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Distinção no campo desportivo

No documento Género e Identidades no futsal português (páginas 44-51)

CAPITULO II – Género e identidades

4) Distinção no campo desportivo

No seguimento do ponto anterior, onde nos centrámos nos processos de construção identitária, veremos agora de que forma o campo desportivo se assume enquanto espaço de distinção social. Na realidade, a procura de práticas culturais distintas associam-se igualmente a tentativas de expressão dos indivíduos das suas identidades. Pierre Bourdieu insere as “práticas desportivas nas práticas de consumo cultural,

encontrando princípios explicativos para os envolvimentos sociais na capacidade distintiva que estes encerram. O desporto para Bourdieu apresenta-se como um produto cultural, social e económico, inserido num mercado de oferta e procura, socialmente produzidas” (Bourdieu, 1987, cit. por Marivoet, 1997: 105) Segundo o autor, as classes

com maior capital cultural, social e económico procuram modalidades desportivas que lhes fornecem maior capacidade distintiva. Desta forma, ao praticarem desportos de elite e de difícil acesso, marcam uma distinção face às restantes classes sociais que praticam desportos mais massificados. O desporto assume-se então como um espaço privilegiado

“para a afirmação da distinção pela diferença, ou seja, uma forma de constante actualização das distâncias sociais e das hierarquias”. (Batista e Pires, 1989: 15)

As classes sociais com níveis superiores de capital cultural, social e económico procuram sobretudo chegar a patamares em que o acesso é mais restrito, uma vez que é precisamente através desses que lhes é possível obter maior distinção. Bourdieu (2007) entende que a burguesia – enquanto classe dominante - pretende distinguir-se, procurando conservar a sua posição através de uma estratégia de distinção, impondo o seu “bom gosto” e legitimando a sua própria dominação. Quanto às restantes classes as opções passam por estratégias de compensação da sua baixa estrutura de capital, através do acesso a consumos desportivos que lhes fornecem capacidade de identificação social. O autor aponta a tendência para a generalização das modalidades, através da constituição de uma oferta menos elitista, facto que leva as classes sociais com níveis superiores de capital a procurarem novos desportos, de modo a ser-lhes restituída a distinção que procuram. (Marivoet, 1997: 105)

Ora, se as atividades e espetáculos desportivos classificam socialmente, eles só o podem fazer porque eles mesmos são socialmente classificados. “a lógica da distinção

consiste em manter uma distância distintiva entre as práticas: logo que uma prática se difunde, e perde assim o seu valor distintivo, é substituída por outra, reservada aos

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membros das classes dominantes” (Bonnewitz, 2005: 108, cit. por Lopes, 2014: 178).

Seguindo esta ideia, a partir do momento em que um desporto se torna massificado, ele tende a ser abandonado pelas classes dominantes que procuram outro tipo de desporto ou modalidade que lhes garanta a distinção social desejada. Para Bourdieu, esta distinção, todavia, não supõe apenas a aquisição dos produtos desportivos legítimos, mas, também, o seu uso legítimo. Assim, o valor distintivo de assistir a uma partida de críquete, por exemplo, dependeria do conhecimento e aplicação das regras de assistência desse desporto, como não saltar, dançar ou ameaçar os adeptos rivais, à semelhança do que acontece num jogo de futebol. (Lopes, 2014: 178-179)

É necessário pensar o espaço das práticas desportivas enquanto um sistema no qual cada indivíduo vê reconhecido o seu valor distintivo, ou seja, para compreendermos um desporto é preciso reconhecer a posição que ele preenche no campo dos desportos. O desporto tem inerente a si uma estratificação interna e uma classificação hierárquica. Bourdieu defende que um desporto só pode ser pensado em relação aos demais. Do seu ponto de vista, apenas opondo-se uns aos outros, os desportos podem ter os seus aspetos sociais revelados. (Lopes, 2014: 169)

Em suma, o desporto pode apresentar duas formas distintas de leitura. Uma, tida como sincrónica, em que a modalidade está diretamente relacionada com as disposições patenteadas nos agentes de uma determinada posição social. Outra, de forma diacrónica, em que o desporto pode ser apropriado por agentes das mais variadas disposições, ou seja, os programas desportivos sociais, assim como uma determinada disposição, pode adaptar- se a qualquer prática. Segundo Jarvie (2006), a distribuição das práticas desportivas entre as classes sociais é determinada por três fatores - capital económico, capital cultural e tempo livre.

