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1. O AUTOR

1.4. O AUTOR E O REALISMO ÉTICO

1.4.1. DO UNIVERSO REAL PARA O FICCIONAL

Eduardo Lourenço, em “As Marcas do Exílio na obra de JR Miguéis”, escreve que:

“Tudo o que conta na obra de Miguéis é intensa e obsessivamente autobiográfica. A arquitectura ficcional é uma máscara transparente quer da sua experiência imediata, ao rés da vida, quer do seu personagem mítico de autor à procura de si mesmo ” (Lourenço 1981 in Gente da Terceira Classe:271-272)

Esta verdade, aliás, é claramente assumida pelo próprio Rodrigues Miguéis que confessa o seguinte em “O Espelho Poliédrico”: “Um livro, qualquer livro, quanto a mim é um recorte arbitrário numa peça de fazenda, a vida; e a obra do escritor, uma autobiografia acidentada” (Miguéis 1996: 471).

Efectivamente, em muitas das suas obras perpassa um fundo autobiográfico, mas como assegura Teresa Martins Marques, “o fundo autobiográfico em nada afecta o contrato da ficção, já que o texto ficcional pode sempre remeter para o mundo real (…) numa perspectiva de elucidação do universo ficcional.”.(Marques apud Miguéis1996:VI).

Muitas das suas obras são inspiradas em factos reais: “O Chapelinho Amarelo” inspirou-se num caso real” (Ibidem:225); “O Acidente” foi, igualmente, ficcionado a partir de um acidente de trabalho presenciado por Miguéis. No paratexto “Explicação ao leitor (da primeira edição)”da obra Gente da Terceira Classe, o autor esclarece que “O Viajante Clandestino”, inspirado num caso real (e poucas destas histórias o não são) foi escrito em Lisboa (…). “O Anel de Contrabando” é outro texto escrito em Lisboa resultado de uma experiência individual … (Miguéis 1995:268). A obra Uma Aventura Inquietante nasceu de um

acontecimento pessoal, em que Miguéis encontra uma carteira e a devolve ao agente policial. O olhar de legítima deformação profissional que lhe atirou o agente de serviço deu-lhe o “primeiro rebate de ficção” (Miguéis1995: 267), conta o Autor no posfácio “Começo e fim de uma aventura”.

Em jeito de prefácio a É Proibido Apontar – Reflexões de um burguês I, o Autor apresenta, em 1963, o burguês Mariano – Artur “um personagem de ficção – não da pura e desinteressada, mas daquela que guarda os indeléveis resíduos da experiência e idealidade do autor” (Miguéis 1990:9), conforme já referimos no nosso trabalho. Porém, acrescenta que não se trata de “uma transposição autobiográfica, nem sequer o disfarce que [lhe] permita dizer o que de outro modo, não ousaria” (Idem:9). De igual modo, no paratexto que antecede a narrativa autobiográfica “Um Homem Sorri à Morte - Com Meia Cara”, Miguéis esclarece que “não é do autor que aqui se trata, essencialmente, mas sim do que, na sua experiência pessoal, possa ser comum, comunicável, útil até , como exemplo e lição, aos demais homens”( Miguéis 1994:150).

Já na “Nota do Autor” a Nikalai ! Nikalai !, datada de 1971, Miguéis, embora assumindo que a “Múmia” utiliza os materiais de experiência e memória acumulados não é um texto autobiográfico. Uma das duras tarefas, ao escrevê-lo, foi precisamente a de expurgar quanto possível o livro de quaisquer intenções ou opiniões pessoais. O seu narrador (que é preciso não confundir com o autor) pretende ser neutro, um observador céptico, algo cínico mesmo, embora dotado de poder de simpatia, que distribui indiscriminadamente, ao traçar este quadro da sua experiência (Miguéis 1995: 248). Na mesma nota, o autor refere que Nikalai! Nikalai!

tem muito da [ sua] experiência, que foi rica de sugestões e responsabilidades; do [seu] convívio com os russos, na sua maioria cossacos, para os quais lhe atraiu o desejo de observar de perto o material humano de uma literatura que então nos empolgava, e dos acontecimentos de que eles haviam sido comparsas ou vítimas (Miguéis 1995: 248).

