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A fim de investigar os sentidos produzidos sobre diversidade sexual por jovens de comunidades rurais estudantes do IFRN-Campus São Paulo do Potengi, compartilhamos as primeiras associações produzidas pelo grupo de discussão:

Sexualidade? Vixe, vem várias palavras, tipo: vem a questão de sentimento, vem a questão de… é a maneira diferente de você sentir e trans… você sentir e passar pros outros. Varia da sua criação, de como você vive, ambiente escolar, das relações… de como você constrói suas relações sociais no meio. Se você está aberto também pra conhecer o novo (Luiz Gustavo, 19 anos).

Eu entendo diversidade sexual como… digamos que a nova... moda da atualidade. Sim, porque a diversidade é coisa que existe em nossas vidas, desde sempre... Eu acho que essa década, agora, é a década da aceitação, do discurso da aceitação. Aceitar que as pessoas… que o amor não está restringindo a gêneros diferentes. Porque muito se tinha que com sexualidade e todos os outros tipos de atividades sexuais era por desejo, (...) e hoje se vê mais como o amor, gostar do outro gênero,

sociedade tem que aceitar isso e… eu vou assim, dizer o lado mais comum: é algo que você não escolhe, não tem esse discurso “Já tá em você, você nasce assim”, que muitas as pessoas tinham como doença, algo que tinha que ser tratado, sendo que é simplesmente gostar de alguém… e não… (Adailton Ramos, 19 anos)

Não, eu sei, esse lance dos discursos que as pessoas têm que aceitar… mas é uma opinião minha, eu não gosto desse discurso de aceitação, eu gosto do discurso do respeito. Eu respeito a sua individualidade, você pode ser o que você quiser, você pode gostar de quem você quiser, você pode desejar quem você quiser e o melhor de tudo, você pode amar quem você quiser. Que é uma coisa linda. Gente, o amor tem que ser proliferado, não restringido, abafado… que coisa horrível! As pessoas querem se gostar, tão lá se curtindo… deixem elas ser felizes (Raquel Cosinele, 18 anos).

Nesse panorama, percebemos que os repertórios produzidos pelo grupo acerca da diversidade sexual voltam-se para os sentimentos e para a emergência de um novo discurso o qual redefine práticas sexuais, vinculando tais práticas a uma concepção não naturalizada, mas construída a partir de trocas afetivas. Em relação aos sentimentos, Sousa Filho (2012) reflete-os enquanto construções sociais e históricas para os quais os sujeitos imprimem significações e sentidos.

Nesse cenário, Gomes (2017) considera a identidade de gênero complexa por envolver pensamentos, comportamentos e emoções do indivíduo acerca dele mesmo. Com efeito, podemos entender que esses aspectos são constituintes da identidade de uma maneira geral. Além disso, o autor aborda as relações de poder, na perspectiva opressora e excludente, influenciando o sentimento de inferioridade em virtude de hierárquicas relações quanto aos gêneros e, ampliamos, quanto às diversas expressões sexuais.

Desse modo, considerando as práticas discursivas do grupo e dos autores mencionados, a princípio, podemos indicar a produção sobre o sentimento, bem como o comportamento e o pensamento a partir de uma perspectiva de distinção, a exemplo do trecho “a maneira diferente de você sentir”. Refletindo sobre o termo “diferente”, parece-nos que esse contraste vai de encontro à maioria, às ditas normas naturalizadas e, especificamente, à heteronormatividade.

Nessa perspectiva, relacionamos os repertórios em questão com a atuação das tecnologias do biopoder, enquanto componente indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, a partir do controle dos corpos para a produção, almejando tanto a docilidade do corpo, quanto sua alta eficácia (Foucault, 1976/1999). Destarte, para o autor, o biopoder atravessa toda a sociedade e sendo utilizada pelas diferentes instituições sociais, sustenta hierarquias, além de hegemonias e relações de dominação.

Assim, podemos entender o enunciado sentimento enquanto uma construção social e histórica, atravessada pelas relações de poder, as quais parecem impedir as expressões e vivências das diversas sexualidades no contexto rural. É como se esse sentimento estivesse em uma posição aquém da determinada pela norma, logo não é permitido sentir nem ficar à vontade para mostrar-se.

Ademais, a diversidade sexual aparenta ser novata na zona rural. Na realidade, se, por um lado, causa estranhamento, por outro, parece convidar as pessoas a entrarem em contato com esse mundo tido como diferente: “Se você está aberto também pra conhecer o novo”. É como se dissesse: “caso você, sociedade, comunidade rural, esteja aberta para conhecer o mundo da diversidade, estamos à disposição”. De modo que, estar aberto indica uma condição obrigatória para acessar esse universo. Afinal, ideias fechadas e preconceituosas já existem em excesso sociedade afora, logo para adentrar o novo, se e somente se estiver aberto.

Nesse sentido, Sousa Filho (2012) discorre sobre os efeitos que as ideologias têm ao representarem, por exemplo, o sexo e as ditas marcas de gênero nos corpos, ratificando a falaciosa perspectiva da diferença sexual e da, consequente, heterossexualidade obrigatória, colocadas por uma suposta naturalização biológica.

