• Nenhum resultado encontrado

Soraya Cunha Couto Vital

18

Resumo

A partir de pesquisas acerca do desenvolvimento psíquico e dos desafios à emancipação humana, o presente artigo objetiva tecer análise crítica a respeito do filme Coringa como ilustração e materialização do caráter contraditoriamente humanizador e alienador com que a objetivação do ser humano se realiza no interior da sociedade contemporânea. Para tal, considera-se o referencial teórico-metodológico da Psicologia Histórico-Cultural. Como resultado, compreende- se que é preciso ir além da aparência dos fatos veiculados pela ótica cinematográfica, da visão individualizada e da culpabilização do sujeito, mas promover reflexão sobre suas condições biopsicossociais e das múltiplas contradições da sociedade, para a superação de uma visão reducionista e alienada de suas relações e práticas vinculadas à saúde e ao sofrimento psíquico. Palavras-chave: Filme Coringa, Violência, Sofrimento psíquico, Psicologia Histórico-Cultural.

16 Mestrando em Psicologia no Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – PPGPSIC/UFMS, Brasil.

Bolsista CAPES. E-mail: tiagosalsa@hotmail.com

17 Doutora em Educação. Professora Titular dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – PPGEdu e PPGPsi/UFMS, Brasil. E-mail: surt@terra.com.br 18 Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS, Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: sorayavital@hotmail.com

Introdução

Realizar uma análise fílmica em contexto científico é mais do que entretecer um conjunto de argumentos (positivos e/ou negativos) que podem produzir um resultado fundamentado no olhar despretensioso de um espectador. É compreender que tal atividade requer um relativo afastamento do conteúdo imediato e a imersão na multiplicidade de fatores que integram a obra filmada/veiculada, a fim de que seja possível a apropriação de ideias, nuances, pontos e contrapontos que regem um determinado fenômeno considerado em seu enredo.

Considera-se aqui o filme como uma obra de arte, que, para além da estética, pode ser entendida como um instrumento que retrata aspectos da vida cotidiana e que pode levar os sujeitos a uma análise menos superficial da vida humana. Por isso, empregam-se os pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural, fundamentados nas concepções de Vygotsky (1896-1934), como arcabouço teórico-metodológico para subsidiar esse artigo.

É uma teoria psicológica baseada no Materialismo Histórico-Dialético, que contribui para a compreensão do homem como sujeito histórico e constituído nas/por meio das relações sociais e propõe uma visão histórico-crítica da sociedade. Considera também as realidades objetiva e subjetiva enfrentadas pelos trabalhadores para organizarem e desencadearem um processo revolucionário, transformador.

Do ponto de vista objetivo, entende um movimento histórico-político-social-econômico que adequou as instituições sociais à uma estrutura econômica que colocou a burguesia na condição de classe economicamente dominante. Aliadas a essas condições objetivas, as condições subjetivas também foram conformadas, representadas pelo surgimento de uma forma de conceber a realidade humana pautada no entendimento da burguesia.

A partir desses pressupostos é que objetiva-se realizar uma análise crítica a respeito do filme Coringa (Warner Bros, 2019) como ilustração e materialização do caráter contraditoriamente humanizador e alienador com que a objetivação do ser humano se realiza no interior da sociedade contemporânea e suas implicações à formação de sua individualidade. Para isso, apresenta-se, de forma inter-relacionada, uma síntese da obra cinematográfica, com identificação de elementos histórico-psico-sociais-culturais percebidos em seu conteúdo, e o contributo da Psicologia Histórico-Cultural para analisá-los.

Coringa, o filme em síntese

O Festival de Cinema de Veneza e a data de 31 de agosto de 2019 foram o local e o momento escolhidos para o lançamento do filme Coringa – produzido pelas companhias americanas de cinema Village Roadshow Pictures, DC Films Sikelia, Productions Joint Effort e Productions Green Hat Films, entre outras, e com distribuição internacional realizada por Warner Bros Pictures.

Denominada originalmente como Joker, a obra foi protagonizada por Joaquin Phoenix, no papel de Arthur Fleck/Coringa, e roteirizada por Todd Phillips e Scott Silver, que, a partir da ambientação dos anos 1980, partiram da existência anterior do personagem, como malfeitor das histórias em quadrinhos e contraventor inimigo do herói Batman, mas com o desenvolvimento de um enredo que desviou do que era convencional a ele.

Inicialmente, Arthur Fleck, um homem adulto, filho de pai desconhecido, reside com a mãe doente em um pequeno apartamento na periferia de Gotham City, mas apresenta um comportamento diferenciado, porque emite uma risada contínua, incontrolável e desagradável, às vezes em tom de gargalhada, em momentos em que suas emoções o conduzem a um quadro de nervosismo.

A mãe, porém, parece não ter capacidade cognitiva para compreender o transtorno do filho, visto que desde criança o apelidou de Happy (feliz), afinal sempre ria muito, o que, consequentemente, o fez vislumbrar a carreira de humorista. Mas suas risadas fora de contexto geravam desconforto, problemas sociais e de relacionamento, incompreensão por parte das outras pessoas e reiteradas agressões gratuitas nas ruas cidade, onde trabalhava como palhaço.