Em a “Nota do Autor” a Idealista no Mundo Real, com registo de 1963, o autor, retrospectivando, sobre o referido romance escrito “lá pelos [seus] vinte e poucos anos” (Miguéis 1995:7) informa que o título lhe vem directamente de Raul

Proença e assegura que não é um romance histórico nem autobiográfico, por muito que nele haja de ambiente real e de experiência pessoal. Não pinta factos, situações nem pessoas autênticas, senão que transfiguradas no plano da ficção. Inscreve-se inteiramente no quadro do naturalismo com finalidade: “é um romance pedagógico, tem essa coragem” (Miguéis 1995:9).

Na mesma “Nota de Autor” a Onde a Noite se Acaba, também reflecte sobre o panorama literário português, a República e a relação entre homem e literatura: prevalecendo os nossos deveres crescentes, as restrições que de fora as circunstâncias nos impõem, abafam as preocupações artísticas. (Ibidem:230). E prossegue:

Homem polivalente se a literatura tinha sido sempre a minha preocupação dominante, a vida, o desejo de viver, de conviver e agir, de ser parte do todo, num mundo já transbordante de literatura, mas gemendo ainda ao peso de horrores desumanos – levaram em mim por vezes, a melhor. (Ibidem: 230).

Este princípio de o Homem social se sobrepor ao homem escritor é partilhado pelos neo – realistas. Lembremos a este respeito que também Mário de Castro, no seu estudo “Alentejo, terra de Promissão” publicado na Seara Nova defende que “acima dos [seus] pruridos de artista estão os brados da [sua] consciência moral” (Castro 1931:333). E contínua, dizendo que nunca fizera do seu verbo instrumento de interesse, nem o pusera jamais a servir de grinalda: quando o usava, era para que cumprisse a sua missão sagrada de elevar as almas, e a energia que nela estremecia fosse a própria força da Verdade, da Razão e da Justiça.

A respeito deste princípio da subordinação do criador às funções do homem público, registemos a evolução do pensamento migueisiano que, no ensaio “Uma flor na campa de Raul Proença”, escrito em 1978, lamenta o facto da exacerbada consciência do dever cívico, o sentimento de culpa pessoal por tantas carências que há séculos nos vêm afectando, e pelos erros que outros cometeram; o pendor generoso e dorido de tudo querer melhorar, reformar ou salvar ideias que nortearam a vida de Raul Proença, o haverem impedido de se consagrar por inteiro à criação pessoal. Perdemos, assim, acrescenta Miguéis, a sua “criadora febre de realizar”, desviada - transviada – para o redondel da pregação”( Miguéis 1985:23).

são entre nós inúmeros e vem de tempos recuados. Hoje mesmo 1978 neles estamos reincidindo até ao delírio que nos contagiou! daí a frustração, a renúncia, o fracasso, a morte prematura, o suicídio a loucura o exílio, a esterilização de tantos talentos, e até, porventura, génios que ponteiam de luto a história da nossa vida cultural (Ibidem:24).

A evolução do pensamento de Miguéis deve-se ao facto de ter deixado de acreditar nas vantagens do empenhamento político por parte destes criadores e à descrença em determinados ideários revolucionários.

Em 1963, Miguéis diz que ele e os seus coevos dos anos vinte e trinta acreditavam nas virtudes do panfleto e da sátira, das verdades nuamente ditas. Eis, depois, um homem desiludido18, portanto, com a natureza humana que teima em não compreender que o caminho da felicidade passa, forçosamente, por uma sociedade mais equitativa, onde não haja espaço para a segregação.

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