Ao mobilizarmos a teoria de Bourdieu (2007) sobre os campos, percebemos que o desporto é um campo especializado da vida moderna, tratando-se de um espaço de diferenciação social com autonomia relativa em relação à política, à economia e à religião. O autor apresenta-nos o conceito de campo enquanto espaço de posições específicas, com leis próprias de funcionamento, com um capital específico, com agências de consagração - estas definem a estrutura do próprio campo e legitimam quem tem mais poder - e regras de jogo particulares.

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O campo é, segundo Bourdieu (2007), um espaço de luta social nos quais se operam distinções em torno de uma oposição entre dominados e dominantes. Estudar o campo é estudar as relações de força que se desenvolvem no seu âmbito, implicando também a análise da estrutura interna do campo e os interesses específicos que são irredutíveis às paradas em jogo e aos interesses de outros campos. As oposições manifestam-se em torno de tipos específicos de capital, sendo que a distribuição desigual dos capitais implica relações de dominação. Os campos estabelecem-se em relação com o capital e o habitus e permitem ter conhecimento das posições sociais e das disposições individuais.

Bourdieu (2007) refere que tendem a existir homologias de posições dos agentes em campos distintos, ou seja, os indivíduos que assumem posições dominantes num determinado campo tendem a reproduzir essa posição noutro campo. As classes dominantes mantêm-se no poder na medida em que conseguem impor a sua visão do mundo como legítima, dissimulando o seu caráter arbitrário e interessado. Desta forma, a reprodução do mundo social é garantida, fundamentalmente, por meio de um longo trabalho de legitimação da visão do mundo das classes dominantes. São estas classes que definem os critérios de classificação social das atividades e dos espetáculos desportivos. (Lopes, 2014: 172)

Os agentes sociais, dependendo da posição que ocupam na estrutura social, adotam estratégias de conservação ou de transformação da estrutura do campo. Na opinião de Bourdieu (2007) quanto mais os indivíduos ocupam uma posição favorecida na estrutura, mais tendem a conservar a estrutura e a sua posição. Assim, no campo das práticas desportivas, a noção de fair play, defendida pela aristocracia, seria uma forma de triunfar dentro das regras – algo totalmente oposto à busca plebeia da vitória a qualquer custo. (Lopes, 2014: 175) A teoria de Bourdieu revela-se inovadora no sentido em que relaciona práticas desportivas e posições sociais. O universo desportivo exige uma compreensão entre a existência de afinidades entre certos tipos de desporto e certos grupos sociais.

No campo desportivo, as lutas giram em torno da definição e uso legítimo do corpo. Luta essa traduzida nas disputas entre desporto amador vs desporto profissional ou desporto de elite vs desporto de massa. (Rodrigues, 2002: 8) O campo desportivo, como qualquer campo, caracteriza-se então por assimetrias e diferenças relativamente estáveis,

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um espaço onde existem dominantes e dominados que se comportam como se estivessem num jogo. Assim, ainda que sejam adversários, todos os agentes do campo possuem algo em comum - a crença de que o jogo social do desporto vale a pena ser jogado. Bourdieu (2007) designa esta crença de illusio. É a illusio que faz com que os agentes de um campo se deixem levar pelo jogo nele jogado e é ela que faz com que eles invistam nesse jogo.

