dante Alighieri (1265 – 1321), que o

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acompanha ao mundo dos mortos na Divina Comédia. Dante, no século XIV, é um dos responsáveis pela síntese da história literária ocidental, por associar a cultura medieval católico-cristã e o mundo clássico greco-latino. O poeta, “Exilado, peregrino, faz de si uma espécie de cidadão do mundo, representante do homem medievo, espremido entre a cultura clássica e a cultura do cristianismo, em busca da excelência moral e espiritual e da justiça social. (ALBERTI, 2004, p. 7).9

Escrita em italiano em um período no qual o idioma dos eruditos valorizado era o latim, a obra é um épico que narra, de forma rigorosamente simétrica e planejada, uma viagem pelo

Inferno, Purgatório e Paraíso. O autor é considerado o inventor da língua italiana. Na obra de Alighieri, o personagem Dante tem o poeta Virgílio como guia pelo inferno e pelo purgatório. No céu, é guiado por Beatriz, musa e paixão de infância do poeta. Ao todo são 100 cantos, divididos em três livros com 33 cantos cada. O

Inferno possui um canto a mais, incluída aí a introdução do poema que, originalmente, se chamava Comédia. Em uma edição de 1555 foi acrescentado o adjetivo Divina.

No enredo, Dante se vê em uma floresta escura e procura escapar. Encontra uma montanha, mas três animais o impedem. O espírito de Virgílio aparece e lhe propõe um caminho alternativo. Ele havia sido chamado por Beatriz, para interceder junto a Dante. A jornada a se empreender é uma viagem pelo centro da Terra, que se inicia nos portais do Inferno, atravessa o mundo subterrâneo e chega ao monte do Purgatório. Dali Virgílio deixará Dante às portas do Céu. Através dos nove círculos do Inferno, eles percorrem iniciaticamente um mundo de expurgos de pecados, sofrimento de condenados, monstros e demônios, até chegar a Lúcifer, no centro da Terra. Na sequência, aparece o Purgatório,

uma alta montanha e sua ante-sala, para os arrependidos tardiamente. Os poetas atravessam um portal e nova odisseia os aguarda: os expurgos dos sete pecados capitais. Então se despedem e Dante é acompanhado por um anjo até Beatriz. O

Paraíso édividido em duas partes, uma material e outra espiritual, correspondentes ao paraíso terrestre – que obedece ao sistema cosmológico de Ptolomeu, como é o caso de Camões n’Os

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Lusíadas –e ao celeste. Ainda no paraíso terrestre é interrogado sobre suas posições filosóficas e religiosas e recebe permissão para prosseguir. Somente depois disso é que transcende e percebe tudo com outra visão, ampliada e aperfeiçoada. Pensador visionário, de espírito curioso, Dante Alighieri sintetizou como símbolo literário o pensamento e a compreensão do mundo de seu tempo.

Se Homero representa a tradição para Camões e não seria possível produzir um épico desconsiderando o poeta grego – o que diferencia este daquele é o primeiro ser a voz e o segundo a escrita. Virgílio e Dante, entre Homero e Camões, estabelecem essa ligação. Virgílio inaugura uma nova possibilidade de constituição da épica, por meio da escrita, tendo Homero e os gregos helenistas como ilustres antepassados. Camões inaugura seu canto moderno aludindo a Virgílio. Reverencia-o, mas busca a independência em defesa do homem de seu tempo e lugar, no mais importante poema épico em língua portuguesa.10 Seu manifesto é de respeito às heranças literárias, mas, valendo-se das regras renascentistas, pede o silêncio das divindades antigas, pois argumenta que o canto novo que agora toma forma é tão poderoso quanto, e solicita ser escutado. E lido. Por ser criador, contribui assim para fundar culturas inteiras e estabelecer outros e novos parâmetros criativos, porque o poeta está sempre criando e recriando a linguagem. Está sempre criando o mundo. Ele cria modelos de sensibilidade.” (PIGNATARI, 1997, p. 36). Portanto, embora situado geográfica e temporalmente, um poema épico pode transcender fronteiras e tornar-se universal. É a história do mundo, talvez se possa dizer do “nosso” mundo, condensada de forma sublime. Pelo exposto, os fios condutores e cúmplices dos cantos dos poetas são configurados e renovados através dos tempos.

