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2. VOU APRENDER A LER PRA ENSINAR MINHAS CAMARADAS: PERCURSOS

3.1. Conjunturas sócio-políticas

3.1.1. Ditadura Militar e resistência política

Em 1964 um golpe de estado instaura a ditadura militar no Brasil. A partir desse momento, há uma forte mobilização dos setores populares e de esquerda para combater e resistir ao regime, que duraria 21 anos. Um dos espaços de contestação à ordem para um conjunto de mulheres foi o movimento estudantil (RIDENTI, 1990). Em conjunto com o ME, as mulheres integraram movimentos pela redemocratização e em especial o movimento pela Anistia, através de seus papéis “tradicionais” de mãe, esposa, filha ou amiga de presos e desaparecidos políticos (SOUZA-LOBO, 2011[1989]), mas também diversos outros. Neste sentido, Célia e Lídice, entrevistadas que atuaram na época, relembram:

Mas a gente foi fazendo cada coisa: movimento pela anistia, depois o movimento que chamava Trabalho Conjunto. Esse Trabalho Conjunto, ele era feito pelos já profissionais liberais, então assim os que já recentemente saíram da universidade de um movimento que era crescente na universidade, se articulando muito com a Igreja, o CES29, o CESE30, a Igreja progressista, baseada na universidade também, nos

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Centro Nacional de Estudos Sindicais e do Trabalho.

movimentos, no movimento estudantil em todas as suas tendências e movimento popular, que o movimento estudantil trabalhava... Eu fazia teatro, então eu fazia teatro nos bairros, formava pequenos grupos de teatro junto às igrejas, trabalhos de clubes de mães da periferia... (Célia, dirigenta estudantil 1972-1980)

Então nesse período nós tivemos um momento de intensa participação no movimento de mulheres porque quando eu fui presidente do DCE era um início de uma mobilização partidária em torno da organização das mulheres. 79 - 79? [duvidando] - acho que foi 77, 79 - tem que ver aí a data que foi a anistia - aí depois da anistia nós... Antes a gente tava pouco concentrada no movimento feminino por anistia e aí o próprio movimento feminista tinha participação grande na anistia. (Lídice, dirigenta estudantil 1976-1982)

Para Célia, a experiência do ativismo no movimento estudantil andou lado a lado com o movimento cultural. Esse processo que tinha centralidade no engajamento político através da arte foi também fundamental na resistência ao regime militar (SOUZA, 2016) e vivido dentro e fora da universidade.

Eu fazia teatro, também a gente fazia muitas intervenções em sala de aula, pequenos esquetes diante de qualquer movimento, qualquer acidente, qualquer problema a gente entrava nas salas, sempre tinha um grupo de teatro permanentemente organizado em algumas escolas - a nossa sempre teve, administração também. Aí o movimento foi crescendo assim, fazendo essas atividades, um pouco de caráter cultural praticamente estrito senso, outras não tanto assim, mas cinema tinha o ICBA31... Passava filmes de temáticas, passava assim, umas temáticas. Então passava assim, semanas de cinema isso, cinema aquilo... Também a gente muito com cinema nacional, com produção Rio-São Paulo, a gente sempre tava trazendo, sempre que podia trazer pra cá alguma coisa. Aí teve circo, um grupo de Regina Casé, aquela turma toda lá no teatro, o Teatro Vila Velha também que era uma cena, um centro de referência importante pra gente na época que João Augusto era o diretor, então tinha tantos trabalhos que eles faziam lá que eles faziam lá, como também apoiavam muito os trabalhos que a gente fazia na universidade. Tinha os Poetas da Praça32, tudo isso foi tendo. Poetas da Praça, a gente também fazia teatro de rua, fazia manifestações, juntava todo mundo que tinha coisas... [...] Várias vezes, inclusive algumas vezes - eu tenho até foto - de manifestação na Reitoria - na Reitoria não - na Reitoria foi essa que a gente foi pelo Vale (do Canela), que gente a fez por ali que foi pra ter outra saída, mas a gente fazia reunião na Faculdade de... na Politécnica e de lá a gente saia pra andar até o Campo Grande, mas a gente fazia um teatro, a gente fazia um esquete. Uma vez eu me lembro que eu, nós fizemos... Nós éramos as feiticeiras e tal, costuramos um monte de porcaria na boca do sapo contra o reitor. Era um feitiço contra o reitor, as três feiticeiras ali fazendo aquele monte de coisa assim, bruxaria. (Célia, dirigenta estudantil 1972-1980)

Dentro da universidade, o movimento estudantil fazia um intenso movimento de resistência à ditadura, utilizando murais para dar visibilidade às notícias que “vazavam” e chegavam até os jornais, revistas e materiais de circulação interna dos movimentos.

