• Nenhum resultado encontrado

Neste estudo, enfocamos a fisiopatologia das hemocromatoses hereditárias à luz do conhecimento atual de que a deficiência de hepcidina causada pelas mutações genéticas implicadas nessas doenças leva a hiperexpressão de ferroportina em determinados tipos celulares, favorecendo, por exemplo, a absorção descontrolada de ferro da dieta, que é um dos aspectos fundamentais da fisiopatologia da sobrecarga de ferro nas HH30,31,32. Assim, foi de nosso interesse

avaliar a expressão de ferroportina em células do sangue periférico em amostras humanas.

Apresentamos aqui, pela primeira vez, um teste utilizando citometria de fluxo, que permitiu avaliação da expressão da proteína Fpn na superfície de células circulantes no sangue periférico. A Fpn é o único exportador de ferro em mamíferos e o receptor da principal proteína controladora do tráfego de ferro através das membranas das células envolvidas no uso, estocagem e reciclagem de ferro, e sua expressão é regulada de forma pós-transcricional26, 27, de modo que a avaliação da

expressão proteica é mais indicativa da atividade exportadora de ferro celular do que, por exemplo, a quantificação da transcrição do gene por reação em cadeia da polimerase em tempo real (real time PCR) para quantificação relativa de RNA mensageiro.

A expressão de Fpn é sabidamente maior em células como enterócitos duodenais e hepatócitos, mas ela já foi relatada em células de outros órgãos, tais como baço, ovários e placenta24,56. Sua expressão em células do sangue periférico

já havia sido notada através de técnicas como real time PCR e Western blotting, 57, 58, e em nosso estudo, pudemos demonstrar sua expressão particularmente em

monócitos e nos linfócitos B com o uso de citometria de fluxo.

Foi investigada a hipótese de que a expressão de Fpn é significativamente maior em células de pacientes com diagnóstico clínico e/ou laboratorial de hemocromatoses, uma vez que a base fisiopatológica dessas doenças é o aumento descontrolado da absorção de ferro por falta do bloqueio da Fpn pela hepcidina. A expressão de Fpn monocítica, quando medida através de valores absolutos de fluorescência (IMF) não demonstrou diferenças significativas entre os grupos de pacientes e controles, embora fosse claro que uma parte dos

pacientes tem uma expressão aumentada. Também não observamos uma diferença estatisticamente significativa quando corrigimos a IMF obtida em monócitos pela expressão de outras proteínas endógenas dos leucócitos, tais como o CD45. Isso sugere que não há uma variação de expressão significativa entre amostras em termos de proteínas endógenas que poderia ajudar a corrigir a análise da expressão de Fpn.

Considerando que algum grau de autofluorescência de cada célula é esperado em ensaios de citometria que utilizam combinação de anticorpos primários e secundários, a análise utilizando os valores relativos de aumento da IMF monocítica em relação à expressão basal de células com baixa expressão de Fpn, tais como os linfócitos T, permitiu analisar algumas diferenças. Encontramos uma expressão relativa aumentada de Fpn em monócitos de um subgrupo de pacientes com saturação de transferrina acima de 50% em comparação com controles normais. Isso significa que há uma associação entre a expressão relativa de Fpn e a saturação de ferro do plasma, que é o meio em que os monócitos circulam. A análise por curvas ROC demonstrou que uma IMFr acima de 39.07 tem uma especificidade de 91.18% para a presença de uma saturação de transferrina elevada, isto é, em uma população com suspeita clínica de HH, uma elevada expressão de Fpn foi altamente específica para um excesso de ferro ligado a transferrina circulante, ainda que não muito sensível. É evidente que a medida da saturação de transferrina é um exame disponível clinicamente nos laboratórios clínicos, de modo que a citometria de fluxo não seria utilizada como preditora dos valores de TSAT. No entanto, isso coloca em questão qual a relação entre essas duas anormalidades.

Nossos dados são insuficientes para determinar causalidade, ou seja, não é possível determinar se o aumento da Fpn na superfície dos monócitos é causa ou consequência do aumento do ferro ligado a transferrina. No entanto, sua coexistência torna plausível que, quanto maior a expressão de Fpn na superfície dos monócitos, maior é a exportação de ferro do meio intra para o extracelular, de modo que o aumento da expressão seria causa da alta saturação de transferrina, e sugere que baixos níveis de hepcidina estão relacionados ao aumento de saturação de transferrina. Isso também apoia a ideia de que a expressão de Fpn nos monócitos acompanha a expressão em níveis sistêmicos de hepcidina e de Fpn em órgãos que estocam ferro (tais como o fígado) e que absorvem ferro (tais como o duodeno).

Além disso, altos níveis de saturação de transferrina se associam a excesso de ferro corporal. Desse modo, em pacientes sem hemocromatose, é esperado que a transcrição de hepcidina seja estimulada pelo ferro ligado a transferrina no início da via de sinalização dependente de BMP-SMAD, e esse aumento de hepcidina deve suprimir a expressão de Fpn, resultando em redução de sua apresentação na membrana da célula. Assim, a associação paradoxal entre altos níveis de saturação de transferrina com alta expressão de Fpn monocítica favorece o diagnóstico de HH, pois é uma situação em que o excesso de ferro não é capaz de gerar internalização e degradação da Fpn.

Uma limitação de nosso estudo foi não ter medido níveis circulantes de hepcidina, que poderiam ser utilizados para apoiar a associação entre baixos níveis de hepcidina, maior expressão de ferroportina e alta saturação de transferrina. Outro ponto que deve ser mencionado é a significativa diferença demográfica entre os grupos de controles e pacientes, visto que o grupo controle apresentou uma média de idade de 33 anos e foi formado por 53% de mulheres, enquanto o grupo de pacientes possuía média de idade de 57 anos e apenas 16% de mulheres.

Baseado no achado de hiperexpressão relativa de Fpn em conjunto com alta saturação de transferrina, hipotetizamos que haveria diferença na expressão de Fpn entre pacientes com e sem mutações do gene HFE, ou mesmo se comparados com o grupo controle. Entretanto, não foram encontradas diferenças significativas de IMF absoluta de Fpn ou IMFr. Várias limitações desse estudo podem ajudar a explicar esses resultados, e incluem: pequeno número de pacientes com cada genótipo específico, dificultando a comparação entre homozigotos para cada mutação HFE, heterozigotos duplos, e heterozigotos simples; penetrância incompleta da mutação HFE, de modo que pacientes com o mesmo genótipo podem ter fenótipo de gravidade diferente, que se manifestaria com diferenças na expressão de Fpn; baixa sensibilidade do método para detectar variações mais sutis na expressão de Fpn; diferenças na expressão da Fpn secundárias ao tratamento com sangrias, visto que a maioria dos pacientes com mutação do HFE estavam submetidos ao tratamento, não havendo amostras de pacientes virgens de tratamento para comparação.

Os dados obtidos foram apresentados em maio de 2019, em formato de pôster, no 8th Congress of the International Bioiron Society em Heidelberg, na

Alemanha. Eles representam a base para uma aplicação inovadora de citometria de fluxo em amostras clínicas de pacientes com HH, confirmam que a expressão de Fpn é mensurável utilizando células de sangue periférico e pode ser explorada no futuro para uso diagnóstico ou monitoramento terapêutico dessas doenças, e de outras em que a expressão de ferroportina for anormal.

Documentos relacionados