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1.3 As águas da Idade Média e da Renascença

Há uma tendência crescente nos estudos históricos em reavaliar e redimensionar os conceitos presentes no estudo do Renascimento e em analisar suas contradições. Também os estudos sobre o período medieval salientam que a época não deve ser considerada homogênea. Para o historiador Lucien Febvre, a história é filha de seu tempo.11 A história escrita (historiografia) é resultado de problemas formulados no tempo do historiador, e não no tempo por ele estudado. Sendo o historiador também ele um filho de seu tempo, as problemáticas que irá formular perpassam a subjetividade de interesses e caprichos próprios dos contextos políticos e econômicos dos quais emergem. Assim, pode-se dizer, com Febvre, que a Idade Média dos historiadores é filha de seu tempo. O termo, como muitos utilizados hoje, foi construído a posteriori.

É quase consenso entre os especialistas da área que a Idade Média, mon âge, compreende o período da história ocidental (Europa)12 que vai da crise do século V ao XV, quando uma série de eventos (Renascimento, Reforma Protestante, Navegações Ibéricas e Formação das Monarquias Absolutistas na Europa) dão início ao que se convencionou chamar de Idade Moderna. Para o medievalista francês Jacques Le Goff, o Renascimento italiano do final do século XV e início do XVI não representou ruptura, uma vez que renascimentos anteriores haviam ocorrido (são exemplos a produção cultural à época do Império Carolíngio e o renascimento das cidades no século XIII), em momentos de grande fecundidade produtiva. Dante Alighieri e Petrarca, dois dos mais destacados poetas do Ocidente, escreveram suas obras no decorrer dos séculos XIII e XIV, respectivamente, ou seja, em plena Idade Média, e já no século XII ocorreu um revigoramento

11 Sobre o autor, ver FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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das cidades, o que gerou um dinamismo na vida material que implicou em uma revitalização da cultura de modo geral, incluindo-se aí as artes.13

Para Le Goff (2006, p. 66),

As mudanças não se dão jamais de golpe, simultaneamente, em todos os setores e em todos os lugares. Eis porque falei de uma longa Idade Média, uma Idade Média que –

em certos aspectos de nossa civilização –

perdura ainda e, às vezes, desabrocha bem depois das datas oficiais. O mesmo se pode dizer em relação à economia, não se pode falar de mercado antes do século XVIII. A economia rural só consegue fazer desaparecer a fome no século XIX (salvo na Rússia). O vocabulário da política e da economia só muda definitivamente – sinal de mudança das instituições, dos modos de produção e das mentalidades que correspondem a essas alterações – com a Revolução Francesa e a Revolução Industrial.

O autor defende a tese de que transformações mais significativas só vieram a ocorrer a partir do século XVIII, e que as mentalidades presentes no medievo demoraram um pouco mais a sofrer alterações. É também importante mencionar que as criações e instituições surgidas no período permanecem muito presentes e foram decisivas para a “evolução do Ocidente” (LE GOFF, 2005, p. 9). O período a que se refere Le Goff utilizava o uso do termo médio, com caráter teológico, como um tempo entre a encarnação de Cristo e o Juízo Final, ou seja, o tempo da redenção. O termo Idade Média, com conotação pejorativa como um tempo de poucos avanços nas áreas técnica e cultural e responsável pelos estereótipos ainda hoje muito presentes, consagrou-se a partir de três manuais escritos por um autor chamado Chistoph Keller. Esse autor escreve, No século XVII, um manual de história antiga, um de história da idade média e outro de história nova, que ficaria conhecida depois como moderna.

13 Para aprofundamentos ver BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na

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“Keller fixou também a ideia de que este período intermediário entre a Antiguidade e a época moderna nada produziu de importante. Foi um período não só estéril, mas de retrocesso: a ‘Idade das Trevas’.” (NASCIMENTO, 2004, p. 9).

