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DIVERSIDADE CULTURAL – SOCIALIZAÇÃO DE IDENTIDADES

4 O CAMINHO DO MEIO: EU CURTO MEU SOM, MAS RESPEITO O SEU

4.2 DIVERSIDADE CULTURAL – SOCIALIZAÇÃO DE IDENTIDADES

Meu propósito de cursar música era buscar um aperfeiçoamento técnico e teórico, no entanto, ao decorrer do Curso, entendi que a música tem o poder de ajudar na educação e na formação de um cidadão melhor. Para isso é necessário que o professor (principalmente os de origem conservatorial como é o meu caso) compreenda que a

música pode ser mais simples e produzir excelentes resultados, e entender que há toda uma questão cultural que envolve o gosto do indivíduo (Edypo, 2º semestre, 2010).

Edypo apresenta o perfil do músico erudito, cujo principal objetivo é a excelência na performance instrumental – não que os outros músicos não busquem a perfeição também, que fique bem entendido. Iniciou seus estudos no Conservatório Carlos Gomes por vontade do pai. Nos primeiros anos não entendia bem o sentido daquela atividade. Com o passar dos anos interessou- se cada vez mais pelo seu instrumento, o violão, e buscou a graduação – segundo ele mesmo – para o “aperfeiçoamento técnico e teórico”, mas a Licenciatura não pode satisfazer os anseios de Edypo.

No entanto – e este é um dado cada vez mais frequente – os estudantes do Bacharelado revelam as dificuldades profissionais advindas da carreira do profissional egresso desse Curso. Como o campo para o instrumentista no nosso Estado é escasso, os bacharéis sentem necessidade de ministrar aulas, mas o diploma do Bacharelado não lhes permite ingressar na rede oficial de ensino. Ao conversar com um desses músicos, Edypo optou pela Licenciatura e pôde entender que a música tem outras funções igualmente dignas. A descoberta da música como cultura é uma experiência única para os estudantes e essa perspectiva é estimulada pelas discussões em sala de aula nas disciplinas Música e Sociedade e Cultura Popular, fundamentadas em autores como John Blacking, co-fundador da etnomusicologia nos Estados Unidos nos anos 1960 e é ele quem define pela primeira vez a música como sistemas culturais e como capacidade humana.

“Música” é um modelo do sistema primário do pensamento humano e uma parte da infraestrutura da vida humana. O fazer “musical” é uma qualidade especial da ação social que pode ter importantes consequências para outros tipos de ação social. “Música” não é reflexiva; ela é também generativa, tanto quanto sistema cultural quanto capacidade

humana, e uma importante questão para a musicologia é descobrir como as pessoas dão sentido à “música” numa variedade de situações sociais e em diferentes contextos culturais, e distinguir entre capacidades inatas humanas que indivíduos usam no processo de dar sentido à “música” e às convenções sociais que norteiam suas ações51 (BLACKING, 1995, p. 223). (grifos do autor)

Fica evidente em sua definição o atrelamento da música ao pensamento e à vida, criando comportamentos e gerando sentidos para a comunidade52. Para compreendermos a música enquanto capacidade humana é necessário conhecermos as diferentes acepções de música para os diferentes povos. Enquanto sistemas culturais, a música remete a uma rede de significados, no sentido estabelecido por Geertz (1978) que tem um olhar semiótico sobre a cultura. Para ele, o conceito de cultura está em construção, o que nos leva a pensar sobre uma pluralidade de culturas, já que a cultura é constituída de teias de significados.

Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado (GEERTZ, 1978, p. 15).

51 “Music” is a primary modeling system of human thought and a part of the infrastructure of human life. “Music” making is a special kind of social action which can have important consequences for other kinds of social actions. “Music” is not reflexive; it is also generative, both as cultural system and as human capability, and an important task of musicology is to find out how people make sense of “music” in a variety of social situations and in different cultural contexts, and to distinguish between the innate human capabilities that individuals use in the process of making sense of “music” and the cultural conventions that guide their actions (BLACKING, John. Music, Culture & Experience. Editado por Reginald Byron. Chicago: University of Chicago Press, 1995, p. 223). (grifos do autor)

52 As primeiras contribuições para o estudo da etnomusicologia vêm do físico e foneticista Alexander John Ellis, que em 1885 reconheceu a diversidade da escala musical em diferentes culturas. A invenção do fonógrafo também contribuiu para a difusão dessa diversidade, na medida em que serviu para rever falsos conceitos da música folclórica. Foi constatado que ela tinha estabilidade e era sistematizada (BLACKING, 1995, p. 223).