Essa não foi uma patologia criada pelos roteiristas da trama. As gargalhadas incontroláveis, inapropriadas, compulsivas e irritantes do personagem foram levadas às telas de cinema com base na realidade da vida de pessoas que têm uma doença denominada epilepsia gelástica, que, não por acaso, inspirou o Coringa de Joaquin Phoenix.

Segundo o Dr. Francisco Javier López, neurologista e coordenador do Grupo de Estudo de Epilepsia da Sociedade Espanhola de Neurologia (SEN), em entrevista concedida ao Jornal El País, com veiculação em site brasileiro, a epilepsia gelástica

Costuma ocorrer mais em pacientes que estão começando a sofrer os sintomas de uma demência. O riso inapropriado seria uma reação à causa inicial de uma deterioração cognitiva (...) ou outras doenças neurodegenerativas em que há afetação do bulbo. (...) É algo raro, não é muito comum, representa 0,2% de todas as crises epiléticas. (...) muitas vezes não se encontra a causa, mas em uma proporção importante de casos ela se deve à existência de uma série de tumores, chamados hamartonas hipotalâmicos (são

formações benignas situadas no hipotálamo), que produzem este tipo de sintomas, embora às vezes também se deva a outro tipo de afetações, como displasias ou alterações no córtex cerebral. (López, 2019, s.p).

Na narrativa inicial do filme o protagonista é apresentado como um portador de transtorno mental, que foi atendido por uma funcionária do serviço público de saúde (não há clareza em ser assistente social ou psiquiatra), recebe medicação há algum tempo e, mesmo sem tratamento adequado, não demonstra sinais de perigo nem atitudes violentas, pelo contrário, parece ser um ser humano bom, agradável e que gosta de divertir crianças.

Contudo, em um dado momento, é humilhado e exposto, ao participar do programa de TV do qual é fã, devido a sua apresentação desastrosa em stand up comedy, que, por causa da situação vexatória, causou-lhe uma crise de risadas incontroláveis e incompreendidas pela plateia.

Como se não bastasse, outras cenas mostram ocasiões em que está trabalhando na rua, vestido de palhaço e segurando uma placa com registro de marketing de produtos/serviços, e é zombado e atacado por um grupo de jovens. O medo e a insegurança provocam-lhe as gargalhadas e é espancado em via pública, sem receber ajuda de ninguém. Ao correr dos agressores, é perseguido e cada vez mais agredido, como se estivesse participando de um jogo de “gato e rato” ou de uma atividade normal do cotidiano daquelas pessoas. Quando volta ao escritório que o havia contratado para o serviço, é demitido, como se fosse inapto ou culpado pelos ensejos.

Há então, em sequência de dias, outra conversa com a funcionária pública, que comunica- o sobre a falta de medicação e o cancelamento dos atendimentos por parte do governo, sem qualquer justificativa, o que leva Fleck a dizer: “A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não a tivesse”.

A partir daí seu comportamento começa a mudar de direção. Após uma vida negligenciada, sem tratamento específico, encontros terapêuticos e atenção à sua patologia, lembranças sobre abandono e total ausência de medicação adequada, Arthur parece não mais saber lidar com suas questões internas, psicoemocionais, e desejar defender-se ou vingar-se dos seres humanos: agride e mata diversas vítimas, inclusive sua mãe, ao que parece.

Em pontos culminantes da obra, cria e traveste-se de um personagem que prefigura sua realidade histórica, psíquica, social e cultural – o elegante e dançante palhaço Coringa, parece representar, entre outras coisas, a sociedade de aparências e violências, a falta de empatia e

Finalmente, ao retornar caracterizado ao palco de seu programa favorito, por causa do sucesso de um vídeo que o ridiculariza e expõe em redes sociais, assassina o famoso apresentador – Murray Franklin, interpretado por Robert De Niro – diante das câmeras de televisão, depois de contar piadas mórbidas, assumir outros assassinatos e expressar raiva e indignação pelo deboche do apresentador e pela maneira como ele, Coringa, e pessoas semelhantes são tratados pela sociedade.

Essas atitudes provocam uma afluência de protestos violentos que geram caos no centro de Gotham City, e o Coringa, que parece receber a empatia popular, é aclamado pela multidão após ser liberto do carro de policiais que o prenderam no estúdio de TV.

Com uma entonação de mistério, o suspense psicológico indica uma passagem de tempo em que Arthur Fleck aparece em um manicômio, rindo sozinho e afirmando à psiquiatra que a piada não seria entendida por ela. Depois, com rastros de pegadas ensanguentadas atrás de si, o Coringa sai pelos corredores da instituição como que em fuga.

Coringa sob o olhar da Psicologia Histórico-Cultural

A perspectiva histórico-cultural da realidade humana não é entendida de forma imediata, mas a partir da compreensão de que é preciso ir além das aparências, da necessidade de um afastamento de tal realidade que, em um movimento dialético, intenciona a ela retornar com um arcabouço de conceitos necessários ao entendimento dos processos de conduzem à sua essência multifacetada.