O racionalismo do século XVIII e suas luzes reforçou os preconceitos já existentes e criou novos em relação à “Idade das Trevas” ou “Longa noite de mil anos” como era conhecido o período medieval, sintetizando um tempo que teria sido de barbárie, selvageria e ignorância mantida pela principal difusora de uma ideologia dominante: a Igreja Católica, associada à nobreza da época. O Romantismo e o nacionalismo do século XIX, reforçado pelas guerras napoleônicas, e os movimentos que viram emergir novas nações (Alemanha e Itália) e consolidar outras, (re) definindo suas identidades e origens, passariam a ver a Idade Média com outros olhos. Segundo Hilário Franco Júnior (1996, p. 19),

O ponto de partida fora a questão da identidade nacional, que ganhara forte significado com a Revolução Francesa. As conquistas de Napoleão alimentaram o fenômeno, com a pretensão do imperador francês de reunir a Europa sob uma única direção, despertando em cada região dominada ou ameaçada uma valorização de suas especificidades, de sua personalidade nacional, enfim, de sua história.

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Notre Dame e outras obras de Victor Hugo e os romances históricos de Walter Scott, especialmente Ivanhoé, diga-se de passagem, a obra que despertou em Jacques Le Goff – tido como um dos mais renomados medievalistas do século XX – o interesse em conhecer melhor o período. As catedrais medievais em estilo gótico, antes tidas como verdadeiros símbolos da ignorância, agora encantam, são conservadas e valorizadas enquanto patrimônio cultural e artístico, uma espécie de passaporte de acesso a épocas passadas que contam outras histórias.14

No século XX, pesquisadores filiados à Escola dos Annales, ao afastaram-se das visões já consagradas, suscitaram novos estudos que revelaram aspectos da civilização da época menos estereotipados. Marc Bloch, um dos fundadores da revista Anais de História Econômica e Social15,que deu origem à Escola, foi um dos precursores da história das mentalidades, sendo o pioneiro nos estudos de fenômenos do imaginário do homem medieval.16 A partir da década de 1960 os estudos de temáticas medievais proliferaram, com pesquisas de autores como os já citados, responsáveis pela percepção de uma Idade Média nem de trevas nem excessivamente romântica. Novas problemáticas foram suscitadas, resultando em obras fecundas que renovaram o próprio conceito de Idade Média, o momento em que a civilização europeia inventou “a cidade, a nação, o Estado, a universidade, o moinho, a máquina, a hora e o relógio, o livro, o garfo, o vestuário, a pessoa, a consciência e, finalmente, a revolução.” (LE GOFF, 1995, p. 54). Não obstante, o medievalista brasileiro Franco Júnior solicita cautela sobre os resultados dos trabalhos realizados no século XX a respeito do período medieval. Não se pode afirmar, segundo ele, que as novas e extensas fontes disponíveis e o rigor

14 O termo gótico vem dos godos, povos tidos como bárbaros e ignorantes, responsáveis pela destruição dos monumentos e criações gloriosas dos romanos. No outro extremo, como os propagadores da civilização, o termo já era empregado por artistas renascentistas quando faziam referência à produção artística do período anterior. Para aprofundamentos sobre as catedrais góticas ver DUBY, Georges. Arte e sociedade. In: O tempo das catedrais. Lisboa: Editorial Estampa, 1993.

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interpretativo dessas fontes propiciam uma leitura definitiva sobre a Idade Média.

Essas idiossincrasias dos autores e suas leituras históricas são hoje mais claramente discerníveis e equilibradas. Entende-se melhor, portanto, o embate de ideias que se perpetua pelo tempo. Os escritores gregos e romanos eram pagãos e muito do que escreviam era considerado oposto aos ensinamentos da Igreja. A filosofia aristotélica foi proibida por suas associações pagãs, e subsistiu graças ao advento de um brilho cristão às ideias de Aristóteles, proporcionado pelos frades dominicanos Alberto Magno e São Tomás de Aquino. Fato semelhante pode ter acontecido com Camões, ao submeter o seu poema ao Censor do Santo Ofício na Inquisição, Frei Bartolomeu Ferreira, e obtendo concessão para publicação17, pois, para o representante da Igreja, “isto he Poesia e fingimento, e o Autor como poeta, não pretenda mais que ornar o estilo Poetico.” (FERREIRA, 1931, p. 38). Como a Renascença, a Idade Média “Não deve ser limitada por barreiras no tempo e no espaço, pois estas são produto da imaginação histórica. [...] Deve ser aceita como um conceito cultural basicamente ligado à Europa Ocidental, criado numa fase da sua própria história em que tentava reconciliar-se com o seu passado.” (MATHEW, 1997, p. 15). O bom senso aconselha a evitar exageros e romantismos e não carregar demais nas tintas contrastantes em questão.

