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Este estudo confirma, uma vez mais, a importância da cultura francesa no Portugal oitocentista e a enorme influência de Camille Flammarion e da Société Astronomique de France como catalisadores do desenvolvimento da astronomia amadora internacional, em particular, fora da zona de influência anglo-saxónica. O estilo adoptado pela revista criou uma comunidade virtual. Desta forma permitiu o desenvolvimento de iniciativas individuais especialmente em países como o nosso em que um baixo número de praticantes, disperso no tempo e espaço, inibiu o aparecimento de uma sociedade astronómica local. Note-se que em Portugal não existia igualmente à época uma sociedade de astrónomos profissionais. Narciso de Lacerda contando com o apoio do seu amigo Silva Pinto conseguiu adquirir um telescópio Bardou de 108 mm, o primeiro instrumento de muitos outros astrónomos entre os quais se contam alguns profissionais (Bonifácio 2009). Narciso de Lacerda testou o poder resolvente do seu telescópio através da observação de estrelas duplas em diferentes ocasiões do ano. Observou e registou as superfícies do Sol, da Lua, dos planetas Vénus e Júpiter e procurou relacionar eventos astronómicos e terrestres, os tremores de Terra. Nos seus labores astronómicos Narciso de Lacerda não se diferencia de muitos outros astrónomos amadores espalhados pelo mundo. No século XIX estabeleceram-se em Portugal novas, ou renovaram-se, instituições de ensino e de investigação. Na sua maior parte estes esforços acabaram traídos por uma política científica inexistente, ou mesmo aleatória, por uma elite pequena e pouco dinâmica, por instituições rígidas e por uma população com uma das mais baixas, senão a mais baixa, taxa de alfabetização da Europa (Candeias, Paz, e Rocha 2007, p. 34). Neste contexto, a “descoberta” de um pequeno número de portugueses em contacto com os seus congéneres internacionais

e aos quais comunicavam as suas observações astronómicas constituiu uma surpresa. Apesar de não termos encontramos uma figura de “primeiro plano”, no sentido, que tenha dado uma contribuição significativa para o progresso da astronomia, estamos convencidos que uma melhor compreensão das dinâmicas dos amadores locais nos permitirá compreender melhor o desenvolvimento da ciência em Portugal e do seu impacto na sociedade em geral. Por curiosidade refira-se que a edição de 1890 da Astronomie Populaire de Flammarion refere entre os observadores livres para além de Narciso de Lacerda outros dois portugueses. Um é o conhecido Francisco Affonso Chaves (1857–1926), de Ponta Delgada, futuro director dos serviços meteorológicos dos Açores que possuía na altura um observatório particular e J. C. de Castro Villas-Boas (?–?) de Viana do Castelo. Indivíduo sobre o qual pouco sabemos e que estamos agora a investigar. Em particular até à data não encontrámos nenhuma referência a observações por ele realizadas. A sua inclusão numa tão restrita lista levanta, no entanto, a questão de qual seria o real número de entusiastas portugueses.

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Poder Político e Hegemonia Científica: os Reitores Cientistas da Universidade de Lisboa na República e no Estado Novo

Political Power and Scientific Hegemony: the Rectors-scientists of the University of Lisbon in I Republic and the New State

Ana Simões

Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia (CIUHCT) asimoes@fc.ul.pt

Ana Carneiro

Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa, 1749-016 Lisboa, Portugal amoc@fct.unl.pt

Maria Paula Diogo

Departamento de Ciências Socais Aplicadas, Faculdade de Ciências e Tecnologia, UNL-Nova mpd@fct.unl.pt

Resumo

No contexto mais amplo da reforma do ensino superior de 1911, a fundação da Universidade de Lisboa foi uma das peças-chave da visão republicana de cidadania, assente num ‘homem novo’, moldado pela ciência. Não é, pois, de estranhar que os primeiros reitores da Universidade de Lisboa, durante a I República, fossem cientistas, empenhados em sedimentar um novo ethos académico, assente na investigação e no diálogo entre as dimensões científica, técnica e humanística da educação e atento ao papel da divulgação científica e técnica na construção do cidadão republicano.

Ao contrário, durante o quase meio século de ditadura do Estado Novo, apenas três reitores da Universidade de Lisboa foram cientistas (um matemático, um físico e um químico), num universo dominado pela Faculdade de Direito e por apoiantes do regime autoritário. Os três reitores-cientistas deste período partilharam com os seus predecessores republicanos uma agenda de afirmação da investigação como elemento fulcral da missão de uma universidade cujo objectivo era a preparação da elite intelectual e política do país que, a partir dos anos 60, teve, no entanto, de se adaptar a uma crescente massificação do ensino superior.

