ATPDases ou ATP-difosfohidrolases são enzimas que clivam ATP e ADP até
AMP e Pi, e estão envolvidas nos humanos, entre outras funções, na inibição da
agregação plaquetária. No parasita Schistosoma mansoni nosso grupo identificou a
enzima (Vasconcelos et al. 1993; Vasconcelos et al. 1996), clonou o gene
ATPDase1 e localizou a proteína na superfície do tegumento (DeMarco et al. 2003),
gerando o interêsse de sua purificação e caracterização cinética. A abundância da
proteína SmATPDase1 parece ser bastante baixa, o que pode ser avaliado pela
dificuldade de detectá-la por western blot em um extrato total de S. mansoni e pela
dificuldade em purificá-la parcialmente, diretamente do parasita (Vasconcelos et al.
1996). Isto gerou o interêsse de obter a proteína SmATPDase1 purificada, obtida por
expressão heteróloga.
Para a expressão heteróloga da enzima SmATPDase1 do parasita
Schistosoma mansoni cataliticamente ativa e funcional testamos diversos
hospedeiros procarióticos sem sucesso, mas obtivemos sucesso com o sistema de
expressão eucariótico Pichia pastoris (Cregg et al. 2000) que já havia sido usado
para secretar proteínas recombinantes no meio de cultura, simplificando o processo
de purificação. Durante nosso trabalho constatamos que não foi possível atingir esse
objetivo inicialmente usando o sistema de expressão procarionte E. coli (BL21(DE3),
Origami (DE3) ou C41(DE3)) para a produção destas enzimas de forma solúvel e
com atividade enzimática. Foram experimentadas muitas metodologias de re-
enovelamento descritas na literatura para recuperar, a partir dos corpos de inclusão,
uma proteína solúvel e com atividade enzimática. Entretanto, por esta via não foi
possível obter a enzima funcional. Uma das razões que dificultam à bactéria produzir
domínio hidrofílico da isoforma 1, e 6 para o da isoforma 2). Sabe-se que usando os
hospedeiros Pichia pastoris ou Saccharomyces cerevisiae é possível produzir muitas
proteínas recombinantes na sua forma nativa com sucesso, devido ao auxílio de
chaperonas tal como a PDI (cataliza a formação de pontes dissulfeto) e ao processo
de glicosilação que ajuda a estabilizar a proteína.
Recentemente, nosso grupo clonou o gene da ATPDase2 usando
informações do banco de dados de ESTs de Schistosoma (Verjovski-Almeida et al.
2003), e conseguimos imunolocalizar esta também no tegumento (Levano-Garcia et
al. 2007). SmATPDase2 foi encontrada nas membranas basal e apical do tegumento
junto à SmATPDase1, entretanto SmATPDase2 somente foi localizada no sincício
do tegumento. A presença de ambas as enzimas na superfície do tegumento sugeriu
um maior envolvimento desta família de enzimas na regulação de abundância de
nucleotídeos extracelulares. SmATPDase2 contem os mesmos domínios funcionais
conservados (ACR), porém, esta segunda isoforma é diferente da primeira isoforma,
por que é secretada para o meio externo do parasita, como já demonstrado (Levano-
Garcia et al. 2007). Devido à provável importância destas enzimas anticoagulantes
para o parasita, é de grande interesse biológico e biotecnológico caracterizar estas
enzimas de forma isolada. Como mencionamos anteriormente, a caracterização da
atividade apirásica de proteínas do tegumento do parasita havia sido parcial, e
somente demonstrada essa atividade para a enzima SmATPDase1.
Com o sistema eucariótico de expressão em P. pastoris, inicialmente nós
conseguimos gerar clones multicópias para a expressão e secreção da enzima
transformante com 7-12 cópias do vetor de expressão inserido dentro do seu DNA
genômico, como estimado pela resistência apresentada ao antibiótico G418 sulfato
na faixa de concentração de 4 mg/ml. Este clone tem secretado continuamente a
enzima recombinante no meio de cultura, obtendo-se um rendimento moderado de
~1,6 mg de proteína purificada a partir de uma cultura de 700 ml. Recentemente
nós conseguimos gerar um clone (SmATPDase2(9)/ pPIC9K) que expressa a
enzima SmATPDase2, sendo que este tem a capacidade de secretar mais enzima
recombinante que o clone secretando a primeira isoforma; no ensaio de expressão
com uma cultura de 700 ml foi obtido ~2,9 mg de proteína purificada com Ni-NTA.