O termo Renascimento (Rinascità) tornou-se popular a partir de uma obra de Giorgio Vasari18, escrita em meados do século XVI, Vidas dos artistas. Essa palavra continua a evocar ideias que colocam o homem como centro do Universo. A relatividade do termo, que pode significar a referência a um período da história

17 Para Werner Jaeger, a não-separação entre a estética e a ética é característica do pensamento grego primitivo: “Foi a antiga retórica que fomentou pela primeira vez a consideração formal da arte e foi o Cristianismo que, por fim, converteu a avaliação puramente estética da poesia em atitude espiritual predominante. É que isso lhe possibilitava rejeitar, como errôneo e ímpio, a maior parte do conteúdo ético e religioso dos antigos poetas e, ao mesmo tempo, aceitar a forma clássica como instrumento de educação e fonte de prazer. A partir daí, a poesia continuou a conjurar do seu mundo de sombras os deuses e heróis da ‘mitologia’ pagã; mas esse mundo passou a ser considerado como jogo irreal da pura fantasia artística. É fácil contemplar Homero por esta acanhada perspectiva, mas assim impedimo-nos o acesso à inteligência dos mitos e da poesia no seu genuíno sentido helênico.” (JAEGER, 2001, p. 64).

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como também pode ser entendido como um conjunto de ideias e de valores culturais, é aqui preponderante. Huizinga, sobre a questão, escreve que a ideia de um renascimento da cultura do espírito “es al mismo tiempo muy antigua y relativamente nueva. Antigua en cuanto a su valor subjetivo como idea cultural, nueva en cuanto a su carácter específico de idea científica com la tendencia a lograr una validez objetiva.19

Na cultura da Renascença, aprendemos que os pensadores, os filósofos, os artistas e os cientistas eram parte de um conjunto de indivíduos que se esforçavam para modificar e renovar o padrão de estudos tradicionais das universidades medievais. Esses homens passaram a ser chamados de Humanistas, isto é, que estudavam o curso de humanidades. À época, a gramática e a retórica, mas que de fato consistia em literatura, poesia, história e habilidades para comunicar de forma clara e convincente. A literatura clássica se oferecia como um guia para o comportamento, conforme salienta Nicolau Sevcenko (1994, p. 18). Os humanistas tendiam a considerar como mais perfeita e mais expressiva a cultura que havia surgido e se desenvolvido no seio do paganismo, antes do advento de Cristo. Buscavam outras interpretações – ou reinterpretações – do Evangelho pelos valores e experiências da Antiguidade. Valores como a exaltação do indivíduo, os feitos históricos, a vontade e a capacidade de ação do homem, a crença de que ele é a fonte da criatividade ilimitada, portanto sugerindo uma aposta nas suas capacidades físicas e espirituais. A ênfase possuía tendência aos valores seculares, deixando em segundo plano os transcendentais. Significa dizer que o estudo da metafísica e da teologia não parecia ser prioridade para eles. O interesse era maior em tentar compreender as ações humanas e centrar esforços no sentido de aperfeiçoar-se como pessoa. Essas capacidades podiam ser desenvolvidas com preparação e educação adequadas, obtendo assim certa independência, pode-se dizer, da bondade de Deus, crença aparentemente majoritária na Idade Média.