Através da comparação das agendas dos reitores cientistas da República e do Estado Novo efetuada no quadro de uma perspectiva gramsciana mostra-se, nesta comunicação, o modo como os valores da tecnocracia e do cientismo foram elementos cruciais na definição da norma cultural e da ideologia dominante.

Palavras-chave: ciência e política, tecnocracia, hegemonia cultural, intelectuais e poder Abstract

In the wider context of the 1911 reform of Portuguese higher education, the creation of the University of Lisbon played a key-element in the Republican vision of citizenship, based on a ‘new man’ molded by science. Thus, it comes as no surprise that the first rectors of the

University of Lisbon, during the I Republic, were scientists committed to implement a new academic ethos, founded on scientific research and a dialogue between the scientific, technical and humanistic dimensions of education, as well as mindful of the role of popularization of science and technology in shaping the Republican citizen.

On the contrary, during the almost fifty yearlong dictatorship known as Estado Novo (New State), only three rectors of the University of Lisbon were scientists (a mathematician, a physicist and a chemist), the majority coming from the Law Faculty and endorsing the dictatorship. The three rectors-scientists of this period shared with their Republican predecessors an agenda oriented to the consolidation of research as a key-factor in the University’s mission whose main purpose was the education of the country’s intellectual elite, although from the 1960s onwards it had to be adapted to the growing massification of higher education.

By comparing the agendas of both the rectors-scientists of the I Republic and the dictatorship within a Gramscian perspective, this paper shows how the values associated with scientism and technocracy were crucial to the definition of the cultural norm and the dominant ideology.

Keywords: science and politics, technocracy, cultural hegemony, intellectuals and power O labirinto da hegemonia: engenharia, medicina e ciência, antes e depois da I República

Nos Cadernos do Cárcere, escritos entre 1928 e 1935, Gramsci dá especial relevo aos aspectos culturais e ideológicos da sociedade, a chamada supraestrutura no marxismo clássico, como elemento a partir do qual se poderia realizar uma ação política e como uma das formas de criar e reproduzir hegemonia, entendida como a dominação ideológica de uma classe sobre outra, sendo que toda a relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica. O poder seria garantido fundamentalmente pela hegemonia cultural das classes dominantes através do sistema educativo e meios de comunicação e não apenas pelos aparelhos repressivos do Estado (Hoare & Smith, 1971).

Tal como Gramsci sublinhou, educação, persuasão e repetição são instrumentos importantes na criação de hegemonia nos dois domínios de intervenção da supraestrutura, isto é, a ‘sociedade civil’ e a ‘sociedade política’ (Bates, 1975). Neste contexto, ‘a pedagogia é o resultado de lutas, quer de relações de significado, quer de relações institucionais de poder e tais lutas não poderiam ser abstraídas da construção da identidade nacional e do que significa ser-se um cidadão activo’ (Giroux, 1999). Com efeito, em 1911, a Primeira República lançou uma reforma educativa, no contexto da qual foram criadas as Universidades de Lisboa e Porto, que desafiaram a hegemonia da Universidade de Coimbra, que perdeu parte considerável das suas prerrogativas na educação das elites intelectuais e políticas. Este processo, no entanto, já tinha sido desencadeado na segunda metade do século XIX, com a criação de escolas superiores em Lisboa, a Escola Politécnica e a Escola Médico-Cirúrgica (EPL e EMC), visando transformar a capital, o centro de decisão política, no centro intelectual e científico da nação (Carneiro & Amaral, 2013).

Engenheiros, artesãos da hegemonia liberal

Desde a década de 1830, a ideologia do liberalismo articulou um discurso que se tornou hegemónico, não no sentido gramsciano de ganhar a adesão da população, em sentido amplo, dados os elevados índices de analfabetismo, mas no âmbito dos círculos intelectuais e burgueses das principais cidades. Foi então criado um dispositivo de educação técnica como intuito de criar novas elites, ferramenta indispensável à construção de infraestruturas e ao desenvolvimento da indústria e do capitalismo. Neste contexto, a educação científica tinha, apenas, um carácter propedêutico à engenharia e à medicina, dominando a engenharia enquanto profissão de base científica (Simões et al, 2013; Simões, Carneiro e Diogo, 2014). Assim, uma profissão científica era dificilmente seguida ou mesmo admitida a sua possibilidade: fora das universidades não havia praticamente emprego para cientistas; os cientistas eram uma minoria, um grupo social subalterno no seio da intelectualidade portuguesa e das elites políticas. Apesar de os engenheiros terem dotado o país de importantes infraestruturas, a ideologia liberal permaneceu confinada a uma minoria educada e o insucesso do Estado liberal e dos seus protagonistas em criar uma ‘hegemonia genuína’ (Lipsitz, 1988) significou que não conseguiram tornar-se verdadeiramente liberais. Apesar disso, os engenheiros ficaram numa posição de vantagem sobre outros intelectuais e profissões de base científica, que buscaram um discurso de progresso social alternativo, como a Geração de 70 (Valadas, 1999). Esta situação explica, até certo ponto, que depois da reforma de 1911, favorável à ciência, o Instituto Superior Técnico (IST) se tenha recusado a integrar a Universidade de Lisboa (UL), no sentido de manter as suas prerrogativas, nomeadamente salários mais altos, acumulação de emprego e o facto de os seus docentes não estarem obrigados a realizar investigação científica (Simões et al, 2013). Médicos e cientistas, um bloco hegemónico