Uma mudança nas condições de cultura foi feita com o uso do EDTA como
aditivo, onde a concentração final de 10 mM no meio diminuiu a degradação das
proteínas recombinantes causada pelas proteinases secretadas pelas leveduras no
meio de cultura (ver figura 13B-C). O efeito deste aditivo foi claramente visível após
cromatografia de afinidade, onde foi possível visualizar uma banda com muito pouca
degradação (lane E1, figura 13C), diferente das proteínas recombinantes obtidas a
partir de um meio de cultivo sem a presença do EDTA em tal concentração (Lane
E1, figura 13A). É muito possível que no cultivo de P. pastoris com EDTA (10 mM)
outras proteínas de menor peso molecular (abaixo de ~40kDa) não sejam
degradadas por causa do agente quelante, por isso foram observadas proteínas de
menor peso (abaixo de 30 kDa) somente nesta condição no gel SDS-PAGE. A
adição de EDTA foi baseada no trabalho com o hormônio recombinante hPTH, onde
a secreção de proteína recombinante não degradada em P. pastoris aumentou
quando adicionado EDTA na cultura, sugerindo que as metalopeptidases
extracelulares ou associadas à parede foram as responsáveis pela instabilidade do
As análises de glicosilação mostraram que ambas as SmATPDases
recombinantes estavam N-glicosiladas, em concordancia com o que tinha se predito.
Assim, ambas as proteínas não tratadas com deglicosilases mostraram ter um peso
molecular similar de ~ 55 kDa no gel SDS-PAGE, e após deglicosilação ambas as
proteínas mostraram ter pesos moleculares similares de ~ 47 kDa. Sendo que as
predições dos pesos moleculares in silico baseadas nas sequências primárias de
aminoácidos indicavam que estas teriam ~52 kDa (SmATPDase1) e ~54 kDa
(SmATPDase2), sugere-se que possívelmente haja uma pequena migração
anômala. Estes mesmos pesos moleculares foram observados nas SmATPDases
recombinantes produzidas em E. coli (figuras 7A-D e 10B). Este cDNAs codificam as
enzimas recombinantes nas regiões S66 a Q507 (SmATPDase1) e N83 a K564
(SmATPDase2).
Recentes publicações mostraram que a super-expressão de proteínas como
Kar2p, Sec63, YDJ1p, Ssa1p e PDI (proteína dissulfeto isomerase) aumentaram a
secreção de proteínas recombinantes usando P. pastoris (Zhang et al. 2006). Novos
estudos sugerem que a super-expressão de uma proteína exógena em P. pastoris
pode resultar em proteínas com “folding” errado (não nativa) sobrecarregando o
sistema do hospedeiro. Assim uma acumulação de proteínas com o “folding” errado
no retículo endoplásmico poderia explicar baixos níveis de expressão (Rapoport et
al. 1996). Recentemente foi demonstrado que o uso da chaperona PDI aumentou a
secreção de proteína exógena em P. pastoris (Inan et al. 2006; Zhang et al. 2006).
Sabe-se que esta proteína PDI catalisa as reações de formação de pontes disulfeto
e rearranja aquelas mal feitas.
Os dados da literatura citados acima nos sugeriram que uma co-
um vetor expressando a PDI potencialmente poderia incrementar a sua capacidade
de secreção das proteínas recombinantes. Baseado nisso, realizamos o teste de
co-expressão do clone P. pastoris SmATPDase1(16)/pPIC9K contendo o vetor de
expressão episomal PDI/pICHOLI-1, ambos induzidos pelo metanol. Os resultados
não mostraram uma melhoria da secreção de SmATPDase1 ao meio.
As estruturas secundárias de ambas as ATPDases de S. mansoni
expressadas na levedura Pichia pastoris foram elucidadas pelo dicroísmo circular.
Com isto, foi vista uma pequena diferença na estrutura secundária entre ambas as
enzimas, baseada na porcentagem de alfa hélice e folha beta. Verificamos que
SmATPDase 1 apresentou alfa hélice: 7%, folha beta: 45%, randômica: 48%,
enquanto SmATPDase2 mostrou ter alfa hélice: 14%, folha beta: 33%, randômica:
53%. A SmATPDase2, segundo alinhamento de aminoácidos, é mais similar às
proteínas CD39L2 e CD39L4 humanas, mas observa-se que a CD39L2 humana
(NTPDase6) possui a seguinte estrutura secundária: alfa hélice: 33%, folha beta:
18% e randômica: 49% (Ivanenkov et al. 2003), ou seja, um conteúdo bastante
distinto daquele da SmATPDase2.
