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Os dados apresentados confirmam a nossa hipótese incial, pois evidenciam que não há avanço universalizado na resolução da problemática da equidade de gênero nas arenas de poder, o racismo da intelligentsia está presente no campo científico brasileiro. Se por um lado as mulheres expandiram sua participação no mercado de trabalho da produção de conhecimento, por outro, suas atividades continuam submetidas aos interesses dos grupos dominantes que são, em sua maioria, formados e liderados por homens. O “efeito tesoura” descrito nos 4 (quatro) artigos supra apresentados é uma das representações mais óbvias dessa perniciosa realidade.

Iniciamos a execução do projeto analisando uma das 49 áreas de conhecimento da CAPES, a Física, um campo importante da ciência que, segundo alguns autores, por alavancar os avanços tecnológicos contribui significativamente para a definição da geopolítica mundial configurando-se, portanto, um centro de poder (CHAVES, 2007). Comparamos os dados atuais do corpo discente e docente da Física brasileira com a biografia de Emmy Nöther. Os achados dessas primeiras análises indicaram a baixa representatividade das mulheres no campo em estudo, particularmente nos centros de decisão. Este cenário, nos permite inferir que a experenciação de Nöther de um ambiente profundamente misógino ainda é vivenciado, nos dias atuais, pelas mulheres que optam por transgredir os estereótipos e enveredam pelas Ciências Físicas.

Brilhante cientista do início do século XX, mentora de teoremas que inauguraram a álgebra moderna, Nöther não teve, e ainda não tem, o devido reconhecimento de sua envergadura acadêmica. A negação do crédito do teorema seminal a uma mulher serve como exemplo de roubo do capital cultural e de poder de todas as mulheres que almejam realizar ciência e ilustra o funcionamento das estruturas que mantém a pouca inserção delas em algumas das áreas mais valorizadas do campo.

Esse momento inicial da tese, também foi importante por ser o contato introdutório com as amplas bases de dados que seriam utilizadas nas fases subsequentes, e por ter possibilitado as primeiras reflexões utilizando a metodologia de Thompson (1981) e os conceitos sociológicos abordados nas discussões.

Na segunda fase, a fim de verificar a presença feminina em outras disciplinas e em outras etapas da carreira científica, levantamos informações de parcelas consideráveis do SNPG e do SNCTI brasileiros, pelo período mínimo de 15 anos, em alguns recortes, desde a inauguração das instituições estudadas. Essa atividade possibilitou a construção de uma robusta base de dados, com aproximadamente 4 milhões de linhas exclusivas, e como uma mesma observação foi avaliada sob diferentes óticas, ao somar a população representada em cada gráfico discutido no segundo e n o q u a r t o artigo da tese, o quantitativo torna-se ainda maior, quase 8 milhões de linhas totais. O acesso a esses dados trouxe muitos desafios no que tange a limpeza e organização das bases, por outro lado, refletiu na possibilidade de apresentarmos as populações de cada grupo escolhido. De maneira que, pode-se assumir que foi feita uma fotografia da realidade.

Os resultados dessa fase complementaram a anterior, pois apontaram que a exclusão horizontal permeia toda a área do conhecimento nomeada pela CAPES como Ciências Exatas e da Terra, bem como as Engenharias, e não somente a Física. Para essa confirmação, basta verificar a porcentagem de mulheres em todas as populações estudadas e seus subgrupos: discente, docentes, bolsistas, coordenadores etc. Sendo necessário ainda destacar que, em algumas análises, especificamente nessas áreas, a presença feminina se manteve estável ou era maior no início da série temporal, como é o caso dos contemplados com bolsas da CAPES tanto no país como no exterior, e os coordenadores de área. Refutando mais uma vez o discurso otimista de aumento generalizado da presença feminina no campo.

Adicionalmente, foi evidenciado que a exclusão vertical das mulheres na carreira científica, ao menos no Brasil, é uma indiscutível realidade. O quarto artigo intitulado “Gender in Brazilian science: from equality to Scissors”, que apresenta a proporção de mulheres e homens nas etapas da carreira, ordenada do nível inicial para os mais altos postos, descortina o campo da ciência nacional e não deixa quaisquer dúvidas de que, a esfera de decisão é um ambiente no qual as mulheres não são bem-vindas, definitivamente, um “clube da bolinha”.

