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Capítulo 1. O mercantilismo inglês: abordagens e significados

1.6. As disputas entre whigs e tories

A tarefa de compreender o significado político e ideológico desempenhado pelo mercantilismo na Inglaterra do final o XVII e início do XVIII exige que se tenha uma caracterização precisa sobre o discurso político inglês do período. E isso não pode ser feito sem que antes se entenda um pouco mais sobre whigs e tories, os dois principais partidos que ocupavam o cenário político inglês. É por isso que iniciaremos essa segunda parte do capítulo com uma breve exposição sobre a trajetória e a base social desses partidos.

Em relação aos primeiros, é preciso demarcar uma metamorfose importante que ocorreu entre a sua origem e o período posterior à Revolução Gloriosa. Os primeiros whigs podem ser entendidos como o resultado de uma aliança composta por latifundiários e religiosos em uma mistura instável de elementos conservadores e radicais108. Nessa primeira configuração, já coexistiam noções diferentes que emergiram no debate sobre a soberania do Parlamento e sua relação com o executivo, de modo que um setor acabaria por se aproximar das posições favoráveis à separação dos poderes e do republicanismo.

Aí estava, para John Pocock, a origem conceitual para a cisão que viria posteriormente109. Após 1689, o que se viu foi uma importante mudança na base social do partido.

Segundo Wallerstein, depois da Revolução Gloriosa, os whigs que passaram a comandar

108 POCOCK, J. G. A. Op. Cit., p. 220.

109 Ibidem, p. 221.

o partido e que chegaram ao poder passaram por uma mutação. Em oposição à versão inicial de um partido do campo da baixa gentry, que era hostil às taxas, ao exército permanente e crítico à corrupção do governo, emergiu uma versão nova que representava uma coalizão dos maiores landlords, a burocracia ascendente e as classes mercantis110. Tal mudança teria sido acompanhada por uma guinada programática e ideológica, a começar pelo abandono da rejeição ao exército permanente e uma visão conservadora em princípios constitucionais111. Contudo, essa visão de uma guinada brusca após a Revolução Gloriosa é contestada pela leitura de Steve Pincus que vê uma clara linha de continuidade entre o projeto imperial whig que vinha sendo discutido nos anos anteriores à 1689 e as mudanças que vieram após a chegada ao trono de William III, movimento que é visto justamente como uma consequência da vitória dessa posição diante do projeto de James II – um projeto imperial católico moderno. Nas suas palavras: “Whig historians are wrong to assume that William imposed his European agenda on the English. Instead, the English invited William to England because they knew he would support their image of the national interest”112.

Nesse âmbito, acreditamos que é importante destacar como as evidências que Pincus aponta em seu livro 1688: The First Modern Revolution ajudam a ter uma leitura muito mais apurada sobre a Revolução Gloriosa, seus motivos e as mudanças que vieram em seguida a partir dessa leitura de continuidade e de relação causal entre as propostas políticas e econômicas whig nos anos que precederam à Revolução e as medidas que vieram em seguida. Ainda assim, segue sendo válido ter em vista essa perspectiva de uma mudança na base social do partido e no abandono de alguns dos princípios que eram defendidos em sua origem, como se pode ver nessa evolução notável de uma rejeição ao

110 WALLLERSTEIN, Immanuel. Op. Cit., p. 247.

111 Em: apud PLUMB; WALLLERSTEIN, Op. Cit., p. 247.

112PINCUS, Steve. Op. Cit., p. 307.

exército permanente para uma política que enfatizava a guerra continental e promoveu uma expansão sem precedentes do exército113.

Em resposta a essas mudanças, surgiu uma persistente tradição dissidente Whig, constituída por uma sucessão de grupos, como “old whigs”, “true whigs” e “honest Whigs”114, alimentados ideológica e programaticamente pela tradição dos

“commonwealthmen”, a qual foi reapropriada como fundamento para a crítica aos princípios e práticas do regime Whig115. Porém, durante todo esse período que estamos analisando - do final do século XVII até o início do século XVIII -, o principal grupo opositor aos whigs era o partido Tory. Nas palavras do propagandista whig, Joseph Addison, “The general division of the British nation is into Whigs and Tories (...) there being very few, if any, who stand neuters in the dispute, without ranging themselves under one of these denominations”116. Tratava-se, portanto, de uma divisão que não estava restrita a pequenos grupos da elite, mas reverberava nas mais variadas camadas da população. Era um contexto em que, além de haver um engajamento em relação aos debates parlamentares e os processos eleitorais, milhares de britânicos tinham acesso aos panfletos e jornais escritos pelos mercantilistas ingleses que estavam alinhados a esses partidos e discutiam sobre as ideias contidas nesses textos em locais como as coffeehouses.

