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DISSIDÊNCIA COM A SEARA NOVA E O INÍCIO DO ISOLAMENTO

1. O AUTOR

1.2 DISSIDÊNCIA COM A SEARA NOVA E O INÍCIO DO ISOLAMENTO

À medida que se aproximava o fim da década de 20, o trabalho de José Rodrigues Miguéis na Seara Nova ia-se tornando cada vez mais árduo, devido à conjuntura política que o país atravessava, já descrita na primeira parte do nosso trabalho. Os textos começaram, na verdade, a ser censurados. Por exemplo, no número 101 de 30 de Junho de 1927, surge na primeira página da revista o seguinte: “o presente número foi visado pela comissão de censura”.

Esta atmosfera asfixiante estava a frustrar o jovem recém - formado que, tendo obtido uma bolsa, em 1929, não hesitou em partir para a Bélgica, a fim de estudar Ciências Pedagógicas. Envolvido com o curso para o qual sentia mais apetência do que para o de advocacia, o jovem Miguéis quase esquecia os problemas que se passavam em Portugal, quando recebeu ecos da Seara Nova.

Este “Dom Quixote do amor puro à pátria, às gentes e às letras”, fiel aos seus ideais, não se coibiu de exprimir a sua opinião sobre os assuntos que ele convictamente considerava pertinentes para a transformação da sociedade portuguesa, valendo-lhe por vezes a discriminação por partes dos amigos. Foi o que aconteceu aquando da publicação do artigo intitulado “Conceito da revolução em Eça de Queirós”, de 20 de Março de 1930, da autoria de Castelo Branco Chaves. Transcrevemos, parcialmente, o artigo, uma vez que esta temática vai ser discutida, desta vez sem animosidades e sem rupturas, entre José Boleto e o engenheiro Sarmento, personagens ficcionadas da obra que seleccionámos para objecto do nosso estudo. Vejamos:

14 Poderá estar implícita uma crítica à Crítica. Também José Régio desvaloriza o trabalho dos

críticos, os”amadores de antiguidades . Em vez de lhes alargar o gosto, a erudição amarelenta -lhes a alma “ Lisboa 1984: 80)

A geração de 70 “foi das raras élites revolucionárias que Portugal possuiu e

das que mais nobre e persistentemente tentou empreender a reforma da mentalidade e dos costumes nacionais (…) transformar as mentalidades, cultivando-as, regenerar os caracteres, melhorando-os, eis o fim superiormente revolucionário da obra de Eça (Neves.1990: 52).

Castelo Branco Chaves citava um excerto de Antero de Quental proferido nas célebres conferências do casino, a propósito das Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, onde Antero define revolução nestes termos:

Revolução não quer dizer guerra, mas sim paz: não quer dizer licença, mas

sim ordem, ordem verdadeira pela verdadeira liberdade. Longe de apelar para a insurreição, pretende preveni-la, torná-la impossível: só os seus inimigos, desesperando-a, a podem obrigar a lançar mãos das armas. Em si, é um verbo da paz porque é um verbo humano por excelência (Quental 2005: 32).

José Rodrigues Miguéis discordou da análise feita por Castelo Chaves e, apesar de residir na Bélgica e já estar afastado dos trabalhos da Seara, enviou para a revista dois artigos intitulados “Sobre os fins e a coragem nos meios de actuar”( Miguéis 1930: 58) declarando que, para si, o importante era adquirir-se a consciência histórica do momento em que se vivia. Além disso, ser democrata ou socialista porque Antero o fora e como ele o fora, ou abdicar da acção porque Eça fora um socialista doutrinário, era absurdo e risível. Assumindo-se defensor de métodos de acção divergentes dos de Castelo Branco Chaves, Miguéis argumentava assim:

Mas repudiar as democracia, porque ela nasceu pela força - não obstante ser um produto ideológico – seria o mesmo que renegar a vida que a ferros se libertou do seio materno, onde por um acto de amor foi concebida. Na medida, pois em que a violência foi reconhecidamente necessária para fazer a revolução em França, ou a República em Portugal, nenhum idealista, democrata sincero, e adversário da violência sistemática, a pode repudiar ou negar (Miguéis 1930:60).

