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CAPÍTULO 3 - POLÍTICAS PÚBLICAS REPARATÓRIAS

3.2 DISPOSITIVOS CLÍNICO-POLÍTICOS

Em 1991, o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNM/RJ) criou, através do apoio das Nações Unidas, um dispositivo clínico-político, a Equipe Clínico-Grupal TNM/RJ, no intuito de oferecer cuidados clínicos aos afetados pela violência de Estado da ditadura, extensivos aos familiares e aos afetados pela violência do regime democrático.

Na época, organismos internacionais que prestavam apoio aos Direitos Humanos disponibilizaram recursos aos países latinos para iniciativas de equipes clínicas destinadas a fornecer assistência aos sobreviventes do pós-ditadura. Após alguns anos de funcionamento, a Equipe Clínico-Grupal TNM/RJ recebeu um incentivo da Comissão Europeia para um projeto conjunto com outras entidades do Cone Sul, comprometidas com uma clínica dirigida aos afetados pelos regimes de exceção.

No Brasil do pós-ditadura, membros da equipe clínica constataram que a violência de Estado continuava presente, embora dirigida às populações periféricas pobres, numa conjuntura de impunidade promovida pela interpretação da própria Lei da Anistia de 1979, ao

proteger os agentes de tortura e seus idealizadores. Diante da continuidade de violações e impunidades, o GTNM-RJ sempre relacionou os crimes do contexto presente com os crimes do passado, direcionando suas ações para a atenção psicológica assim como para a capacitação profissional, criando dispositivos teórico-conceituais para este fim. Visando o aprimoramento da práxis clínica, foi realizada uma parceria para uma pesquisa acadêmica entre a Equipe Clínico-Grupal TNM/RJ e o Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), sendo gestado como dispositivo de capacitação, oficinas clínico-políticas. Conforme foi mencionado no Relatório Final das Clínicas do Testemunho – RJ,

atentando para o risco, sempre presente, de os dispositivos Psi intensificarem a interiorização e o divórcio entre o individual e o coletivo os integrantes da Equipe Clínico-Grupal do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ procuravam utilizar estratégias ampliadas de intervenção e adotar uma perspectiva ético-estético-política que ajudasse a desprivatizar o dano e a operar deslocamentos intensivos que permitissem habitar o passado de outra maneira (INSTITUTO PROJETOS TERAPÊUTICOS DO RIO DE JANEIRO, 2015, p. 20).

Esta iniciativa clínica se expandiu, sendo compartilhada por outros atores sociais, como profissionais de saúde de vários segmentos no Brasil e em outros países da América Latina. Foram anos de experiência que possibilitaram o amadurecimento e a sistematização deste trabalho, estendendo-se a outras redes sociais, como programas socioeducativos em várias cidades brasileiras. A psicóloga Vital Brasil (2010) salienta que em outros países da América Latina foram implementados programas de reparação integrados às políticas públicas, favorecendo o intercâmbio destas experiências assim como o fortalecimento e apoio desses grupos de resistência frente ao recrudescimento e atraso do governo brasileiro em seu processo de justiça de transição.

Partindo-se do entendimento que o Estado tem a obrigação de reparar os danos cometidos por seus agentes, a iniciativa clinico-grupal do GTNM transformou-se, em 2010, num grupo autônomo, a Equipe Clínico Política - RJ, elegendo, como bandeira de luta, reivindicar do Estado brasileiro a efetivação de uma política pública reparatória de cunho psicossocial. A conjuntura política do país era pertinente à criação deste projeto, visto que algumas brechas se abriam como possibilidades de avanços para alguns organismos de direitos humanos e à democracia. O processo de construção de projetos de políticas reparatórias através da Comissão de Anistia, assim como a implementação do Plano Nacional

de Direitos Humanos - PNDH-3, com a participação da sociedade civil, seriam alguns exemplos.

A Comissão de Anistia iniciou o processo de pedido de desculpas por parte do governo brasileiro aos afetados pela ditadura civil-militar por intermédio das Caravanas Itinerantes de Anistia em vários estados do país, inaugurando oficialmente e de forma pública a prática de construção da Memória e da Verdade, através dos testemunhos daqueles que reivindicam o direito à reparação pelos danos causados após torturas e perseguições, assim como pelo reconhecimento dos mortos e desaparecidos políticos.

Até 2012, o processo de reparação estava atrelado apenas a dispositivos de ordem moral e de compensação econômica. Foi com a mobilização da sociedade civil, através das Caravanas e do Projeto Marcas da Memória, que se pode pensar em avançar nas discussões de reparação psicológica, visto que, nos testemunhos públicos, as marcas deixadas pelos anos de silenciamento e de tortura tornaram-se visíveis e contundentes. Segundo Negreiros11,

O reconhecimento do mérito da Comissão de Anistia implica em um reconhecimento anterior: o do trabalho militante e incansável de profissionais da psicologia que, do mesmo modo que resistiram ao terror do Estado ditatorial, resistiram por décadas ao descaso do Estado pós-ditatorial em relação aos crimes do passado.

Daí a necessidade de afirmarmos: os profissionais da Clínica do Testemunho do Rio de Janeiro, muito mais do que inseridos em um projeto pioneiro do Estado brasileiro, foram, eles mesmos, ao lado de outros colegas, os personagens históricos responsáveis por tal pioneirismo. Estes profissionais-militantes, estes psicólogos-resistentes, resistindo, trabalharam por anos e anos, com pouco ou nenhum subsídio, esforçando-se para lidar com danos psíquicos provocados, de um lado, pela violência direta do Estado ditatorial e, de outro, pela violência indireta e covarde de um Estado que, querendo-se democrático, recusava-se a lidar com seu período de arbítrio (NEGREIROS, 2015, p. 93).

11O psicanalista Dario de Negreiros foi assessor da presidência da República na Comissão de Anistia e membro do coletivo clínico-político “Margens Clínicas”, conveniado a CA/MJ no 2° edital das Clínicas do Testemunho. Situado na cidade de São Paulo, este dispositivo clínico é composto majoritariamente por psicólogos e psiquiatras que oferecem gratuitamente assistência psicológica aos afetados pela violência estatal nos tempos atuais, também atuantes na reivindicação do reconhecimento do direito à reparação psíquica por parte do Estado brasileiro (CARDOSO; FELLIPE; BRASIL, 2015, p. 94).