Ainda na perspectiva da diversidade sexual enquanto principiante no campo, compartilhamos a seguinte produção:

Mas tipo, achar estranho um casal de homens segurando as mãos, menina, é a coisa mais linda! Eu já cheguei, eu já pedi, eu tava andando num shopping, aí tavam lá o casal, coisa mais linda, com as pernas cruzadas, um olhando pro outro, aí eu olhei assim, aí eles muito gentis, aí eu congelei, paralisei mesmo, aí eu disse: "Tudo bem?", aí ele fez "Tudo!", eu falei "Vocês são tão lindos, eu queria até tirar uma foto!", aí ele "Não, pode tirar!", aí eu tirei, tá salva até hoje. É exatamente por não ter o contato, por não ver essas coisas aqui em São Paulo do Potengi, porque as pessoas se escondem... porque tem vergonha, coisa do tipo. Aí eu cheguei, no meio do (nome

do shopping), lá na frente das (nome da loja), aí eles tavam lá... (Raquel Cosinele, 18 anos)

A partir dessa prática discursiva, podemos apreender que presenciar um casal homoafetivo em um local público chamou atenção de Raquel, não de modo negativo, mas no sentido de novidade, de diferente, de ruptura do cotidiano, mobilizando-a ao ponto de abordar o casal desconhecido e solicitar o registro do momento, o qual guarda até os dias atuais. Sendo assim, notamos um estranhamento da situação, não na face negativa do termo, mas no sentido de novas configurações de relacionamentos.

De fato, refletimos que vivências homoafetivas não são novidades e fazem parte da história de inúmeras sociedades, de modo que as punições sociais e os dispositivos de controle silenciam e reprimem as diversas sexualidades. Por outro lado, graças, em especial, às lutas dos movimentos sociais, os modos de vida da comunidade LGBTTTI têm conquistado espaços e garantias de alguns direitos.

Entretanto, não podemos dizer que os efeitos dessas lutas chegam de forma igualitária nos diferentes territórios. O fragmento em questão traz o contraste entre a cidade, simbolizada pelo shopping, e o município pólo da região Potengi, onde o Campus IFRN-SPP está instalado. Desse modo, conforme prática discursiva referida, na zona urbana, os casais de homens seguram as mãos, enquanto nos contextos interioranos e rurais, “as pessoas se escondem... porque têm vergonha, coisa do tipo”.

À vista disso, compreende-se que o sentido, produzido sobre a diversidade sexual, quanto à novidade ante as diferentes formas de se amar e se relacionar, associa-se às políticas conservadoras, relações de poder e ideologias, que, sendo intrínsecas, desenvolvem e reforçam regras, naturalizando, por exemplo, o binarismo entre os sexos e a heteronormatividade. Dito de outro modo, primeiramente, normatiza-se para, em seguida, tornar normal e natural. Por outro lado, cotidianamente e hodiernamente, novos modos de ser e viver manifestam-se e interagem entre si, instituindo uma contínua transformação social e cultural.

Quanto à compreensão da diversidade sexual como um novo discurso, destacamos, inicialmente, o jogo de posicionamentos entre participantes do grupo, envolvendo os termos aceitação e respeito.

como suas circunstâncias de produção (Méllo et al., 2007). Além disso, conforme as reflexões de Spink e Medrado (2013), negociação e poder se apresentam no jogo de posicionamentos.

Dessa maneira, a partir das produções “discurso de aceitação” e “discurso do respeito” identificamos o jogo em questão. Na verdade, percebemos a expressão aceitação em resposta a uma solicitação, a qual parte de uma “autoridade”, convocando, obrigatoriamente, “toda sociedade, todo planeta” para “se adaptar” e aceitar uma nova realidade, no caso, a diversidade sexual. Por outro lado, o termo respeito parece relacionar-se a algo mais interno, que, se distanciando das imposições hierárquicas, indica maior ampliação bem como mais espontaneidade e maturidade diante de um mundo tão diverso.

Ainda quanto ao sentido discurso, destacamos o trecho: “Já tá em você, você nasce assim’, que muitas as pessoas tinham como doença, algo que tinha que ser tratado, sendo que é simplesmente gostar de alguém…” (Adailton Ramos, 19 anos). Diante disso, pensamos sobre a despatologização da homossexualidade e os diferentes tempos históricos, bem como acerca dos discursos predominantes em cada um, juntamente com seus saberes e verdades, atrelados a determinados interesses e relações de poder nas diversas instâncias sociais; além de imaginar como esse sistema impacta os indivíduos e a sociedade.

Nesse sentido, Foucault (1976/1999) aponta, devido ao poder, a nossa obrigatoriedade em não só produzir verdade, mas em encontrá-la e confessá-la, tendo em vista, inclusive, o seu caráter de lei e de produção de discurso verdadeiro, o qual é intrínseco ao poder. Ademais, aborda que nossa sociedade se caracteriza pela elaboração e difusão de discursos como verdades, aliados a determinados poderes.

Tais verdades podem se configurar em conteúdos culturalmente compartilhados e de longa duração histórica, oferecendo-se como materialidade discursiva que, por sua vez, poderão se fazer presentes na elaboração de sentidos sobre os fenômenos, daí alguns desses sentidos sobre a diversidade sexual compor elementos conservadores e tradicionais.

Perante o exposto, indicamos que durante o referido processo dialógico, foi recuperada a associação entre patologia e ruptura com a “natural” heteronormatividade. Isto é, a produção resgatou um discurso institucionalizado, no caso, pelos saberes médicos e jurídicos, o qual foi tido como verdade em um dado tempo histórico. Por outro lado, atrelados ao intercâmbio social e às relações de poder, os discursos mudam com o passar do tempo, de modo que os movimentos sociais transformaram tanto o cenário da patologização quanto o da determinação biológica e

seus desdobramentos; atualmente, voltando-se, inclusive, para discursos de respeito e valorização das diferenças.

Em linhas gerais, as práticas discursivas apontam para a vivência da sexualidade de modo privativo e secreto, resguardando o corpo e reforçando o binarismo dos sexos e dos gêneros. Em contrapartida, produções discursivas refletem sobre discursos enquanto verdade e norma, convocando o grupo a participar, criticamente, do processo de construção social. A seguir, partilharemos os atravessamentos do IFRN-SPP sobre o cenário, instituição social para a qual nos voltaremos no próximo eixo.