113 Wallerstein aponta que já em 1694 os whigs abandonaram o slogan do “no standing army” e viraram protagonistas de uma “dramatic expansion of the army (which increased its numbers from 10,000 in 1689 to at least 70,000 by 1711)” (WALLLERSTEIN, Op. Cit., p. 247).

114 POCOCK, J. G. A. Op. Cit., p. 215.

115 Segundo David Mcnally, essa tradição de pensamento político da commonwealth concebia o Estado em termos de um auto-governo da landed gentlemen e era uma resposta teórica às mudanças nas relações sociais de produção trazidas pelo que chama de “agrarian capitalism”.

Isso porque os commonwealthmen defendiam a proteção da virtude cívica como chave para manter uma ordem social justa e acreditavam que a manutenção dessa ordem dependia da garantia de que a base agrícola da nação não fosse destruída e de que o poder do Rei fosse expresso através do Parlamento (MCNALLY, David. Political Economy and the Rise of Capitalism: A Reinterpretation. Berkeley: University of California Press, 2011, p. 25 – 26).

116 Citação do jornal Free-Holder, comandado por Joseph Addison, extraída do artigo de Steve Pincus: PINCUS, Steve. Addison’s Empire: Whig Conceptions of Empire in the Early 18th Century. The Parliamentary History Yearbook Trust. 2012b, p. 101.

Os tories, contudo, se notabilizavam por ter uma base social distinta em relação aos whigs. Eles eram o partido que tinha a maior audiência na população do campo, nas vilas e nas pequenas cidades, sendo associados principalmente à gentry rural117. Nas palavras de George W. Cooke, o pequeno landholder era “universalmente” um tory, bem como o baixo clero e os tenants que estavam em sua órbita de influência118. Mas isso não era tudo. Como veremos a seguir na análise sobre os debates envolvendo o Calico Act, os tories também tinham forte presença nas principais companhias britânicas, como a East India Company. Ou seja, estavam no topo da hierarquia entre mercadores, a começar pelo poderoso diretor da EIC, o tory Josiah Child. Isso se amplia ainda mais a partir de leituras que identificam os tories não apenas como porta-vozes dos descontentamentos da country gentry - normalmente associados a uma perspectiva nostálgica, orientada para o passado -, mas também dos setores urbanos “who found that the great financiers and the parliamentary oligarchs were depriving them of power”119 e até dos proprietários das Plantations na América120.

Já em relação à trajetória, os tories estavam inicialmente alinhados aos monarcas do período da Restauração Stuart e inclusive ao governo de James II. No entanto, o desenrolar dos acontecimentos e as escolhas tomadas pelo último rei católico inglês em função de seu projeto imperial - sobretudo a centralização política, o enfrentamento ao protestantismo e o alinhamento com a França na política externa121 – levaram a um

117 Segundo Thompsom, havia uma tradição tory na pequena gentry independente (THOMPSON, E. P. Eighteenth-Century English Society: Class Struggle without Class? Social History, Vol. 3, No. 2 (May, 1978), p. 143).

118 Em: COOKE, George W. The History of Party: from the rise of the Whig and Tory factions, in the reign of Charles II to the passing of the Reform Bill. Vol. I, London. 1836, p. 3.

119 POCOCK, J. G. A. Op. Cit., p. 245.

120 Na leitura de Pocock, esses dois últimos grupos aderiram em função de um programa mais ligado à tradição de pensamento commonwealth que, no âmbito dessa linguagem tory, estaria fundido e articulado a esse lado nostálgico do descontentamento rural (Ibidem, p. 246).

121 Seguindo os argumentos expostos na introdução sobre as causas da Revolução Gloriosa, embasados por algumas das conclusões de Pincus sobre o processo. Ver mais em: PINCUS, Steve.

1688: The First Modern Revolution. New Haven, CT: Yale University Press, 2009.

deslocamento dos tories moderados para uma posição de aderir à causa revolucionária de 1688-9 e apoiar a ascensão de William III ao trono inglês. Isso não impediu de seguir havendo no partido uma ala mais radical que se voltou ao jacobitismo, mas no contexto pós-1688 eram os tories apoiadores da Revolução Gloriosa e do novo rei que estavam dando as cartas pelo partido e inseridos em uma disputa ferrenha com os whigs pelas políticas imperiais.

1.7. Os discursos mercantilistas entre a virtude e o comércio – uma crítica à perspectiva