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Instituto Cultural Brasil-Alemanha, gerenciado pelo Goethe Institut.

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Movimento literário, social e político baiano iniciado em 1979 que tornou a Praça da Piedade em um ponto de cultura.

Sempre que podia, que sabia, que tinha acesso, passava notícias assim, do terror que tava instalado no país de alguma forma. Não era fácil, não podia também... Não tinha muito como você divulgar tantas coisas que aconteciam, mas as coisas mais graves a gente conseguiu chegar... Aí as escolas tinham... lá em Arquitetura tinha um mural muito bom que era naquele pátio do fundo da escola, que vai pra Física lá, então a gente tinha um mural ali de três faces assim, gigantes, maior que uma porta. Aí quem ia pras unidades de baixo passavam por ali e sempre viam. Era um mural artístico, Márcio Meirelles era estudante ainda no primeiro, segundo ano. Aí fazíamos assim, muito coloridos, muito cheios de imagens e tudo e aí as notícias chegavam, mas às vezes era notíciazinha desse tamaninho que tava no Estadão33, um pedacinho desse, a notícia, e a gente fazia aquela... [...] Ampliava! Um negocinho desse tamanho que saía no recorte do Estadão aqui a gente colocava mil coisas em volta pra chegar a atenção à notícia, sei lá, "Renato Rabelo foi preso em Paris"... Foi um dos casos que eu lembro da gente ter, botava a notícia assim de um preso político, uma pessoa que tava fugida do Brasil, tava perseguida, tava exilada, ninguém sabia nem onde estava aparecia em algum lugar, ou então pequenas notícias... Tudo que a gente podia a gente colocava nesse mural. O nosso mural era muito bom porque ele era trabalhado assim, de maneira a ser bem assim lido, era concorrido, mas também nas outras escolas todas tinham... Quando foi pra São Lázaro34 a parte toda de ciências, de ciências humanas e ficou muito bom também porque concentrou e era muito, eram murais bem feitos e como a gente tinha relação também dos diretórios entre si a gente trocava informações. (Célia, dirigenta estudantil 1972-1980)

Além disso, construíam mobilizações ligadas a pautas internas, como o jubilamento e questões estruturais dos cursos.

Começou o problema do jubilamento, que a universidade queria botar pra fora aqueles alunos que estavam repetindo sucessivas vezes as mesmas matérias e o movimento contra o jubilamento foi que nos levou à primeira greve integral da UFBA, 1975. Uma greve de 30 dias, fechou a universidade, não entrava ninguém. Veio o MEC35 pra cá, foi assim forte, impactou mesmo e assim era a nossa conjuntura. (Célia, dirigenta estudantil 1972-1980)

Foi antes de eu entrar na universidade teve uma greve geral. Foi uma das primeiras greve gerais do país que foi a greve contra o jubilamento, que tinha um período que, você tinha acho que era 5 anos ou 6 anos... Sei que quando você fazia um curso e levava muito tempo no curso, eu não sei te dizer o período - isso foi anterior a nossa presença da universidade - aí veio uma lei que jubilava, botava pra fora o estudante que tinha ultrapassado aquele prazo. Aí houve uma mobilização muito intensa na universidade que levou à greve geral. [...] O forte era a luta, naquele período, era a luta em defesa da universidade se manifestava muito por conta de existência da ditadura, uma luta digamos não era corporativa - não chegava a ser - mas era uma luta de reforço ou de valorização do aspecto profissional de cada escola. Uma plataforma pela melhoria do ensino de Arquitetura, da Economia, da Geologia, da Geografia... Era aquilo que mais mobilizava cada escola, cada faculdade. Ao lado disso a luta por liberdade, então a luta por anistia, a luta contra a ditadura. A minha escola, particularmente, era muito politizada e era uma escola no meio da rua que tinha e usava a sua porta como painel, a gente no diretório fazia painéis imensos,

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Jornal Estado de São Paulo.

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Campus da UFBA que sedia a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.

muito bonitos, feitos e criados por Terezinha - que hoje é uma grande feminista, Terezinha Gonçalves - e que fazíamos aqueles cartazes com toda a denúncia da corrupção a ditadura militar, dos acordos do Brasil feitos por aquele governo, mas que iam no sentido de entrega das riquezas nacionais no período do governo autoritário e que eram retratados e denunciados nas páginas dos jornais Movimento, do jornal Opinião e todas essas coisas eram transformadas em mural e postos na porta da Escola de Economia, que era simplesmente - e é - na praça da Piedade, então não tinha ainda aquelas grades que tem hoje, aquilo tudo era aberto e a população, as pessoas passavam e viam aqueles painéis e liam, e ficavam na porta da escola lendo as notícias que não liam nos outros jornais. (Lídice, dirigenta estudantil 1976-1982)