Abreu (2020)14 cita em uma entrevista cedida ao GT ASCAPES MULHERES, que a

literatura tem indicado que o rush hour é vivenciado de forma muito diferente por homens e

14 ABREU, A. Entrevista sobre o Dia Internacional das Mulheres. Entrevistador: Grupo de Trabalho para

por mulheres, e isso seria um dos principais fatores explicadores do efeito tesoura. Retomamos nesse ponto um dos conceitos inicialmente apresentados na Tese, é na diferença de possibilidades do rush hour15 que se faz presente a violência simbólica, quando as condições para o desempenho de uma dada atividade a torna inexequível ou muito mais difícil para mulheres que para homens, unicamente pela assimilação de regras sociais. Sem que precise estar explícito, pela imposição de barreiras sutis, direta ou indiretamente ligadas ao espaço profissional, as mulheres são desestimuladas a permanecer e/ou progredir num campo que exige certos padrões de dedicação e disponibilidade.

Finalmente identificamos se as estruturas das organizações que fazem a gestão do sistema de ciência e tecnologia estão infectadas com o mesmo padrão de comportamento avesso à diversidade. Enquanto as duas primeiras tratavam com mais ênfase da esfera acadêmica, esta mobilizou os olhares para o universo burocrático. Neste ponto, faz-se mister explanar um pouco as responsabilidades dessa instância. As decisões tomadas no âmbito das agências impactam na execução dos investimentos governamentais, seja por concessão de bolsa ou financiamento de projetos. Os indivíduos que ocupam as posições de comando podem incluir ou excluir temas, iniciativas e editais, e aqueles que as executam, os burocratas “chão de fábrica”, ao fazer os pequenos ajustes de ponta, também co-definem essas ações, facilitando ou dificultando as implementações. Oliveira (2012) discute bem essa complexa relação do burocrata e o sucesso da política pública. Por ora, importa recordar que são players fundamentais porque a Pós- Graduação e a Ciência e Tecnologia compõe políticas, que no caso brasileiro, são em sua maioria públicas, daí a importância de compreender a dinâmica dessa microssociedade.

Nesta avaliação, como já detalhadamente apresentada no 3º artigo, foram observadas as proporções de mulheres no corpo técnico e gerencial da CAPES e do CNPq nos últimos 20 anos. Na CAPES, foi observada uma drástica diminuição da presença feminina, tanto no quantitativo total dos servidores, quanto na ocupação dos cargos de assessoria e coordenação. Essa queda, fez com que, ao final da série analisada, CAPES e CNPq, que manteve razoavelmente estável a porcentagem de mulheres entre 1999 e 2018, tivessem mais ou menos a mesma proporção de

15 A hora do rush é entendida como a fase da vida em que as demandas da carreira e as demandas domésticas são

altas, a tal ponto que se tornam concorrentes, impondo encruzilhadas, particularmente às mulheres, que têm de constantemente fazer escolhas relacionadas a ter filhos, por exemplo, ou desenvolver a carreira.

analistas e ocupantes de posições DAS do sexo feminino. A variação de proporções na primeira e a estabilidade da segunda, pode estar relacionada com a dinâmica de ganho e perdas de capitais observados nessas instituições nas últimas décadas. Os capitais da CAPES, econômico e de poder, foram multiplicados nos últimos anos, enquanto os do CNPq sofreram uma queda vertiginosa.

Não obstante o CNPq também tenha participado do programa de internacionalização Ciência sem Fronteiras (CsF), que recebeu um investimento vultuoso do governo federal, ao longo da série histórica, houve perda real de seu orçamento. Em 2002, o orçamento total foi de aproximadamente R$ 630 milhões16, em 2018, esse valor foi de R$ 984 milhões17. Embora nominalmente superior, ao deflacionar o valor de 2002 pelo índice INPC18(índice nacional de preço ao consumidor), observa-se que o orçamento de 2002, em 2018, era o equivalente a R$ 1,6 milhões, ou seja, houve uma perda real de 38% do investimento da agência. Além disso, houve perda em seu quadro de servidores, no início da série histórica, a agência do MCTIC acolhia em seu quadro de pessoal 1185 servidores, no último ano analisado, esse valor foi reduzido a 428. Colaborando para uma situação de retração da instituição, desde os anos 80 novos centros de tomada de decisão e financiamento do SNCTI foram criados, incluindo um Ministério19, fato que lentamente modificou os centros de poder do sistema. O MCTIC, a partir de sua criação, em 1985, iniciou um processo de incorporação e centralização do planejamento e da gestão das políticas nacionais da área, responsabilidades que, ao menos em parte, pertenciam ao escopo do CNPq. Pode-se afirmar que, em sua totalidade, o SNCTI também teve seus capitais aumentados no período estudado, no entanto, os mecanismos pelos quais isso aconteceu, acarretou o esvaziamento do Conselho que passou a ter suas funções e parte de seu orçamento capilarizados em diversos novos órgãos e instituições governamentais.