Pierre Bourdieu na obra A Distinção (2007) dá importância aos estilos de vida [estilização da vida] para ler as divisões sociais, afirmando que se queremos perceber as capacidades que os hábitos têm em gerar práticas é necessário perceber como se constroem os estilos de vida. Os estilos de vida são formações muito importantes no quotidiano e resultam do habitus individual, relacionando-se com o gosto. O autor apresenta uma visão tripartida do espaço social - classes dominantes, pequena burguesia e classes populares - e o modo como se constrói o gosto varia tendo em conta estas classes. Na opinião de Bourdieu, o gosto não é uma propriedade inata dos indivíduos. Pelo contrário, ele é assimilado e incorporado ao longo das nossas trajetórias sociais, estruturando e sendo estruturado pelo nosso habitus de classe que constitui o princípio gerador e unificador dos nossos estilos de vida. Por conseguinte, o gosto desportivo relaciona-se com outros gostos. Assim, não será possível entender o gosto desportivo sem entendermos a relação de cada classe social com o corpo, ou seja, sem entendermos as funções e os significados que ele tem para cada uma delas. Na verdade, as classes privilegiadas tendem a tratar o corpo como um fim em si mesmo e as classes trabalhadoras como um instrumento. Conforme observa Bourdieu (2007), a relação instrumental com o próprio corpo que as classes populares exprimem em todas as práticas, tendo o corpo como objeto ou desafio, regime alimentar ou cuidado com a beleza, relação com a doença ou com os cuidados com a saúde, também se manifesta na escolha dos desportos, requerendo um grande investimento de esforços, de fadiga ou de sofrimento (como o boxe) e às vezes exigindo que se coloque em jogo o próprio corpo (como o motociclismo, o paraquedismo, todas as formas de acrobacia e, em certa medida, todos os desportos de combate). (Lopes, 2014: 177-178)

Além de ser extensivo a outros gostos, o gosto desportivo, como qualquer outro, também se inscreve numa vontade de distinção social. Em primeiro lugar, ele diferencia os que gostam de desporto daqueles que não gostam. E, ao mesmo tempo, os que gostam da modalidade “X” daqueles que gostam da modalidade “Y”. Em segundo lugar, ao

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diferenciar, ele hierarquiza socialmente. Assim, os desportos são fundados sobre uma hierarquia que vai do mais legítimo ao menos legítimo. “A título de exemplo: enquanto

que assistir a uma partida de críquete é visto como uma atividade distintiva, ir a um torneio de luta livre é tido como uma atividade vulgar.” (Lopes, 2014: 178)

De acordo com Bourdieu, os conflitos decorrentes do processo de valorização simbólica dos desportos desenvolvem-se em contextos sociais caracterizados por assimetrias e diferenças em termos de distribuição de recursos e poder. Assim, o valor atribuído pelas classes populares às práticas desportivas possui um peso muito inferior do que é atribuído pelas classes dominantes. Em última instância, estas é que impõe a definição e a função legítima do desporto. (Lopes, 2014: 179) Segundo o autor, os grupos dominantes não se distinguem apenas consumindo aquelas atividades desportivas que eles próprios definiram como legítimas, mas, também, menosprezando aquelas que definiram como ilegítimas. As classes populares, por sua vez, tendem a apresentar uma atitude de resignação em relação às classes superiores, reconhecendo o modelo de distinção imposto pelos grupos dominantes. Assim, os indivíduos dessas classes poderiam, por exemplo, reconhecer uma modalidade desportiva como sendo nobre (como o golfe), admitindo, ao mesmo tempo, que não é o tipo de prática que desejariam (ou seriam capazes de) consumir e apreciar.

No entanto, não devemos olhar para o campo desportivo como um espaço onde as classes dominantes exercem o seu poder sem contestação ou questionamento por parte das classes dominadas. Como vimos, os campos são espaços de luta social e, como tal, é habitual que existam tentativas de inverter as dinâmicas do campo e o status quo atual. O desporto apresenta-se, por isso mesmo, como um espaço onde é possível combater a ordem dominante e as classes populares procuram encontrar formas de assumirem posições de maior destaque no interior do campo.

Neste sentido, o desporto pode apresentar-se para as classes populares como um espaço de resistência ou inversão da dominação existente. Como fomos referindo ao longo do primeiro capítulo, parte da força e popularidade do desporto reside na igualdade entre os participantes, conferindo aos indivíduos um leque de oportunidades para assumirem posições mais elevadas na estrutura social. Embora saibamos que o sucesso ou insucesso de um indivíduo se explica pela conjugação de uma série de fatores, a

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verdade é que o desporto defende uma posição de partida no mesmo patamar para todos os atores sociais.