Nas últimas décadas do século XIX, os movimentos que levaram à implantação da República, em 1910, afirmaram novos protagonistas, os médicos, no cenário nacional. Estes mobilizaram as ciências, especialmente a biologia, que lhes fornecia os métodos e técnicas que a prática da ‘medicina culta’, isto é, a medicina fundada e legitimada pelo laboratório, requeria (Amaral & Carneiro, 2013).

Mal pagos e com baixo estatuto social na maioria dos países europeus, este período é marcado pela luta dos médicos por emprego, salários dignos e respeitabilidade social. Apesar da criação de sistemas sociais de saúde, nos finais do século XIX e princípios do XX, na Alemanha e Grã- Bretanha, prometendo emprego estável para a maioria dos médicos, os esforços para dignificar a profissão continuaram. Em Portugal, a situação era semelhante, pois apesar de não existirem sistemas de segurança social, as associações mutualistas de trabalhadores não lhes tinham grande respeito e pagavam mal. Além disso, os baixos salários nos hospitais e universidades levaram a elite de médicos lisboetas a evitar, por todos os meios, o que designaram por ‘proletarização material e intelectual’. Envolveram-se na criação de sociedades científicas e de um conjunto de publicações que se constituíram numa verdadeira máquina de propaganda (Amaral & Carneiro, 2014).

entender há muito num processo de degeneração, conforme o diagnóstico da Geração de 70 (Valadas, 1999). Conhecidos como a geração de 1911, os médicos deste período assumiram o papel de ‘intelectuais orgânicos’ , isto é, aqueles que não só pensam a realidade, mas atuam, adquirindo uma função organizacional e conectiva e assumindo-se como prosélitos e agentes de defesa dos interesses do povo. É assim que os médicos forjaram laços, formando um bloco hegemónico (Lears, 1985; Lipsitz, 1988) com a minoria de cientistas. Neste quadro, foram criadas estruturas médicas importantes, tornando-se os médicos parceiros da criação do ‘biopoder’ (Foucault, 1963) do Estado Republicano. No fundo, aos engenheiros, a ‘noblesse d’État’ (Bourdieu, 1989) do Estado Liberal, correspondia, agora, a ‘noblesse de la République’, os médicos (Amaral & Carneiro, 2013; Simões, Carneiro e Diogo, 2014).

A investigação fundamental mais do que a aplicada tornou-se agora um estandarte de médicos e de republicanos, que viam na ciência o antídoto da religião, tida por obstáculo ao progresso cultural, social e económico do país. Consequentemente, as mentes dos cidadãos republicanos tinham de ser moldadas pela ciência, em escolas e universidade, e através da extensão universitária (Simões et al, 2013). Em 1911, no entanto, a posição dos cientistas era a de uma minoria social pouco influente, tendo a ciência um poder mais simbólico na ideologia republicana do que real, mas que, apesar de tudo, modificou a realidade ainda que parcialmente. A República criou as Faculdades de Ciências cuja missão deixou de ser, meramente, a formação científica propedêutica de médicos e de engenheiros, para passar a ser a promoção da ciência e da investigação fundamental, lançando as bases de uma comunidade científica com significado cultural e social.

No entanto, é durante o Estado Novo que a profissão de cientista e a investigação científica se tornaram reconhecidas em resultado do espírito de universidade que republicanos e figuras importantes do regime ditatorial partilharam até certo ponto. As sementes plantadas nas últimas décadas do século XIX pelos médicos e a sua aliança com os poucos cientistas durante a Primeira República precisaram de tempo para germinar. O tempo acabou por ser um elemento fulcral na construção de uma investigação científica organizada e das profissões científicas em Portugal (Amaral & Carneiro, 2013; Simões, Carneiro e Diogo, 2014): No fundo, muitos dos intelectuais e líderes da ditadura foram educados nas universidades criadas na Primeira República (Simões et al, 2013).

