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Atualmente os transtornos mentais acometem milhares de pessoas. A dependência química está entre os transtornos mentais que mais prevalecem nos últimos anos. Diariamente, observamos o impacto que a droga causa na saúde do usuário e observamos o quanto o trabalho interdisciplinar é importante em seu tratamento. A Educação Física tem papel fundamental na reabilitação das pessoas com dependência, pois consegue, por meio da prática esportiva, recuperar a qualidade de vida destruída com o uso da droga. O exercício físico contribui de forma direta na recuperação da qualidade de vida dos dependentes químicos. Diante disso, novos estudos são necessários para evidenciar quais ferramentas são primordiais no tratamento, visando a recuperação dos aspectos físicos, cognitivos e emocionais dessas pessoas. É por isso que o objetivo deste estudo verificou os efeitos terapêuticos da prática do EF multicomponente na “fissura” da cocaína e crack e nos aspectos cognitivos e emocionais de indivíduos dependentes de cocaína e crack em regime de internação hospitalar.

É sabido que o exercício físico pode influenciar o ser humano em diversos aspectos, sejam fisiológicos, psicológicos, sociais e/ou econômicos e que sua prática regular promove inúmeros benefícios para a saúde (DE LIMA; DO CARMO, 2015). Porém, os esclarecimentos de como o exercício afeta esses aspectos, especialmente o aspecto psicológico, têm despertado interesse nesses últimos anos, principalmente quando se trata da DQ.

Embora exista uma ampla diversidade de situações, podemos observar que nos tempos de hoje uma parte da sociedade composta principalmente os estudiosos deste tema procuram esclarecer, após pesquisas e dados científicos, alguns novos conceitos, e entre estes, mostrar que a DQ é um transtorno mental (DSM-V, 2014). Isso é feito na tentativa de desmistificar e descontextualizar conceitos criados que acabaram tornando um estigma social nas questões das drogas.

Para nosso conhecimento, o presente estudo foi o primeiro a testar o efeito de um exercício físico multicomponente sobre aspectos emocionais e cognitivos de usuários de substâncias psicoativas. Observamos que o treinamento físico multicomponente parece ser eficaz na redução da fissura, mas isoladamente não teve efeito nas habilidades cognitivas. Também identificamos que jogos recreativos não sistemáticos podem estar associados a melhores habilidades cognitivas. Em relação à autoestima, os resultados mostraram que houve

uma melhora em ambos os grupos ao longo do estudo, porém não podemos atribuir tal melhora somente a prática do treinamento multicomponente ou aos jogos recreativos não sistemáticos, outros fatores podem ter contribuído para que essa melhora tenha acontecido.

Logo no início do estudo, a linha de base já apresentou diferença entre os grupos quanto à idade, tempo de uso de substâncias psicoativas e atividade física. Considerando que a amostra foi randomizada, essas diferenças podem ter ocorrido devido à heterogeneidade dos participantes nos dois grupos, visto que o tratamento para a DQ é para todos, desde que os participantes interessados estivessem dentro dos parâmetros dos critérios de inclusão. Podemos inferir que indivíduos mais velhos, sedentários e que usam substâncias psicoativas por mais tempo têm maior probabilidade de apresentar pior desempenho cognitivo, o que pode explicar as diferenças nos testes TMT-A e TMT-B na primeira avaliação.

O desejo de substâncias para as quais um indivíduo desenvolveu dependência é um dos sintomas mais perturbadores do vício, e é frequentemente relatado pelos pacientes que levam à recaída após um período de abstinência (TIFFANY; WRAY, 2012). Uma revisão recente mostrou que a atividade física protege contra a vulnerabilidade ao abuso de drogas (BARDO; COMPTON, 2015).

Considerando os resultados apresentados neste presente trabalho, a intervenção do exercício físico multicomponente apresentou diferença estatisticamente significativa apenas no GI com relação a fissura, enquanto que o GC não apresentou alteração.

Os efeitos do exercício físico multicomponente na fissura corroboram estudos anteriores (MIALICK, FRACASSO e SAHD, 2014; FERREIRA et al., 2017; WANG et al., 2019). Esse resultado pode estar relacionado ao mecanismo de ação do EF no cérebro e também a sentimentos de prazer, bem-estar (MIALICK, FRACASSO e SAHD, 2014) e redução dos sintomas de ansiedade (ASMUNDSON et al., 2013). Considerando que a pessoa usuária de drogas busca sensações prazerosas com o uso de substâncias psicoativas, o EF proporcionaria sensações parecidas de prazer e bem-estar proporcionada por essas substâncias. As propriedades de reforço positivo do exercício estariam associadas à capacidade de aumentar os níveis dos principais neurotransmissores envolvidos nas vias neurais do prazer, como endorfina e dopamina (DE MELLO et al., 2005).

Toda atividade prazerosa está diretamente relacionada ao sistema de recompensa cerebral, localizado no sistema límbico, que é o sistema responsável pelos sentimentos de prazer e bem-estar (RIBEIRO e LARANJEIRA, 2012). Todos os estímulos capazes de proporcionar prazer estimulam a liberação de dopamina pela área tegumentar ventral, que vai para o núcleo accumbens e para o córtex pré-frontal (RIBEIRO e LARANJEIRA, 2012).