Em movimento oposto ao do CNPq, a CAPES ampliou suas atribuições, dobrou o número de servidores e multiplicou seu orçamento. Para ilustrar, em 2002, a Fundação executou

16 Disponível para consulta em: http://centrodememoria.cnpq.br/fomento99.html

17 Disponível para consulta em: http://www.portaltransparencia.gov.br/orgaos/20501?ano=2018 18 https://www.ibge.gov.br/estatisticas/economicas/precos-e-custos/9256-indice-nacional-de-precos-ao-

consumidor-amplo.html?=&t=series-historicas

19 O Ministério da Ciência e Tecnologia foi criado pelo Decreto nº 91.146 de 15 de março de 1985. Em 2016, por

meio da Lei nº 13.341, de 29 de setembro de 2016, ele teve as atribuições competentes ao Ministério das Comunicações incorporado em sua estrutura

aproximadamente R$500 milhões20, entre concessão de bolsas e financiamento de projetos de pesquisa, em 2018 esse quantitativo foi de R$ 3,2 bilhões21. Utilizando o mesmo índice de deflacionamento (INPC), em termos reais, o crescimento foi de R$ 1,2 bilhões para R$ 3,2, um aumento de 158%. Essa ampliação é ainda mais relevante se considerarmos que, em 2015, quando o CsF atingiu seu ponto mais alto, a execução orçamentária da instituição chegou a R$ 6 bilhões22. A própria expansão acelerada do Sistema Nacional de Pós-Graduação contribuiu para esse contexto favorável, afinal a CAPES é a avaliadora de todos os cursos stricto sensu do país, e uma de suas principais fontes de financiamento. Se em 1999, era preciso fomentar 500 cursos de pós-graduação e a formação de cerca de mil doutores por ano, em 2018, a rede de programas de mestrado e doutorado, somavam nada menos que 5.267 cursos, responsáveis pela formação de mais de 10 mil doutores naquele ano.

Faz-se importante também esclarecer uma questão interna, o perfil dos servidores da CAPES. Até 1996, a força de trabalho da Fundação era essencialmente provida por outros órgãos, particularmente vinculada ao Ministério da Educação23. A equipe composta por maioria feminina, no início da série temporal, pode ser explicada pelo fato de o campo da Educação ser historicamente constituído pela maioria de mulheres. A partir de 1997, a agência começou a selecionar seus servidores por meio de concursos públicos específicos para a carreira de Ciência e Tecnologia24 e assim, aos poucos, o quadro anterior foi sendo substituindo. Considerando o cenário apresentado, é possível verificar que a “masculinização” da CAPES ocorreu concomitante à aproximação da instituição do setor de Ciência e Tecnologia, e a ampliação dos capitais institucionais, notadamente o econômico e o de poder. Dessa etapa, pode-se inferir que, enquanto uma determinada atividade é somente executora, as mulheres podem ocupá-la e até são encorajadas a dominá-la, mas a partir do momento que se torna um espaço importante, influente e de acúmulo de poder, o glass ceiling é estabelecido e elas são excluídas por mecanismos invisíveis.

20 https://www.capes.gov.br/images/stories/download/bolsas/Infocapes10_4_2002.pdf 21 http://www.portaltransparencia.gov.br/orgaos/26291?ano=2018

22 https://www.capes.gov.br/orcamento-evolucao-em-reais

23 Informações complementadas pelas entrevistas consolidadas no documento CAPES, 50 anos disponível em:

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=24633

Por ser um estudo que avalia um período recente, permite identificar que os processos de exclusão vertical são mecanismos operantes na atualidade, que precisam ter suas origens e dinâmicas mais bem esclarecidos para que o ciclo de perpetuação seja inibido. Durantes os seus 69 anos de existência, a CAPES teve somente 3 (três) mulheres ocupando a Presidência, a Sra. Suzana Gonçalves (1964 a 1966), a Profa. Eunice Ribeiro Durham25 (1990 - 1992 e 1995) e a

Profa. Maria Andrea Loyola (1992 a 1994). Nenhuma dessas lideranças femininas ocorreram nos últimos 25 anos, indicando que não avanço permanente na questão da equidade nas esferas de poder. O CNPq, por sua vez, jamais teve uma Presidenta, as mulheres tiveram sua expressão máxima de representatividade por meio de duas vice-presidentas, a Profa. Alice Rangel de Paiva Abreu26 (1999 a 2002) e a Profa. Wrana Panizzi27 (2007 a 2011).