Realizamos um ensaio de “cross-linking” com as duas SmATPDases usando
glutaraldeido, o qual estabiliza conformações diméricas, triméricas e oligoméricas.
Os resultados mostraram que estas enzimas na ausência do agente redutor (DTT)
formaram dímeros em maior abundância que monômeros, e na presença do DTT
formaram-se dímeros em baixa abundância (figura 24) o que sugere que as
conformações diméricas estariam se formando ou se estabilizando através de
pontes entre cisteínas livres. As SmATPDases 1 e 2 apresentam 9 e 10 cisteínas,
formando duas pontes dissulfeto, hipótese que está sustentada no alinhamento de
várias seqüências de aminoácidos de NTPDases nas quais estão conservadas 4
cisteínas. Com isto, sugere-se que a SmATPDase2, que é secretada, estaria no
meio extracelular na conformação dimérica mais que como monômero.
As apirases recombinantes de Schistosoma mansoni mostraram uma alta
atividade sobre os nucleotídeos UDP e UTP, o que sugere que reduziriam a
resposta imune via degradação destes nucleotídeos sinalizadores. As SmATPDases
1 e 2 de forma similar às NTPDases2 tiveram maior atividade ATPásica que
ADPásica (Wang et al. 2005), entretanto estas apirases de S. mansoni mostraram
maior atividade UTPásica que ATPásica, o que nas outras NTPDases2 não foi
observado, já que os níveis de atividade ATPásica estão acima dos níveis de
hidrólise de outros nucleosídeos difosfatados e trifosfatados. Estas características
enzimáticas de preferência pelo UTP observadas são compartilhadas com a E-
NTPDase 8 humana, a qual mostrou uma maior atividade sobre o UTP em presença
de cálcio mais que com o magnésio (Knowles e Li 2006). Curiosamente a atividade
ATPásica da E-NTPDase 8 (menor que UTPásica) mostrou ser maior na presença
de Magnésio que com cálcio (3,55 + 0,23 e 2,89 + 0,09 umol/mg/min
respectivamente). Nos ensaios enzimáticos a SmATPDase1 mostrou ter maior
atividade ATPásica na presença de cálcio, e a SmATPDase2 na presença de
magnésio ou manganês. As atividades NTPásicas entre ambas as SmATPDases
recombinantes foram similares, com o mesmo perfil de preferência pelos substratos.
As atividades NDPásicas entre estas apresentaram algumas diferenças na
preferência pelos substratos testados, mas em ambos os casos a maior atividade
difosfatados foi observada em CD39L4 (NTPDase5) (Murphy-Piedmonte et al.
2005). Como esperado, SmATPDase1 mostrou maior atividade na presença de
cálcio que de magnésio, sendo que outros cátions divalentes também serviram
como cofatores na seguinte ordem de preferência Ca > Mn > Hg> Co> MG > Zn. No
caso de SmATPDase 2 foi observado que esta enzima teve maior atividade na
ausência de cofator, por que na presença deste sua atividade enzimática foi
reduzida; entretanto comparando as atividades na presença dos vários cátions, esta
teve maior preferência pelo magnésio e manganes. A preferência pelos cátions foi a
seguinte Mg > Mn > Co > Ca > Zn > Hg. Adicionalmente foi observado que as
apirases recombinantes mostravam maior velocidade de hidrólise dos nucleotídeos
nos pHs alcalinos (figura 20 A-B).
Nucleotídeos têm um papel importante não somente dentro da célula, mas
também no meio extracelular, por que estes podem ser liberados através de
diferentes mecanismos. Nucleotídeos extracelulares têm efeito estimulante sobre
duas subfamílias de receptores de membrana plasmática, chamados receptores P2:
os metabotrópicos P2Y acoplados à proteína G e os ionotrópicos P2X canais iônicos
(Dubyak e el-Moatassim 1993; Di Virgilio et al. 2001). O ATP liga-se a ambas as
subfamílias de receptores com alta afinidade, enquanto ADP ativa P2Y1 e P2Y12,
UTP primariamente interage com P2Y2 e P2Y4, e UDP liga-se ao subtipo P2Y6 (von
Kugelgen e Wetter 2000). Sabe-se que o UDP induz a secreção de IL-8 de
eosinófilos humanos o qual é um importante fator quimiostático e um mediador
central em inflamação, estimulando resposta celular em outras células (Mukaida
2000; Baggiolini 2001). Interessantemente foi encontrada na apirase do parasita
trematodo Trichinella spiralis uma elevada atividade UDPásica (Gounaris 2002).