Para Blacking, a interpretação da música envolve conhecimentos que vão além dos conhecimentos teóricos, estabelecendo assim a diferença entre os instrumentos e registros sonoros e a cultura de um povo.

Os instrumentos musicais e transcrições ou partituras da música que é tocada nela não são a cultura de seus executores: eles são as manifestações de cultura, os produtos de processos sociais e culturais, o material resulta das “capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade53 (BLACKING, 1995, pp. 226-227). (grifos do autor)

Segundo Blacking, a música deve ser estudada em seu contexto, por ela mesma, na sua representação simbólica do contexto social. Além das fontes primárias, precisamos reconhecer a música como capacidade humana. Por isso, não é o vocabulário técnico que define a música, mas a cultura que a reveste. A música para Blacking é um modo de pensamento e ação. Para ele, os modos de pensamento complementam-se uns aos outros e a música contém diferentes significados em diferentes partes do mundo. Portanto – retornando ao enunciado de Edypo – é impossível estudar música sem refletir sobre a questão

cultural.

Todos os povos têm uma cultura, isto é, um sistema complexo de regras, de técnicas, de crenças. Logo, todos os homens são marcados pelo reconhecimento do grupo ao qual eles pertencem. A cultura não é somente uma série de elementos, de fatos sociais, mas é, acima de tudo, uma maneira de interferir neles. A cultura é o fruto de uma experiência particular, de um passado comum e de uma memória coletiva.

A cultura é universal. Ela se manifesta nos diferentes campos da vida social: modos de aquisição da subsistência, sistema de produção técnica,

53 Musical instruments and the transcriptions or scores of the music that is played on them are not the culture of their makers: they are the manifestations of culture, the products of social and cultural processes, the material results of the “capabilities and habits acquired by man as a member of society” (BLACKING, John. Music, Culture & Experience. Editado por Reginald Byron. Chicago: University of Chicago Press, 1995, pp. 226-227). (grifos do autor)

instituições e organizações familiares e políticas, mas sobretudo crenças, expressões artísticas. É interessante observarmos como as concepções artísticas acompanharam o desenvolvimento do pensamento antropológico cultural. Enquanto o europeu acreditava ser o único detentor do conhecimento,

o selvagem não tinha nada para lhe oferecer. Na verdade, ele não poderia

pensar na hipótese de alguém, isolado da civilização, produzir arte, música. O advento da etnografia motivou novos estudos, como a etnomusicologia. Diferentes maneiras de se compreender o outro e sua música. No entanto, podemos constatar que as raízes dos estereótipos da música produzida fora dos padrões europeus permanecem até hoje. A atitude cultural do músico continua sendo a consequência do olhar educado pelo olhar do outro: viajantes, europeus, colonizadores. No século XIX, naturalistas como Humbolt foram portadores do tráfico cultural para a Europa.

Humbolt transculturou para a Europa conhecimentos produzidos por americanos num processo de defini-los como separados da Europa. Após a independência, as elites euro-americanas reimportariam aquele conhecimento enquanto conhecimento europeu, cuja autoridade legitimaria o poder euro-americano (PRATT, 1999).

É apenas com Franz Boas (2004) que vamos ter o início de um novo comportamento no trabalho de campo, onde o objeto antropológico será considerado e valorizado dentro de seu contexto. No início do século XX, Boas faz uma primeira crítica desta definição para impor uma abordagem absolutamente particularista de cultura54. O antropólogo americano de origem alemã afirma que as formas e os modos de vida dos homens não evoluem como um modelo linear e em função do nível do seu desenvolvimento mental, mas que eles são o produto de processos históricos locais. Esses processos históricos são determinados não somente pelas condições do meio no qual vive