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As distinções entre trabalho e emprego

TRABALHO E POLÍTICAS SOCIAIS ATIVAS NA CONTEMPORANEIDADE

PROTEÇÃO SOCIAL, TRABALHO E EMPREGO NO BRASIL

1. O SISTEMA DE PROTEÇÃO SOCIAL BRASILEIRO E SEUS VÍNCULOS COM O TRABALHO E O EMPREGO

1.1. As distinções entre trabalho e emprego

Inicialmente, é importante problematizar a distinção entre trabalho e emprego, considerando-se que as políticas sociais voltadas a essa temática, ora são tratadas como de geração de emprego e renda, ora de trabalho e renda. Cabe nesta análise desvelar de qual das noções – trabalho ou emprego – essas ações mais se aproximam.

A distinção entre trabalho e emprego tem sido tema de interesse para alguns pensadores, entre eles destaca-se o francês André Gorz (2003, 2004). No Brasil, este tema aparece em estudos que abordam desde as interfaces entre trabalho, emprego e lazer (Blass, 1998, 2004), passando pela análise do emprego como estratégia de inclusão social (Silva, 2002), pela situação de jovens moradores em favelas no Recife (Araújo, 2002), entre outros. A investigação das trajetórias de vida de jovens portugueses em busca de trabalho, do sociólogo português Machado Pais (2001), por sua vez, mostra que os conceitos tradicionais de trabalho, emprego e desemprego manifestam-se desajustados em relação à realidade vivida por esses jovens. Essas reflexões possibilitam compreender quando e por que trabalho se confunde com emprego, compreendendo as concepções que cercam e informam tais noções, construindo as distinções entre: emprego, entendido como a forma que o trabalho assalariado assume nas

sociedades modernas; e trabalho, que pressupõe uma dimensão criativa, de saber fazer, de conhecimento, de autonomia (Arendt, 1998; Gorz, 2003 e 2004).

Parte-se da reflexão em torno da noção moderna de trabalho que, conforme Blass (1998, 2004), emerge na Europa Ocidental, no último cartel do século XVII, ganha contornos mais nítidos com a organização do processo fabril, no final do século XVIII na Inglaterra, e, mais particularmente com a generalização das relações capitalistas de produção, no decorrer do século XIX, constituindo-se assim a referência histórica na elaboração da noção de trabalho, criada e imaginada na modernidade européia ocidental.

Para Araújo (2002, p.151),

O trabalho fabril, assalariado e exercido basicamente pelos adultos, aparece como elemento propiciador de uma nova ordem social (...) o trabalho assalariado ou emprego torna-se central no modo de produção capitalista, enquanto gerador de capital e produtor de mercadorias com valor de uso e valor de troca, exercido pela coerção das necessidades orgânicas e sob o jugo de outrem. As atividades humanas e as relações sociais passaram a ser determinadas externamente e subordinadas a uma racionalidade instrumental. As práticas de trabalho parecem dissociar-se das demais atividades sociais, instituindo-se como separadas do restante do contexto social.

Ainda, segundo Araújo, a emergência, difusão e hegemonia progressiva da relação assalariada e do trabalhador vendendo sua capacidade de trabalho tornou-se a referência para perceber, pensar e organizar numerosas atividades, produzindo em conseqüência uma “naturalização do trabalho, desde então percebida como uma realidade universal e existindo desde sempre” (idem, ibdem).

Castel (1998) ressalta o fato de que reconhecimento e dignidade social estão profundamente relacionados com a inserção no mercado de trabalho. Essa concepção é herdeira da valorização que o emprego, ou melhor o trabalho assalariado, ganhou ao longo do tempo, a ponto do trabalho representar um suporte privilegiado de inscrição na estrutura social.

Ou seja, uma série de atributos foram vinculados ao trabalho assalariado, como os que caracterizam o status que situa e classifica um indivíduo na sociedade, impondo-se inclusive em detrimento de outros suportes, como o pertencimento familiar ou a inscrição numa comunidade concreta. Todavia, quando estes atributos vinculados ao trabalho pareciam ter-se imposto definitivamente, justamente “essa centralidade do trabalho é brutalmente colocada em questão” (Castel, 1998, p.496). Entretanto, mesmo com a continuidade do trabalho não mais garantida, o movimento e a reação dos desempregados, dos precarizados, diante do não-trabalho, do desemprego, confirma que o trabalho segundo Castel, “continua sendo uma refência não só economicamente, mas também psicologicamente, culturalmente e simbolicamente dominante” (idem, p. 578).

As metamorfoses do trabalho nas sociedades contemporâneas podem ser percebidas, conforme Blass (1998), nas mudanças no mercado de trabalho, nos paradigmas produtivos, no lugar e no sentido atribuídos ao trabalho na formação da sociabilidade e da identidade. Ressaltando a heterogeneidade das experiências de trabalho que marcam os processos de formação das sociedades capitalistas, mostra as diferentes idéias de trabalho no Ocidente e no Oriente. Enquanto no primeiro a idéia de trabalho é construída em oposição ao lazer, ao ócio – associando o trabalho freqüentemente à obrigação e mobilizando sentimentos de castigo, sofrimento, pena, cruz que se carrega, ao contrário do não trabalho vinculado ao ideário da recompensa, descanso, prêmio –, no segundo, a idéia de trabalho está fundada na oposição entre trabalho intelectual e manual e pode dignificar o homem, se possibilitar o desenvolvimento da criatividade, da inventividade. Em razão disso, a necessidade de o conceito de trabalho “ser redefinido diante da diversidade e da pluralidade de práticas emergentes de trabalho nas sociedades contemporâneas” (idem, p.150).