Os reitores cientistas da República

O microcosmo dos reitores cientistas da UL, no seu papel de líderes, isto é, de ‘intelectuais orgânicos’ (Hoare & Smith, 1971; Sassoon,1986; Robinson, 2005) fornece um ponto de observação privilegiado para avaliar o lugar da ciência na criação de hegemonia, durante a Primeira República e a ditadura.

Um traço comum aos reitores cientistas da República — Augusto José da Cunha (1834-1919), João Maria de Almeida Lima (1859-1930) e Pedro José da Cunha (1867-1945) — é a sua educação militar, segundo os parâmetros da educação técnica da monarquia liberal. Sendo originalmente engenheiros, escolheram ser cientistas e republicanos. Foram professores da EPL e depois da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), ocupando esta os

mesmos edifícios e herdando os estudantes e pessoal da primeira. A República atribuiu aos reitores o papel de líderes com a missão de criar uma nova elite intelectual e um envolvimento mais direto da universidade e dos seus licenciados na educação da sociedade num sentido amplo, dada a dimensão moral atribuída à ciência e ao seu papel na geração de riqueza (Simões et al, 2013).

Os primeiros três reitores, dois matemáticos e um físico, especialistas em duas áreas ocupando a posição superior da hierarquia comteana das ciências, tiveram a seu cargo a vida UL— entre, respectivamente, 1911 e 1913, 1913 e 1916, e 1916 e 1928 — e governaram-na durante um período em que as universidades lutaram para ter lugar próprio, não só na mente da sociedade portuguesa, mas no conjunto das instituições de ensino superior. Simultaneamente, a sua relação com o poder político estava a ser construída, embora nem sempre pacificamente. Neste contexto, a ideia inclusiva de universidade que partilhavam, advogando a integração do IST na UL, foi uma aliança falhada que comprometeu a criação de um ‘bloco hegemónico’ composto por cientistas, médicos e engenheiros. Apesar de terem sido formados em engenharia, os três reitores-cientistas da República rejeitavam a oposição invocada pelos engenheiros entre ‘ensino especulativo’, representado pelo FCUL e ‘espírito técnico’, característico dos engenheiros e do IST (Simões et al, 2013).

Os mesmos reitores consideravam vital a articulação das dimensões humanísticas, técnicas e científicas da educação superior, pois só ela conseguiria transformar as universidades em agentes de desenvolvimento económico e social. Todos concordaram que, além de oferecerem uma educação científica propedêutica à engenharia, à medicina, e à farmácia, as faculdades de ciências deveriam formar bacharéis em ciências e não somente nas suas aplicações e caracterizar-se pelo papel fundamental atribuído à investigação científica.

A busca de uma nova identidade institucional passava, necessariamente, por instalações próprias. A ausência de um espaço unificado para a UL saldou-se num prejuízo que ensombrou os seus primeiros 50 anos de existência, pela dificuldade em construir um esprit de corps institucional; era como se a cidade e a República não tivessem espaço suficiente para a acomodar. Parte da missão da UL consistiu, também, em associar-se com o movimento de educação de adultos e o estabelecimento de relações com instituições como a Universidade Livre. A associação de intelectuais de diversos domínios e instituições desenhadas para intervir na ‘sociedade civil’ e levar o conhecimento e a ciência às massas, reflete o papel decisivo das estruturas educacionais na criação de hegemonia, um processo no qual a função político- social dos intelectuais era, em grande medida, a de ‘vendedores de culturas que competiam entre si’ (Bates, 1975).

Os reitores-cientistas do Estado Novo

Enquanto os reitores da Primeira República foram militares tornados cientistas, durante a ditadura, somente três reitores provieram da FCUL, mostrando que a escolha dos mesmos se baseou em alianças políticas que privilegiaram os professores da Faculdade de Direito. Estes três reitores foram Victor Hugo Duarte de Lemos (1956-1959), José Sarmento de Vasconcelos

e Castro (1965-1969) e Fernando Carvalho Barreira (1969-1873). O primeiro era engenheiro militar de formação inicial, tornado matemático, tendo o seu mandato decorrido entre 1956 e 1959; o segundo era engenheiro civil, também formado em química na Universidade do Porto, foi reitor entre 1965 e 1969, membro da União Nacional e ocupou diversos cargos de política científica, considerando a investigação central à atividade universitária e favorecendo a existência de ensino superior nas colónias; finalmente, o terceiro formou-se em química na