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A aproximação crescente entre os eruditos italianos e os eruditos gregos permitiu a estes exercer influências para a difusão da literatura clássica grega. Os gregos difundiram Platão entre os seus contatos. Platão era, para eles, como uma alegoria que representava a estrutura hierárquica do Universo. Para os neoplatônicos, os princípios da perfeição e da harmonia, trabalho da criação divina, eram ideais a serem seguidos pela arte, pela arquitetura, pela literatura e pela música. Na busca pela unidade essencial entre os mundos material e espiritual, havia o entendimento de que o estudioso desses assuntos possuía poder de manipulação dos céus e de transformação da natureza. Essas ideias constavam em textos gregos dos séculos II e III. Os referidos textos também faziam referências a estudos sobre as estrelas e seus movimentos e a recitação de conjuros e hinos, com os quais se podia ascender também através da hierarquia do Universo e conseguir a perfeição espiritual. O neoplatonismo contribuiu para o estudo da alquimia e da astrologia, e desse modo preparou indiretamente o caminho para a revolução científica do século XVII.” (BLACK et al, 1997, p. 16).

Pico de Mirandola, quando escreve seu livro Oração sobre a dignidade do homem, em 1486, expressa em termos bastante cristãos o lugar do homem no mundo e a capacidade do seu desejo. O homem, segundo Mirandola, possuía em seu interior elementos de divindade e que poderia escolher entre desprezá-los ou crescer com eles. As ideias não se associavam tanto ao paganismo. Eram mais, e antes, como representações da fusão das doutrinas cristãs associadas a Santo Agostinho com as ideias clássicas.20 O que representou rompimento de Mirandola (e dos

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estudos das humanidades) com o poder da Igreja – considerado como desafio à onipotência desta – foi a rejeição ao grande número de cerimônias e ao pagamento a dinheiro pela salvação, necessário segundo o ensinamento dos clérigos.

Mas havia outros aspectos dos estudos humanistas, como o interesse pelas versões exatas dos textos clássicos, o que surtia efeito em novas e criteriosas investigações literárias históricas, também alastradas para textos não clássicos. Os estudos apontavam para documentos alterados e erros de tradução da versão latina autorizada do Novo Testamento, o que deixa entrever também possíveis laços entre o humanismo e a Reforma Protestante do século XVI. Os eruditos e os artistas pareciam estar conscientes de que viviam numa época de grandes alterações culturais. Através do Renascimento, não deixaram de evocar os temas e as técnicas clássicas, agora misturadas com iconografias cristãs. Isso não se deu, obviamente e como Le Goff assinalou, como um abrir e fechar de portas. A ponte entre as crenças cristãs e as da Renascença ficam evidentes na literatura humanista do período. Muito das ideias associadas ao Renascimento eram encontradas desde o século XII, como também nele há muito de medieval. O termo “Humanismo” é de grande valor, posto que coloca a sua atenção no centro dos mais importantes aspectos “do pensamento e do saber do Renascimento. [...] Assim, o Renascimento não nasce para ocupar um vazio cultural absoluto. Renascimentos prévios, em vários aspectos, tinham preparado o caminho para os êxitos dos séculos XV e XVI.” (BLACK et al, 1997, p. 16).

Mais que isso, é indício forte de que a cultura clássica nunca desapareceu totalmente da Europa durante a Idade Média. É possível ao homem poder atuar dentro da realidade em que vive, em maior ou menor grau conforme as circunstâncias de sua vida e a metáfora da afirmação de morte e volta à vida presente no termo Renascimento foi usada, segundo Tereza de Queiroz, para estabelecer os laços entre a Itália dos séculos XV e XVI com a Antiguidade. Se o único sentido do Renascimento fosse o da aproximação do ocidente cristão com a Antiguidade, esse período não se diferenciaria em nada da Idade Média.” (QUEIROZ, 1995, p. 16).

Mais do que um evento, o Renascimento representa em si o

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momento em que se gestou uma mudança de episteme, no sentido de que homem e natureza passam, aos poucos, a ser conhecidos não através de uma revelação miraculosa, mas da observação e experimentação que o indivíduo racional é capaz de fazer. Para Francisco José Calazans Falcon (2000, p. 28),

Quanto à secularização, não há dúvida sobre a sua significação maior: a emancipação de cada um dos campos ou setores do conhecimento e das práticas sociais da tutela teológica e metafísica em nome de um novo espírito científico cujas verdades, imanentes, autônomas e distintas das verdades reveladas, anunciam o paradigma racionalista naturalista da ciência que se inicia com Galileu Galilei.

