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Disposições Gerais sobre a Responsabilização de Pessoas Jurídicas Prevista na

3 A LEI Nº 12.846/201 E O NOVO MODELO SANCIONADOR DE COMBATE À

3.3 Disposições Gerais sobre a Responsabilização de Pessoas Jurídicas Prevista na

A Lei Anticorrupção estabelece a responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública nacional e estrangeira, que se aplicam às sociedades empresárias e às sociedades simples, personificadas ou não, independentemente da forma de organização ou

modelo societário adotado, bem como quaisquer fundações, associações de entidades ou pessoas, ou sociedades estrangeiras, que tenham sede, filial ou representação no território brasileiro, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente.

O ponto que merece destaque já no primeiro artigo da Lei nº 12.846/2013 é o seu alcance normativo. Como visto acima, a referida lei é fruto de obrigações que o Brasil assumiu no cenário internacional ao aderir a Convenção da OCDE sobre suborno transnacional, a qual exigia que os Estados-Partes penalizassem pessoas jurídicas que pagassem propina a funcionários públicos estrangeiros. Ocorre que a Lei nº 12.846/2013 contemplou não só o cometimento de atos de corrupção contra administrações públicas estrangeiras, mas também aqueles perpetrados contra a Administração Pública nacional, indo, assim, além do que havia pactuado perante a OCDE.

Além de estabelecer a responsabilização objetiva das pessoas jurídicas, o artigo 2º da Lei nº 12.846/2013 prescreve ainda como condição para essa forma de responsabilização dos entes privados a comprovação de que os atos lesivos à Administração Pública tenham sido praticados em seu interesse ou benefício, exclusivamente ou não. Isso quer dizer que a pessoa jurídica infratora responderá pelos delitos a ela atribuídos sem que precise se comprovar a culpa ou dolo das pessoas físicas que agiram por meio dela, bastando a comprovação do nexo de causalidade entre o fato ocorrido e o resultado obtido; ou seja, a responsabilização da pessoa jurídica independe da demonstração de autoria individualizada e de estados subjetivos de pessoas físicas.

Contudo, é preciso ressaltar a parte final do referido artigo 2º destaca que o ato lesivo a ser imputado a pessoa jurídica infratora precisa estar vinculado a um benefício ou interesse gerado em proveito desta. Tal comando afasta a possibilidade de imputação automática ou discricionária de responsabilidade ao ente privado pelo simples fato de figurar em uma relação, seja de cunho contratual ou não com a Administração Pública, uma vez que deve se comprovar que a prática lesiva a esta teve como fim beneficiar aquele ente, ainda que realizada apenas em seu interesse. Assim, trata-se de uma responsabilização objetiva com um requisito especial de observância compulsória pelo ente sancionador.

Tal condicionante deve também ser atendida no momento de imputação de responsabilidade às sociedades controladoras, controladas, coligadas ou

consorciadas, que, nos moldes do artigo 4º, § 2º, são solidariamente responsáveis pela prática dos atos previstos na lei, restringindo-se tal responsabilidade à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado.

Isso porque uma interpretação isolada e literal dessa disposição legal contida no artigo 4º levaria à conclusão de que, por exclusivo critério do órgão ou entidade da administração pública lesada, a exigibilidade das obrigações pelo pagamento da multa e pela reparação dos danos poderia recair livremente sobre quaisquer sociedades empresárias que tivessem entre si algum tipo de relação societária, sejam elas controladas/controladoras, coligada investidora/coligada investida ou consorciadas, bastando que uma delas tivesse incorrido em algum dos atos lesivos previstos no artigo 5º.

A título de exemplo, segundo uma formulação hermenêutica desse teor, uma holding – seja ela mista ou pura – que tivesse participação em dezenas de outras sociedades poderia responder integralmente – in solidum – por uma multa de alguns milhões de reais que fosse aplicada pela União a uma de suas coligadas em razão de esta ter pago, oferecido ou prometido propina a um servidor da Receita Federal para facilitar o desembaraço aduaneiro de uma mercadoria ou para emitir uma certidão negativa de tributos, ainda que tal favor ilícito obtido pela coligada não trouxesse nenhum benefício para a holding. Ficando ainda nesse exemplo, mas colocando agora a holding como a infratora, o cenário de extensão da responsabilidade solidária teria um alcance ainda maior, pois quaisquer uma das dezenas de coligadas que mantém relações societárias com o holding poderiam ser acionadas para cumprir na integralidade as obrigações de pagamento da multa e de reparação dos danos, independentemente de qualquer relação de interesse que tenham com o ato lesivo em que incorreu a holding.

Trata-se, sem dúvida, de uma elaboração interpretativa dessa solidariedade de obrigações que pode trazer enorme instabilidade negocial e de investimentos no universo das relações entre sociedades empresárias, sobretudo quando se depara com uma norma legal que lança mão de pesadas e milionárias multas como principal instrumento sancionador de repressão à corrupção. Contudo, o fato de se estar diante de uma situação de responsabilidade solidária legalmente prevista e, assim, legitimamente válida não afasta a necessidade de que tal hipótese seja interpretada de forma harmônica com os demais dispositivos da própria lei em que ela se

encontra prevista e, sobretudo, com a finalidade econômica e social que inspirou a criação jurídica da Lei Anticorrupção e dos seus institutos.

