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2. VOU APRENDER A LER PRA ENSINAR MINHAS CAMARADAS: PERCURSOS

2.3. Transcrições: de ouvinte a contadora de histórias

Fiz, eu mesma, a transcrição das entrevistas, apoiada na premissa de que para um conjunto de estratégias qualitativas, e em particular a história oral, é fundamental que o processo de

transcrição seja feito, em todas as suas etapas, pela própria pesquisadora (FREITAS, 2006; SILVA, 2016). Esse trabalho detalhado e minucioso, e por vezes exaustivo, foi fundamental para compreender a importância da escuta como gatilho de memórias do vivido no encontro com cada entrevistada e seu poder propulsor de reflexões sobre as narrativas.

Ciente de que, para a história oral, a memória é uma forma de evidência histórica (COSENTINO, 2013, p. 29), ao transcrever, procurei produzir uma escuta atenta dos registros em áudio de cada entrevista. Durante esta fase do trabalho, pude afinar a percepção sobre elementos complementares de leitura do dito para além das narrativas em palavras, mas também reviver sua rítmica, silêncios e entonações, assim como evocar memórias de expressões faciais e gestos imbricados27. Desse modo, cabe afirmar que, em certa medida, o processo de transcrição foi o meu procedimento metodológico inicial de análise.

Busquei, nessa etapa da pesquisa, que os relatos das entrevistadas se mantivessem o mais próximos quanto possível de como chegaram até mim através dos atos de fala. Ainda assim, ajustes pontuais entre a linguagem falada e escrita foram necessários e os fiz em acordo com a abordagem metodológica proposta por Sonia Maria de Freitas: comprometida em minimizar interferências de sentido, mas atenta em desatar o que viesse a comprometer, mais tarde, o fluir da leitura (FREITAS, 2006). Interferi particularmente nos casos de repetição excessiva de palavras e aparição recorrente de vícios da fala. Mantive aqueles que acredito fazerem parte do linguajar comum que podem ser caracterizadas como erros ortográficos, mas que considerei relevantes para o fluxo da leitura. Também seguindo orientações dessa autora, encaminhei o relato às mulheres entrevistadas para que elas pudessem fazer eventuais correções e complementações de frases incompletas, assim como sinalizar trechos ou nomes que deveriam ser suprimidos ou modificados para garantir o anonimato de outras pessoas/coletivos.

Foi, especialmente, através do ato de transcrever que comecei a me estabelecer como pesquisadora /contadora de histórias dessas mulheres dirigentas do ME/UFBA. Compreendo o processo de contação de histórias a partir da experiência com a mestra griô Suely Carvalho, que afirma que “quando você ouve uma história ela se torna sua, logo você tem que ter atenção e sensibilidade para compreender as importâncias na narrativa para que, ao

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Trechos em que os gestos, silêncios e expressões foram relevantes para o relato fiz descrições sinalizadas entre “[]”. Igualmente, palavras e nomes que tinham sentido incompleto foram complementadas por mim dessa forma.

reproduzir, ela não perca sua potência”. Partindo dessa premissa, considero um tanto minhas as histórias dessas mulheres e acredito que o processo mais denso desse trabalho foi compreender como entrelaçar essas narrativas tão potentes sem que perdessem seu poder. Em um segundo momento, a escolha dos trechos de entrevistas que embasariam reflexões e comporiam o texto final se deu via “decomposição do texto” (QUEIROZ, 1991) em partes temáticas, passíveis de compreensão quando lidas e discutidas apartadas da unidade composta pela entrevista de onde foram extraídos. Essa escolha de análise de dados potencializou a produção de encontros, convergências e/ou fricções entre falas de diferentes entrevistadas sobre um mesmo tema. Escolhi reproduzir as falas das entrevistadas de maneira sintética quando fosse possível, mas mantive longos trechos quando acreditei necessário para a compreensão plena da experiência narrada, dialogando e refletindo junto a essas memórias para gerar, como produto final, uma composição de histórias. Conforme sinalizado por Mayris Silva, “a pesquisadora se apropria do método de pesquisa para compreender, analisar e fazer utilização dessa história por meio de um processo que transforma as palavras faladas em escritas, um árduo trabalho ao ser a mesma a responsável pela transferência ao papel” (2016, p.23). Esse processo me permitiu uma compreensão aprofundada das potências de cada narrativa, além da reflexão sobre as aproximações possíveis e os contrastes existentes entre relatos de entrevistas diferentes.

Não foi um caminho fácil. Primeiro, por se tratar de um trabalho sobre a narrativa de outra(s) pessoa(s), foi desafiador selecionar os trechos que iriam compor o trabalho e estabelecer categorias analíticas. Segundo, porque a minha proximidade com uma parte dessas mulheres e profunda identificação com os relatos de todas e o tema do trabalho tornou o processo ainda mais complexo e foi só com o tempo e a repetida escuta que eu pude pensar em como poderia organizar essas memórias de forma a relevar sua importância, sem perder as trilhas que organizei como objetivos para este trabalho. Por fim, compreender meu papel engajado de narradora e contadora das histórias que escutei foi um processo lento que foi se tornando confortável ao longo do tempo, com apoio das referências acadêmicas, das mulheres entrevistadas e de outras que acompanharam o processo, bem como através das minhas reflexões sobre o meu envolvimento com o tema, considerando a minha própria experiência como mulher dirigenta do ME/UFBA.