Sobre o papel do indivíduo, o autor prossegue:

Em estreita relação com as transformações econômicas, sociais e culturais dessa época, o individualismo representou, já no Renascimento, a afirmação teórica e prática das possibilidades praticamente infinitas do homem como indivíduo dotado de liberdade e capaz de não somente conhecer a natureza e o mundo, mas também de agir de acordo com seus interesses e ideais de transformar o próprio mundo – o natural e o social. 21

Esse otimismo em relação ao homem e suas “infinitas” possibilidades, capaz de desvendar os segredos e mistérios do universo a partir do uso da razão, marcou o advento da modernidade. Nele, o conhecimento científico como possibilidade de leitura e interpretação do mundo e seus fenômenos passa a ser encarada, por muitos, como a única e verdadeira forma de conhecimento. Desse modo, segundo Nicolau Sevcenko (1994, p. 3), as sementes “do individualismo, do racionalismo e da ambição

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ilimitada, [...] contraditoriamente, fará brotar um anseio de liberdade e autonomia de espírito, certamente o mais belo legado do Renascimento à atualidade.” Outro autor, Marshall Berman (1992, p. 15), em tempos de crítica à modernidade em fins do século XX, escreve que “Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor [...] mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos.” Percebe-se que a oposição absoluta das polaridades entre a Idade Média e o Renascimento atualmente é desconsiderada. Em Huizinga (1996, p. 72) os termos são precisos: “A sede de honras e de glória tão característica do homem do Renascimento não difere muito da ambição cavalheiresca dos tempos anteriores. Simplesmente, libertou-se da sua forma medieval e revestiu-se de um garbo mais clássico.”

Um panorama das heranças culturais é percebido

por este autor, que estabelece relações entre os períodos

históricos. Segundo ele, o mundo, há quinhentos anos,

tinha seus contornos traçados mais nitidamente e os

homens e suas experiências possuíam ainda um caráter

de prazer e dor da vida infantil. Uma confissão de

pessimismo é encontrada na literatura da época. Quando

esses homens passam dos contentamentos e alegrias da

infância à reflexão, percebem as misérias de sua condição

e passam a ver somente seus infortúnios. Mas o

pessimismo é também o alicerce de onde se buscará uma

aspiração de vida sublime, de beleza e serenidade. Essa

aspiração é o contraponto ao presente sombrio que os

homens de todas as épocas encontraram para suportá-lo.

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energia, suscetível de ilusões e pouco acessível às

correções da experiência, de modo que, cedo ou tarde, o

avanço intelectual solicita que se revise esse ideal,

conforme Huizinga. Mesmo assim, ele não desaparece.

Apenas perde suas tendências ao exagero, abandonando

pretensões de cunho perfeccionista religioso e passa a

ser um modelo de vida social:

Três caminhos diferentes, em todas as épocas, parecem ter conduzido à vida ideal. Primeiro, o abandono do mundo. [...] O segundo conduz à melhoria do próprio mundo pela conscienciosa tarefa de melhorar as condições e as instituições políticas, sociais e morais. [...] Há um terceiro caminho para um mundo mais belo, trilhado em todas as idades e civilizações, o mais fácil e também o mais enganoso de todos – o do sonho. [...] Mas seria apenas uma questão de literatura, esse terceiro caminho para a vida sublime, esse voo da acre realidade para a ilusão? Era de certeza algo mais do que isso. A história presta pouca atenção à influência destes sonhos de vida sublime na civilização e nas formas da vida social. O conteúdo deste ideal é um desejo de regresso à perfeição de um passado imaginário. (HUIZINGA, 1996, passim p. 9-79).

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1.4 O poeta português do mar

Há inúmeras hipóteses e conjecturas sobre a biografia de Luís de Camões (1524 ou 1525 – 1580), e os estudiosos22 que se propõe a decifrar a sua vida se deparam com um sem número de incertezas sobre os fatos. Parece ser próprio da construção de um mito, onde qualquer vestígio de verdade está sob espessa cortina de fumaça e há sempre qualquer coisa de indefinível. Se isso existe para confundir, despertar curiosidade ou interrogações, não se sabe ao certo. Porém, é possível seguir as pegadas deixadas pela obra do poeta. Pela obra, faz-se possível uma espécie de biografia romanceada. Boa parte dos estudiosos que se debruçam sobre o poeta deixam vir à tona, em suas observações, certo grau de grandiloquência.23 Seria ela areverberação da força do épico de Camões?