No caso da cocaína e crack, o prazer relacionado ao uso ocorre devido à capacidade do mecanismo de bloquear as bombas de recaptação de dopamina no neurônio pré-sináptico, fazendo com que grande concentração de dopamina permaneça na fenda sináptica, promovendo maior sensação de prazer e bem-estar por um período maior de tempo (FIGLIE; BORDIN; LARANJEIRA, 2010). Segundo Robertson et al. (2016), o treinamento físico pode melhorar os déficits dopaminérgicos, explicando então, a reconquista das sensações de prazer e bem-estar. Além disso, o EF pode inibir o desejo e o comportamento de recaída, por meio da regulação hormonal e dos neurotransmissores (ZHAO, ZHOU e LIU, 2018).

Apenas um estudo foi no sentido contrário: Ellingsen et al. (2018) analisaram a viabilidade e os efeitos a curto prazo de três tipos de exercício (futebol, treinamento em circuito e caminhada) sobre os desejos de drogas e concluíram que não houve redução estatisticamente significativa no desejo de usar drogas.

Uma outra justificativa que poderia comprovar a redução da fissura após o treinamento físico seria o aumento no controle inibitório após o exercício. O controle inibitório é um componente central da função executiva e é definido como a capacidade de controlar a atenção, o comportamento e os pensamentos, e substituir a predisposição interna ou ignorar estímulos externos (DIAMOND, 2013). Os estudos de Yanagisawa et al. (2010) e Byun et al. (2014) com adultos saudáveis foram capazes de mostrar que o aumento do controle inibitório, após a prática de exercícios aeróbios de intensidade leve a moderada, está associado ao aumento da ativação do córtex pré-frontal e da área dorsolateral. Na mesma linha de pesquisa, Wang et al. (2019) observaram que exercícios físicos de intensidade moderada favorecem a inibição da fissura, reduzindo o desejo de consumir substâncias psicoativas em uma amostra de mulheres em internação compulsória. Nossos resultados corroboram esse achado, demonstrando que ao longo do estudo os participantes tiveram a média da percepção subjetiva de esforço na intensidade 5,4-6,9 (classificação: difícil; FOSTER et al., 2001). Tal achado comprova que um programa de exercícios físicos de média duração de execução de 1 minuto cada exercício é capaz de impactar na redução da fissura logo nas primeiras semanas de treinamento.

Assim, o EF, além de controlar aspectos emocionais, como a ansiedade, pode ter atuado em mecanismos neurais, diminuindo a fissura. Portanto, podemos dizer que o EF desempenha um papel importante na redução de danos e no aumento do tempo de abstinência (WANG et al., 2019).

Já é sabido que o uso crônico da droga pode causar danos irreversíveis em várias capacidades cognitivas como: atenção, memória, funções executivas, dentre outras (DE

LEÓN et al., 2009). Os resultados sobre o desempenho cognitivo devem ser interpretados com parcimônia, pois em alguns resultados os mesmos divergem da literatura (ABED et al., 2018; FERREIRA et al., 2017).

Embora as atividades recreativas, realizadas pelo GC, tenham sido mais efetivas em comparação ao EF multicomponente, enfatizamos que os grupos não eram equivalentes. O GC foi mais suscetível à melhora cognitiva, pois apresentou desempenho cognitivo menor que o GI no início. Como possíveis mecanismos, fatores como interação social e desempenho de diferentes atividades podem ter estimulado aspectos emocionais e novas conexões neurais, aumentando a reserva cognitiva e resultando em melhores desempenhos cognitivos. Já o GI apresentou desempenho cognitivo superior ao grupo controle no início do estudo, sendo menos sensível às variações cognitivas. Além disso, o GI era fisicamente ativo, o que pode ter reduzido o efeito do treinamento físico.

Os resultados deste estudo mostraram que, com relação à atenção seletiva e alternada, rastreio visual complexo e destreza motora - habilidades exigidas no teste de trilhas (A) - somente o GC melhorou seu desempenho cognitivo ao longo do estudo. Tal resultado difere de dois estudos recentes. Ferreira et al. (2017) mostraram que a prática esportiva melhora significativamente a capacidade de atenção concentrada, memória de curto prazo e desempenho no planejamento de ações e Abed et al. (2018) observaram evolução positiva no grupo intervenção e negativa no grupo de controle no teste de trilhas (A) no processo atencional.

Da mesma maneira, com relação aos processos executivos (capacidade inibitória e a alternância cognitiva) que são exigidos no teste de trilhas (B), novamente somente o GC obteve melhora significativa, que contradiz novamente com os dados obtidos no estudo de Abed et al. (2018). Segundo os autores, a participação no Grupo Terapêutico através de jogos não impactou na função cognitiva flexibilidade no teste de trilhas (B), tendo diferença importante no escore inicial, quando comparados os dois grupos no teste de trilhas (B). Novamente, Ferreira et al. (2017) mostraram que estas habilidades também melhoram com a prática do exercício físico.