Para orientar a análise, inicialmente defini as categorias a partir do roteiro de entrevista, mas, após sucessivas escutas e leituras do material, reorganizei-as em: vivência estudantil e

interseccionalidades (contemplando os relatos em que as questões de classe, raça, gênero, sexualidade e outras intersecções ficaram mais evidenciadas e suas influências nas experiências na universidade e no ME); práticas políticas (as reflexões sobre como se construíam as formas de atuação do ME e as práticas femininas/feministas); gênero e violência (categoria emergente, surgida pela relação entre os temas que foi feita por algumas entrevistadas); e, por fim, impacto da experiência (que optei por tratar em um capítulo à parte, por se tratar de uma memória/reflexão sobre o presente).

As categorias dialogam diretamente entre si e reconhecer que um trecho de entrevista poderia auxiliar na compreensão de diversas questões permitiu perceber possíveis entrelaçamentos. Ter o feminismo negro interseccional como lente de observação foi marcante nesse sentido porque o destaque das avenidas identitárias que atravessam essas mulheres permitiu que inúmeras questões imbricadas às categorias viessem à tona, formando assim uma teia complexa de possibilidades analíticas.

Foi através dessa multiplicidade de abordagens, técnicas e recursos, fundada sobre um exercício constante de visitação das narrativas gravadas, e posteriormente escritas, que comecei a compor essa memória coletiva de mulheres dirigentas do movimento estudantil da UFBA.

Célia Bandeira 1972-1980 1976-1982 Lídice da Mata Amélia Maraux 1986-1994 1997-2007 Isadora Salomão Daniele Costa 1999-2005 2005-2014 Leila Carla Ferreira Liliane Oliveira 2009-2013 2013-2017 Lorena Pacheco

3 PISA LIGEIRO28: MULHERES DIRIGENTAS E O MOVIMENTO ESTUDANTIL

DA UFBA

A presença e o reconhecimento das mulheres nos espaços de poder não se deram de forma pacífica ou uniforme. Apesar de fazer parte dos principais movimentos sociais do país em luta por melhorias sociais – ocupações de terrenos urbanos, movimentos de saúde e de melhoria de transportes, nas comunidades de base e em lutas específicas, como aquela pela anistia nos anos 70 –, somente os movimentos centrados sobre as questões “femininas” ou aqueles auto- organizados eram considerados movimento de mulheres (SOUZA-LOBO, 2001[1991]). Na política, a socialização e os modelos de ativismo ainda são essencialmente masculinos – compreendidos como sujeito universal – e a ocupação dos movimentos sociais por parte das mulheres gerou e segue gerando uma profunda reorganização dos seus padrões (GODINHO, 1991; BONETTI, 2003; SOUSA; BEZERRA, 2006; OSÓRIO, 2014; ARANGUIZ, 2015; SILVA, 2016).

Considero que uma das riquezas dessa pesquisa é a sua abrangência temporal. No entanto, aproximar relatos de mulheres que viveram em diferentes épocas da nossa história é desafiador, principalmente pela possibilidade de resultar em simplificações no processo de análise. Nesse contexto, o feminismo interseccional foi uma eficiente ferramenta que ajudou a olhar para essas histórias com sensibilidade e profundidade, uma vez que aponta para o intercruzamento de avenidas identitárias como forma de fazer emergir questões trazidas pelas entrevistadas e compreender sua dimensão temporal. Para organizar melhor a leitura, optei por dispor os depoimentos por ordem cronológica de vivência na universidade, segundo a linha do tempo abaixo.

Linha do tempo – mulheres dirigentas e períodos que participaram do movimento estudantil da UFBA

28 Parte de um cancioneiro popular difundido entre os movimentos sociais e com diversas versões, que na

Marcha Mundial das Mulheres canta: “Pisa ligeiro, pisa ligeiro/quem não pode com as mulheres, não assanha o formigueiro!”.

Inicio esse caminho trazendo parte dos relatos das mulheres sobre a conjuntura política da época em que fizeram parte do movimento estudantil, compreendendo que conhecer os momentos políticos que as entrevistadas vivenciaram, através de suas memórias, ajuda na identificação de padrões da prática política e lugares de fala que, na análise de outras dimensões, aparecerão imersas em suas noções sobre gênero e práticas políticas.

Posteriormente, apresento os relatos das entrevistadas sob quatro dimensões analíticas: vivência estudantil e interseccionalidades; práticas políticas do movimento estudantil; práticas femininas e feministas; e, por fim, relações de gênero e violência. Optei por essas construções por compreender, a partir da análise do material produzido, que primeiramente a forma como a vivência na universidade impactou nessas mulheres afeta e se relaciona diretamente com sua presença no ME e, a partir dessa presença, é possível perceber diversas formas de atuação. Finalmente, apresento a reflexão que as mulheres fizeram a partir dos seus relatos, memórias e vivências para significar como a experiência de ser mulher dirigente do ME sensibilizou suas trajetórias de vida.