Nesse contexto enfatiza-se a necessidade de aprofundar as discussões que, por vezes, findam por estabelecer certa perspectiva promissora de equidade de gênero nas sociedades, já que é observado crescimento da participação feminina em alguns segmentos. É indispensável diferenciar causas primárias de seus efeitos. Há certa superestimação ao observar o aumento significativo da participação das mulheres níveis mais iniciais das atividades científicas. Mas essa dinâmica não surpreende e nem contraria o modelo androcêntrico posto, na verdade é até esperada, pois quando há aumento expressivo da demanda da força de trabalho, as mulheres são convocadas. Este fenômeno observado no campo científico guarda similaridade com outros momentos históricos. Como, por exemplo, a dominação feminina no início das Ciências da Computação, na participação quase universalizada das mulheres no mercado de trabalho no período da Segunda Guerra, e mesmo a presença majoritária na CAPES, antes de sua expansão. Sob essa perspectiva, de fato, a massificação de qualquer trabalho, no caso estudado, do fazer ciência, abre-se espaços para a participação feminina em uma escala ampla. No entanto, como também foi observado nos dados apresentados, isto não é necessariamente permanente e nem implica no acréscimo da participação de mulheres nas esferas de decisão das políticas. O forte resultado a sustentar esta conclusão foi apresentado ao constatar-se que a participação de mulheres nas altas posições é praticamente nula e sem perspectiva de mudanças.

25 Entre os mandatos de 1991 e 1992 o Professor Sandoval Carneiro Júnior assumiu a presidência da CAPES. O

histórico dos presidentes da instituição pode estar disponível em: https://www.capes.gov.br/historia-e-missao

26 Informações obtidas pelo currículo lattes, disponível em: http://lattes.cnpq.br/9551097383922106 27 Informações obtidas pelo currículo lattes, disponível em: http://lattes.cnpq.br/ 5859704174955618

Por esse motivo, ao desenvolver os trabalhos que denunciam políticas insidiosas deve- se preocupar não somente em apontar a demandar de alteração da política em si, que já representa um efeito, mas a urgência de mudar a estrutura do grupo que as define, as causas primárias. Lerback e Brooks (2017) apontam que o problema de gênero em ciência se deve a não participação expressiva de mulheres em atividades consideradas fundamentais ao desenvolvimento profissional científico, como por exemplo, na revisão de revistas científicas, na proferição de palestras nos congressos, na indicação a prêmios, entre outros. Mas essa é uma abordagem secundária, que pode gerar a falsa tendência de equidade quando quantitativamente a presença feminina é aumentada. As políticas científicas são traçadas, delineadas e consumadas por grupos compostos em sua maioria por homens, e esse é o ponto central, porque esses delineadores de curso irão imprimir em toda a cadeia de ações a marca da androcentria, desencadeando, de cima para baixo, a discriminação da intelligentsia. Quem define o revisor da revista, quem financia os congressos e os prêmios? Sem a alteração da estrutura, a melhora ou piora do quesito de equidade de gênero fica “à mercê” das necessidades de mercado.

E por isso, para cumprir seu objetivo, o processo de exclusão precisa ser horizontal e vertical. Desde os níveis mais iniciais, como de graduação e pós-graduação, para aquelas áreas que se ligam a produção do conhecimento aplicado à tecnologia e mais facilmente ao poder, como a física e engenharia, a porcentagem feminina já é reduzida. E para aumentar a eficiência, essa exclusão horizontal é complementada pelo glass ceiling, que não permite a ascensão às posições hierárquicas mais influentes. No caso acadêmico, essas altas posições determinam as regras do desenvolvimento e fomento do campo. No caso brasileiro, a título de exemplificação, basta observar as posições de Coordenadores de Área da CAPES, Assessores dos CAs do CNPq e Presidentes dessas agências. Diante disso, conclui-se que, sem a mudança dos gestores das políticas, a conclamada equidade de gêneros em ciências não poderá ocorrer.

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