com a sinalização por receptores P2, o que se somaria à característica principal
deste tipo de enzima, que seria a inibição da agregação plaquetária devido à
atividade ADPásica que ambas as SmATPDases apresentam (Atkinson et al. 2006).
Sabe-se que durante a infecção de humanos com S. mansoni, os parasitas
interferem com a resposta imune (Carvalho et al. 2006; Pearce et al. 2006),
dependendo da carga parasitária e da fase da infecção: a infecção aguda aumenta a
resposta alérgica do hospedeiro, enquanto a infecção crônica diminui esta resposta
(Carvalho et al. 2006). É possível que as SmATPDases tenham um papel modulador
da resposta imune do hospedeiro mediada pelo parasita, ao interferir com a
concentração dos nucleotídeos sinalizadores de receptores purinérgicos.
Finalmente, nosso trabalho gerou a possibilidade de ser testada a
cristalização da proteína SmATPDase, ao mostrarmos que foi possível obter vários
miligramas de SmATPDase1 e SmATPDase2 purificadas solúveis, estáveis e com
atividade catalítica, usando-se a expressão heteróloga em P. pastoris. Devido ao
potencial de uso das NTPDases como alvo para tratamento de infarte do miocárdio,
existe um imenso interesse em se conhecer o padrão de folding desta família de
nucleotidases, para a qual até hoje não se obteve a cristalização e a estrutura com
resolução atômica para nenhum membro da família, em nenhuma espécie. A
estrutura com resolução atômica de um membro da família de apirases chamada
SCAN (Soluble Calcium Activated Nucleotidase) já foi obtida (Dai et al. 2004; Yang
et al. 2006), porém esta família é totalmente diversa, já que não possui nenhum dos
5 domínios conservados da família das NTPDases, e na realidade não possui
nenhuma similaridade de sequência primária com as NTPDases. Sabe-se que as
NTPDases estão envolvidas na proteção à injúria causada por isquemia e
coração (Kohler et al. 2007), e recentemente foi mostrado que existe indução da
transcrição do gene e da proteína NTPDase 1 (CD 39) no endotélio e nos miócitos,
em modelo animal de isquemia miocárdica durante o precondicionamento in situ
(Kohler et al. 2007). Conhecer os detalhes atômicos da estrutura molecular das
NTPDases pode ajudar na identificação dos fatores responsáveis pelas diferenças
cinéticas e funcionais dos diversos membros da numerosa família das NTPDases de
mamíferos, e pode ajudar também na utilização desta enzima para tratamento de
isquemia, como recentemente proposto (Grenz et al. 2007; Kohler et al. 2007). Um
próximo passo de nosso grupo será tentar a cristalização dos domínios hidrofílicos
das SmATPDases 1 e 2, visando a possível utilização destes cristais para
6. CONCLUSÕES
As ATP-difosfohidrolases ou NTPDases de Schistosoma mansoni foram
produzidas de forma recombinante com sucesso utilizando a levedura Pichia
pastoris como hospedeiro. Nós identificamos uma segunda isoforma de ATPDase e
conseguimos clonar e purificar a enzima com atividade. Purificamos em paralelo a
primeira isoforma, e caracterizamos ambas. Comprovamos que tanto SmATPDase1
quanto SmATPDase2 hidrolisam ATP e ADP, e adicionalmente foi observado que
estas tem uma maior velocidade de catálise sobre os nucleotídeos UTP, UDP e IDP,
o que sugere que as duas enzimas localizadas no tegumento possam interferir e
atenuar os processos de sinalização do sistema imune através da via de receptores
purinérgicos. Vários experimentos foram realizados para determinar a
imunogenicidade destas enzimas e o possível efeito protetor. Entretanto,
camundongos imunizados com as SmATPDases 1 e 2 não apresentaram uma
significativa proteção, já que só foi possível uma redução de até 20% na carga
parasitária em ensaios de desafio, quando usadas as SmATPDases recombinantes
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