De facto, o campo desportivo é um espaço onde a mobilidade social ascendente – algo que as classes populares procuram – se apresenta como uma possibilidade. Desta forma, casos como o Cristiano Ronaldo, no futebol, e o Ricardinho, no futsal, são amplamente difundidos pelas classes mais desfavorecidas, tendo em conta a ambição e desejo dos indivíduos seguirem estes exemplos mediáticos. Assim, a tese de que os envolvimentos desportivos traduzem a procura de mobilidade social ascendente, através do reconhecimento da sociedade ao status social e económico alcançado na hierarquia competitiva desportiva ganha força. (Marivoet, 1997: 104)

Em suma, abordámos ao longo deste capítulo uma série de questões relacionadas com o género e as identidades, dimensões-chave no que ao tema desta dissertação diz respeito e que se apresentaram como centrais na recolha de dados que fizemos através da realização de entrevistas. Constatámos, em primeiro lugar, que as sociedades ocidentais se caracterizam por relações sociais desigualitárias, marcadas por relações de dominação masculina. Dominação essa visível, desde logo, na esfera doméstica onde a grande maioria das tarefas da lide da casa ficam a cargo das mulheres; dominação no campo profissional onde as mulheres ganham menos do que os homens e acedem com menos frequência a funções de direção e a promoções - os empregos continuam sexuados e as mulheres concentradas em atividades consideradas como femininas; e dominação política, onde a taxa de mulheres deputadas é muito baixa; etc. (Dubar, 2006: 64-65)

Em seguida, e olhando para o campo desportivo, verificámos que este reproduz as desigualdades e se apresenta como um espaço dominado pelos homens. Estes tendem a reproduzir a sua posição dominante, afastando as mulheres, sendo que elas próprias vão incorporando algum do estigma social presente nas sociedades que remete o desporto como um espaço adequado para os homens e não tanto para as mulheres. Esta é uma dimensão que procurámos explorar aquando da realização das entrevistas, onde tentámos perceber de que forma as atletas femininas sentem e experienciam a discriminação, os preconceitos e os estereótipos de que são alvo.

Posteriormente, ao atendermos às práticas desportivas, concluímos que o desporto parece ser uma prática mais presente e com maior importância na vida masculina, sendo isso visível nos maiores índices que os homens apresentam de participação desportiva.

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Simultaneamente, o desporto parece ser vivido com maior intensidade e interesse pelos homens e exemplo disso são os elevados graus de afinidade clubista. Desta forma, o desporto parece conceber-se como um universo simbólico de produção e reprodução da cultura masculina, enaltecendo o exercício e testemunho das proezas físicas como símbolos de virilidade.

Relativamente às identidades, percebemos que estas surgem num contexto social que assume um peso significativo na sua construção e comunicação. As instituições e os grupos sociais influenciam as construções identitárias através de pressões socialmente exercidas. Os indivíduos tendem a incorporar os papéis socialmente expectáveis fruto da posição ocupada na estrutura social, dos grupos a que pertencem e da família de que são originários e adotam os comportamentos esperados pela sociedade e entendidos como aceitáveis para cada agente social. A comunicação da identidade acontece através de um conjunto de formas de sentir, pensar e agir que são fortemente influenciadas pelo habitus do indivíduo, sendo esse resultado de um conjunto de socializações, da pertença a determinados grupos e da incorporação das suas normas e valores.

Por último, destacámos o campo desportivo enquanto forma de distinção, onde as classes dominantes tentam a todo o custo demarcar-se das práticas das restantes classes sociais. Para isso, escolhem desportos ou modalidades desportivas de difícil acesso a agentes sociais desprovidos de igual capital económico, cultural e social. Assim sendo, distanciam-se de modalidades massificadas – caso do futebol e futsal - e praticam desportos de elite – caso do golfe. Por seu turno, as classes populares, numa situação desfavorável, perspetivam, não raras vezes, o campo desportivo como um espaço onde podem tentar resistir às dinâmicas de dominação existentes e, para isso, revestem o desporto como um espaço onde depositam um conjunto de desejos e ambições. Este apresenta-se, então, como um campo que possibilita aos indivíduos ocuparem posições mais elevadas na estrutura social.

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No documento Género e Identidades no futsal português (páginas 44-51)