A data de nascimento, a infância e a juventude estão envoltos em anonimatos. Estudos consensuais mostram que nenhum sinal exterior, seja de origem familiar de prestígio, bens materiais ou situação notória pareceu apontar com esperanças, embora conste também que era de ascendência paterna fidalga, ainda que modesta. Mesmo assim, comumente se mantém a imagem de que Camões nasceu pobre e viveu na miséria e sugere-se que se entregou às paixões sem economizar

22 Da infinidade de estudiosos da vida e da obra de Luís de Camões, cabe destacar alguns críticos camonólogos como: Faria e Souza, Pedro de Mariz, Jorge de Sena, Hernâni Cidade, José Maria Rodrigues e Carolina Michaëlis de Vasconcellos. No Brasil, Cleonice Berardinelli e os nomes que constarão nos estudos da edição brasileira d’Os Lusíadas utilizada neste trabalho, ainda neste capítulo e no próximo item sob o nome de O poema Canto a Canto.

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sentimentos, fossem os seus amores reais ou platônicos. Aqui, no campo amoroso, também há confusão e imperfeições, não somente pela ausência de documentações24 ou testemunhos idôneos, mas também pelos comentários a respeito de suas andanças. Há consenso que sua vasta produção literária indica interesses muito mais voltados para o pensamento e suas criações do que para as questões e ações práticas do cotidiano. Desse modo, reforça-se ainda mais claramente que o testemunho mais forte do poeta são suas próprias poesias.

Segundo Iacov Hillel, o ser humano está buscando uma saída para além da materialidade, e é o que Camões, com extrema atualidade, também faz. Ele fala sobre o destino, sobre o êxito, sobre a ida e a volta, a vida e a morte. O homem, por mais materialista que seja, por mais que tente saciar as suas necessidades materiais, mais ele se faz perguntas sobre o indizível. A respeito de sua encenação brasileira do épico, conclui: “eu tenho maior orgulho de ter feito, enquanto procedimento intelectual, de ter trabalhado, de ter posto a mão nesta epopeia, e nessa visão que ele teve, desta viagem do Vasco da Gama, de seu irmão, e da mistura do real e do imaginário, do verdadeiro e do fantástico.” (HILLEL, 2011).

Para Celso Nunes, primeiro encenador do épico no Brasil, Camões é um homem que tem uma inspiração literária de gênio, de fundamental importância também histórica para a era dos grandes navegadores e do Novo Mundo. Na sua leitura do épico, Nunes estabeleceu vínculos com a cultura clássica grega, em

24 Em documento raro, no Real Gabinete Português de leitura do Rio de Janeiro, existe cópia de um manuscrito de 228 páginas, que se lê na Introdução o seguinte: “Simão

Ferreira Paes, Cavaleiro Fidalgo da Casa de Sua Magestade e Familiar do Santo Ofício, tem o venerável trabalho, escripto há quase tres seculos, este titulo: Recopilação das Famosas Armadas que para a India foram desde o anno em que se principiou sua gloriosa conquista.”Um artigo de Frazão de Vasconcelos, do Instituto Português de Arqueologia Histórica e Etnografia, publicado na edição de 16 de outubro de 1937 da folha “A Voz”, de Lisboa, sob o título “Algumas notas a propósito do manuscrito das “Famosas Armadas”, existente na Biblioteca da Marinha do Rio de Janeiro, traz tópicos que se referem a Paes: “No terramoto de 1755, com a Casa da

India, desapareceu o seu valiosíssimo arquivo. Nele existiam, quasi desde as primeiras armadas, possivelmente a começar em 1503, os registos de todos os navios que partiam para o Oriente, os seus nomes e os dos capitães respectivos, os da gente de mar e guerra. [...] Foi na Casa da India que, por exemplo, alguma coisa se soube de Camões, embora pouco. Póde, pois, avaliar-se que riqueza de documentação se

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