No teste MMEE, que tem por objetivo rastrear as funções cognitivas, e no teste RAVLT, que avalia a aprendizagem auditivo-verbal, também houve melhora no desempenho dos dois grupos durante o estudo.

Chama-nos atenção o fato de que muito se tem falado sobre os benefícios agudos e crônicos do exercício físico sobre o desempenho cognitivo. Agudamente, tais efeitos devem- se, provavelmente, ao aumento do fluxo sanguíneo cerebral (MEREGE FILHO et al., 2014).

Paralelamente, há evidências de que o EF pode induzir adaptações estruturais e funcionais (plasticidade) em várias áreas motoras que culminariam com melhoras cognitivas (ROCHA et al., 2014).

Outros estudos também evidenciam esta melhora. Etnier e Chang (2009) mostraram que indivíduos que praticam regularmente EF apresentam melhor desempenho cognitivo, quando comparados às pessoas sedentárias. Jovens fisicamente ativos tendem a presentar maior ativação em áreas cerebrais específicas, sugerindo a existência de maior rede de estruturas neurais em diversas regiões cerebrais, tais como lóbulo frontal, córtex cingulado anterior, lóbulo infra temporal e córtex parietal, em decorrência da atividade física regular

(HILLMAN, ERICKSON e KRAMER, 2008), obtendo assim, melhor desempenho cognitivo.

Os dados deste estudo corroboram as informações acima citadas. O GI, que realizou treinamento físico regular, apresentou melhora significativa no desempenho cognitivo, mantendo-se estável durante todo o estudo. Importante salientar um fato, pois, mesmo com o uso de SPA, o GI era mais jovem e mais ativo, apresentando um desempenho cognitivo inicial melhor do que o GC, que era um grupo mais velho e sedentário.

Porém não podemos relacionar a melhora do desempenho cognitivo apenas ao GC, visto que o GI também obteve melhora significativa durante o estudo.

Com relação à autoestima, os resultados comprovaram que tanto o grupo intervenção quanto o controle melhoraram sua autoestima durante o estudo. O estudo de Ellingsen et al. (2018) difere dos nossos resultados, demonstrando que a prática esportiva (futebol, treinamento em circuito e caminhada) não foi estatisticamente significativa para o aumento da autoestima. No entanto, os escores médios mudaram para a direção positiva do pré ao pós- exercício nos três grupos, estando de acordo com nosso estudo. Portanto, como ferramenta adjuvante na recuperação da autoestima das pessoas com dependência, o EF tem contribuído de forma positiva para elevar a autoestima (BARBANTI, 2012). Então, dizer que a melhora da autoestima está relacionada apenas à prática esportiva está equivocada, quando falamos no tratamento da DQ. A interação social, a formação de círculos de amizade e uma rede de apoio também são possíveis mecanismos associados à autoestima. Essas hipóteses devem ser testadas em estudos futuros.

Fica evidente que pesquisas na área da saúde mental são cada vez mais necessárias e importantes devido à grande demanda populacional que sofre com os transtornos mentais. Visto que inúmeros estudos revelam a importância da prática do EF no tratamento dos transtornos mentais, este estudo em especial foi o primeiro em analisar criticamente o efeito

do EF multicomponente estruturado e sua relação com a fissura e os aspectos cognitivos e emocionais em pessoas com DQ de crack em regime de internação hospitalar.

Os resultados deste estudo comprovam a importância do papel do profissional de Educação Física no contexto interdisciplinar e, principalmente, a importância da Educação Física no tratamento e no processo de recuperação da DQ em todos os aspectos, sejam eles físicos, cognitivos e emocionais. A busca por ajuda é a esperança de dias melhores. Quando a pessoa com DQ chega para a internação, a impressão, muitas vezes, é de desleixo, desnutrição, desmotivação, baixa autoestima, vergonha, triste e com sentimento de incapacidade. Após o início do tratamento interdisciplinar e o começo das sessões de treinamento e da prática dos jogos recreativos, conseguimos perceber a melhora dessa pessoa em todos os aspectos acima citados. Acreditamos que essa é a maior gratificação em realizar um estudo como este. Temos a certeza que nosso trabalho rende frutos e recupera vidas!

Importante salientar que as limitações deste estudo estão relacionadas ao alto número de perdas dos participantes, por conta dos pedidos de saídas do tratamento. Se todos os participantes iniciais ficassem até o final, a amostra seria maior e, assim, outras análises poderiam ser feitas. Outas limitações como: o não pareamento dos grupos produzindo possíveis vieses, que dificultam as interpretações dos dados; o contexto do EF na internação, que limita a extrapolação para outros contextos.

Por fim, consideramos de extrema importância na grade curricular de Graduação de Educação Física o estágio em hospitais, ambulatórios ou qualquer outro tipo de serviço de saúde mental para que o graduando possa ter vivência no tema e, assim, ficar mais capacitado no lidar com os mais diferentes tipos de pessoas e de patologias.

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