A fidelidade aos seus ideais era tal, que Miguéis não se eximia de criticar até os directores da Seara Nova, facto que não agradou aos dirigentes, que publicaram um

o pensamento social e político apresentado por Castelo Branco Chaves, no seu artigo sobre Eça de Queirós, concorda de maneira completa com as concepções da democracia que sempre temos defendido na revista – o que só por lapso de atenção não terá sido visto por Rodrigues Miguéis (Neves 1990:53)

Esta nota de apoio a Branco Chaves e outros artigos publicados, nomeadamente, o de António Sérgio, que o acusou de bolchevista, ditaram a formalização do pedido do seu afastamento da revista. Esta decisão motivou por parte da direcção da revista (Raul Proença, Câmara Reys, entre outros) a publicação de uma comovida nota de reconhecimento e efusivo agradecimento pelo empenho, que durante oito anos Miguéis dedicara à revista, considerando que, pela inteligência, pelo seu carácter e pela sua cultura, a sua saída da revista era uma perda de muito valor.

Apesar de todo o reconhecimento e apreço manifestados pelos seareiros, a propósito das qualidades intelectuais e humanas do nosso escritor, a verdade é que as palavras dos directores da revista marginalizaram ideologicamente Rodrigues Miguéis.

A empatia entre Miguéis e Raul Proença manifestava-se a vários níveis. Porém, as diferenças ideológicas eram algumas: Rodrigues Miguéis era conotado com o partido comunista, conforme já referenciámos enquanto , por exemplo, Raul Proença repudiara o comunismo, o anarquismo ou o integralismo, por atentarem contra a natureza e dignidade do homem. Raul Proença preocupou-se em defender um socialismo que se realiza dentro da ordem e dos métodos democráticos, nomeadamente, no seio do parlamentarismo. Este modelo político nunca reconhece ao Estado qualquer poder absoluto sobre o indivíduo, razão por que Proença repudiou o conceito de vontade - geral de Rousseau, por se sobrepor ao juízo individual de «cada um». O seu socialismo pugnava por uma intervenção progressiva e não abrupta e violenta do Estado na regulamentação das actividades, para pôr termo à anarquia económica e estabelecer uma maior justiça distributiva. Não via na propriedade um direito absoluto, pois que exigia uma regulamentação que lhe retirasse o carácter soberano e irresponsável, impedindo-a de colidir, como tantas vezes sucedia, com o valor ético da personalidade e, consequentemente, com o maior bem da comunidade.

Se os seus amigos admitiam que o seu valor fazia falta à revista, que assim ficava mais pobre, para a censura, José Rodrigues Miguéis era persona non grata. A muitos dos seus trabalhos foi-lhes vedada a publicação e outros foram apreendidos pela PIDE. Só para dar um exemplo, foi o que aconteceu a uma carta endereçada a Mário Neves e ao artigo intitulado “Da Fatalidade à Consciência”, nunca devolvidos ao autor. Também a publicação dos capítulos de Idealista no Mundo Real foi proibida pelos censores. Segundo informa Maria Angelina Duarte, em Prefácio à referida obra, os primeiros capítulos de Idealista no Mundo Real foram, a pedido do próprio autor, originalmente publicados na Seara Nova, entre Janeiro de 1964 e Abril de 1965. O último segmento que viera a público era seguido de uma declaração informando que, por motivos alheios à vontade dos directores e à do autor, se suspendia naquele número a publicação do romance intitulado Idealista no Mundo Real. Mais uma vez, após encómios e agradecimentos por parte dos directores da revista, o autor de Pass(ç)os) Confusos era arredado da estimada revista. Esta divergência ideológica vai mais tarde dissipar-se e “o jovem bolchevista” vai “reconciliar-se” com António Sérgio e com os ideais da primitiva Seara Nova.

Perseguido pelas suas ideias15 e pela propensão para viver à margem da asfixiante sociedade lisboeta e pelos problemas de âmbito familiar, Miguéis viu-se forçado a abandonar a terra que o vira nascer e partir para os EUA, acontecimento que produz as comovidas palavras de José Gomes Ferreira, nas páginas do seu livro A Memória das Palavras ou o Gosto de Falar de Mim:

Ainda trago na pele o desconforto lívido com que naquela manhãzinha da Brasileira ao Rossio de há vinte anos e tantos anos ouvi o José Rodrigues Miguéis anunciar-me a próxima partida para a América do Norte. Olhei-o com a sensação de a pátria ficar mais pequena (Ferreira, apud, Neves 1990:69).

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