Nesse sentido, a idéia de trabalho recobre um campo mais amplo que o de emprego ou do trabalho assalariado, constituindo uma “atividade social presente em todas as sociedades, apesar das diferentes definições do que seja trabalho” (ibidem, p.151). Essas metamorfoses no mercado de trabalho e no emprego dificultam, também, as distinções entre atividades de trabalho e não-trabalho, haja vista que muitas atividades de não-trabalho aparecem, hoje, como fonte

geradora de empregos, de postos de trabalho assalariado. A autora se refere às atividades relativas à manutenção da casa, cuidado com crianças, velhos, doentes, assim como, atividades culturais e sociais que se desenvolvem fora das fábricas, por excelência, mundo do trabalho assalariado.

A fábrica moderna, na sua universalidade abstrata, e o emprego fabril, por conseguinte, tornam-se o paradigma das análises sociológicas do trabalho, reafirmando a cisão entre mundo do trabalho e do não- trabalho, devido à generalização do trabalho assalariado nas grandes empresas, sejam elas industriais ou não. A partir de então, emprego confunde-se com trabalho, sendo a forma histórica que o trabalho assume, nas sociedades modernas (Blass, 2004, p.23).

Analisando a formação do trabalhador assalariado brasileiro, Blass (2000) destaca o caráter marcadamente multicultural e multiracial desse processo, desconsiderado em muitas análises por focalizar basicamente a saga dos imigrantes brancos e europeus. Nesse sentido, um olhar de exaltação ao “desenvolvimento” trazido e proporcionado pelo imigrante europeu pode também ser encontrado em inúmeros trabalhos que analisam o desenvolvimento econômico e social em Santa Catarina, estado conhecido por suas influências alemãs, italianas, austríacas, polonesas, entre outras. Entretanto, a presença de indígenas nessa região – como em outras do Brasil – permanece relegada à idéia de atraso, de não desenvolvimento, de passado.

Nesse sentido, Blass se pergunta como é possível “entender a invisibilidade nesses estudos da presença dos negros, índios e mamelucos na formação do trabalhador assalariado brasileiro, em contraposição à visibilidade dos imigrantes brancos e europeus?” (2000, p. 03). Aponta como uma das respostas possíveis o fato de que as transformações na organização do trabalho artesanal e o surgimento da grande indústria, na passagem do século XVIII para o século XIX, na Inglaterra, constituem as referências históricas das análises sobre o processo de formação do trabalhador assalariado, aliada à concepção valorativa sobre a relação que os “nativos” pareciam ter – ou não ter – com o trabalho.

idéia de trabalho associada à execução de tarefas de caráter profissional, pagas, assalariadas e exercidas predominantemente por homens adultos nas fábricas e na esfera pública. O mundo do trabalho distancia-se da casa, da família, do local de moradia, e as atividades, antes integradas no cotidiano de vida, são consideradas como de não- trabalho porque elas se desenrolam fora do tempo definido para a venda da força-de-trabalho, ou seja, das atividades de emprego que se desenrolam nas fábricas. O trabalho, separado do sistema de relações sociais, confunde-se com emprego ou trabalho assalariado, fonte criadora de valor e da acumulação capitalista em torno dos quais se centralizam as análises sociológicas (Blass, 2000, p.03).

Por sua vez, o trabalho também possui uma linguagem, resultado de tradições culturais herdadas e de variadas experiências históricas, demonstrando, assim, que as práticas de trabalho fabril expressam uma das formas históricas de assalariamento das sociedades capitalistas ocidentais, uma vez que o trabalho “recobre um conjunto amplo de práticas que a noção de emprego ou de trabalho assalariado não abrange” (ibidem, 2000, p.04).

Entretanto, foi a noção de emprego que assumiu importância no decorrer do século XIX, influenciando a concepção de proteção social que surgia naquele período e que foi intensificada no segundo pós-guerra, com a criação das estruturas dos estados sociais. Como foi visto anteriormente, durante os Trinta Gloriosos viveu-se um quase pleno emprego, sendo que o fundamento das políticas sociais era o trabalho assalariado, estável e com jornada integral; o desemprego era um fenômeno marginal e, aos atingidos, reservava-se a assistência social (Silva, 2002).

Dentro de uma sociedade em que o mercado adquire uma função primordial, o trabalho assalariado articula em seu seio a relação entre o econômico e o social. O emprego torna-se central uma vez que as desigualdades criadas pelo mercado podem ser consertadas por um Estado protetor que elabora a sua proteção a partir de dois registros, ligados ao direito do trabalho e à proteção social (Silva, 2002, p.65).

O emprego ou o trabalho assalariado, portanto, carrega uma ambigüidade intrínseca, a da exploração e a da integração social. (Laville, 1999).

No Brasil, como discutido anteriormente, o sistema de proteção social – semelhante ao ocorrido em países do capitalismo central, mais precisamente os

europeus – também está assentado sobre o emprego, apesar de suas especificidades. Nessa direção convém conhecer em que medida a lógica de ativação vem se refletindo nas políticas sociais no país. Para tanto, situar mesmo que brevemente, as características do mercado de trabalho brasileiro, seguido da apresentação do sistema público de emprego no Brasil, pode contribuir na busca desse conhecimento.