E é nesse sentido que ganha destaque o preceito contido na parte final do referido artigo 2º da Lei 12.846/2013. Este artigo – que pode ser considerado a pedra angular normativa da Lei Anticorrupção – vincula a responsabilização das pessoas jurídicas ao fato de que os atos lesivos por elas praticados tenham gerado algum benefício ou satisfeito algum interesse de tais pessoas jurídicas, seja de forma exclusiva para a infratora, seja de forma compartilhada entre ela e outros beneficiados ou interessados. A ocorrência de algum dos atos elencados no artigo 5º conjugado com a promoção de um benefício ou a satisfação de um interesse da pessoa jurídica a que se pretende imputar a ilicitude do ato constituem as condições de possibilidade para a incidência da esfera de responsabilização objetiva estabelecida pela Lei 12.846/2013.

Assim, por expressa construção normativa firmada pelo legislador, essa combinação “ato lesivo x benefícios/interesses” deve observada sempre que se almeje responsabilizar uma pessoa jurídica com base no sistema sancionador estabelecido pela Lei Anticorrupção, não sendo possível afastá-la inclusive quando a responsabilização de determinada sociedade empresária se der em decorrência da regra de solidariedade prevista no § 2º do artigo 4º.

Por sua vez, o artigo 3º explicita que a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa natural, autora, coautora ou partícipe do ato ilícito. Ainda, a responsabilidade da pessoa jurídica é absolutamente independente da responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores, que continuam imputáveis somente na exata medida de sua culpabilidade, o que está em sintonia com a tradição penalista do direito brasileiro, assentada na teoria finalista da ação. Assim, o modelo de responsabilização das pessoas jurídicas previsto na Lei nº 12.846/2013 dispensa o exame da ação das pessoas físicas que existem e agem por detrás do ente coletivo, as quais permanecem sujeitas a outros âmbitos e sistemas de responsabilização.

Outra inovação providencial da legislação se refere à previsão expressa no artigo 4º de que “subsiste a responsabilidade da pessoa jurídica na hipótese de alteração contratual, transformação, incorporação, fusão ou cisão societária.” Tal previsão legal busca coibir a utilização de operações societárias como subterfúgio à

aplicação da penalidade, expediente bastante conhecido dos órgãos e entidades públicas de combate à corrupção.

Nas hipóteses de operações de fusão e de incorporação, a lei restringe a responsabilidade da empresa sucessora ao pagamento da multa até o limite do patrimônio transferido, não podendo ser responsabilizada por atos e fatos ocorridos anteriormente à data da operação societária, excluídos obviamente os casos comprovados de simulação e fraude. Como exposto acima, a mesma restrição é aplicada às sociedades controladoras, controladas, coligadas ou consorciadas, que caso responsabilizadas nos termos da diretriz geral do artigo 2º da lei, somente serão obrigadas ao pagamento de multa e reparação integral do dano causado.

O que é importante deixar consignado a partir do exame deste sistema de responsabilização objetiva introduzido pela Lei nº 12.846/2013 não é que as pessoas jurídicas serão punidas arbitrariamente e sem critérios pelo Poder Público. Fábio Medina Osório (2011, p. 389) ensina que há uma conexão de uma peculiar culpabilidade das pessoas jurídicas com o cumprimento de deveres de cuidado e de respeito ao direito por parte destas:

No plano do Direito Administrativo Sancionador, pode-se dizer que a culpabilidade é uma exigência genérica, de caráter constitucional, que limita o Estado na imposição de sanções a pessoas físicas. Não se trata de exigência que alcance também as pessoas jurídicas, com o mesmo alcance. Pode-se sinalizar que a culpabilidade das pessoas jurídicas remete à evitabilidade do fato e aos deveres de cuidado objetivos que se apresentam encadeados na relação causal. É por aí que passa a culpabilidade.

O qualificativo “objetivo” da responsabilização impõe ao aplicador da sanção a obrigação de aferir cuidadosamente o nexo de causalidade que une os fatos tidos por lesivos à Administração Pública e o resultado benéfico ou de interesse do ente privado. É no interior deste elo causal que se encontra a culpabilidade especial que é inerente às pessoas jurídicas, a chamada “culpabilidade de organização” ou “culpabilidade corporativa”, a qual, segundo a lição de Enrique Bacigalupo (2011, p. 98), está relacionada à corporação, sobretudo a empresária, que cumpre com o direito, isto é, que tenha institucionalizado uma cultura corporativa de cumprimento das normas jurídicas que tangenciam as atividades desenvolvidas pelos entes coletivos, em especial aquelas que possuam conexões negociais com o administração pública.

3.4 Penalidades Administrativas Previstas pela Lei nº 12.846/2013