A partir desse fundamento teórico-metodológico, analisa-se primeiramente aqui a realidade psíquica apresentada em o Coringa, apresentada por sua possível epilepsia gelástica. A teoria psicológica concebida por Vygotsky, hoje denominada Psicologia Histórico-Cultural, está ancorada nos pressupostos epistemológicos do Materialismo Histórico-Dialético, logo os aspectos biológicos, considerados por ele na constituição e no funcionamento psicológico, foram sofrendo transformação e distinguindo-se dos demais enfoques teórico-metodológicos, a começar pela relação Biologia e cultura, abalizada dialética, material e historicamente.

Para Vygotsky, entender a Biologia fundamentada no método dialético é entendê-la também em movimento histórico, porque é nele que se pode considerar que o aparecimento de novas formas de atuação não implica na eliminação de atuações já ocorridas anteriormente. Ao

contrário, o movimento histórico-dialético envolve ação incorporadora, superadora e transformadora.

Alexander Luria (1902-1977), médico, psicólogo e pedagogo, desenvolveu sua teoria neuropsicológica fundamentado nos pressupostos ontológicos e psicológicos acerca do funcionamento cerebral considerado por Vygotsky, mantendo ênfase nos aspectos sociais do desenvolvimento humano e na compreensão de que este é constituído a partir de relações recíprocas entre Biologia e cultura, reafirmando a superação do dualismo histórico que permeava ambos os termos à época.

Os fundamentos teórico-metodológicos do Materialismo Histórico-Dialético também subsidiaram seus estudos neuropsicológicos, corroborando a ênfase no entendimento do cérebro como um sistema de unidades funcionais, denominado por ele de Sistema Funcional Complexo. Esse Sistema consistia em uma proposta teórico-explicativa acerca de duas instâncias entretecidas do funcionamento cerebral: a de permanência e a de mudança, fundamentadas em

(...) dinâmicas de transformação e de permanência, define-se pela dialeticidade do funcionamento localizado e ao mesmo tempo unitarizado do cérebro. Não obstante, diferentemente de uma visão restrita à Biologia do desenvolvimento, a proposta assenta- se nos pressupostos de um desenvolvimento imerso na história e na cultura, na natureza e na sociedade, na constituição recíproca entre o homem e o mundo. (Andrade & Smolka, 2012, p. 700).

De acordo com Luria (1981), o Sistema Funcional Complexo também havia sido pesquisado por Vygotsky, e ambos consideravam que estava organizado em sistemas de unidades funcionais. Tal constatação partia do pressuposto de que

(...) durante a ontogênese humana as mudanças que ocorrem na estrutura dos processos mentais superiores produzem, também, importantes mudanças na sua inter-relação, ou seja, na “organização interfuncional” entre as áreas. (Andrade & Smolka, 2012, p. 701, grifo das autoras).

Estas áreas também eram chamadas pelos autores de zonas, hierarquicamente denominadas de primárias, secundárias e terciárias, compreendidas no contexto dialético do desenvolvimento humano, isto é, não linear, mas em movimento bidirecional.

A área/zona primária corresponde ao caráter elementar do desenvolvimento da atividade mental humana, porque depende de uma função basilar. Em “estágios subsequentes” (área/zona

desempenhada com a participação estreita de formas de atividade estruturalmente superiores” (Luria, 1981, p.17).

Já a área/zona terciária exerce “um papel decisivo na organização, planejamento e verificação de todas as ações”, porque “suas conexões interligam praticamente todas as áreas do cérebro e essas conexões são de natureza bidirecional, e o córtex pré-frontal acaba sendo fundamental na regulação do estado da atividade humana” (Andrade & Smolka, 2012, p. 705).

Ao pesquisar as diferenças etárias no funcionamento do cérebro de acordo com o Sistema Funcional Complexo, Luria (1981, p.63) concluiu que na idade adulta a atividade mental e o controle das ações acontecem de modo contrário ao da infância. Enquanto na criança “(...) os processos vão das zonas primárias para as secundárias e terciárias”, no adulto

(...) eles seguem em uma direção descendente, começando nos níveis mais altos das zonas terciárias e secundárias, onde os planos e programas motores são formados, e passando então às estruturas da área motora primária (...). (Luria, 1981, p. 63).

Logo, no processo de desenvolvimento humano, uma função mental “(...) não permanece a mesma, (...) ela muda significativamente a própria estrutura, soluciona a mesma tarefa usando diferentes operações” (Luria, 2002, p. 38). Nesse âmbito, a Neuropsicologia de Luria ainda assevera que, em geral, “a influência dos fatores naturais sobre as funções cognitivas (...) diminui com a idade, mas a influência de fatores culturais aumenta com a idade (Glozman, 2014, p. 69, grifos da autora).

Em síntese, as concepções neupsicológicas de Vygotsky e Luria derivam primariamente de sua concepção histórico-cultural do desenvolvimento, ou seja, de uma abordagem que não é norteada unicamente pelo fator biológico, mas para o desenvolvimento humano considerado a partir da história e dos significados culturais/sociais, da busca pela razão do que está além do fenômeno mental e dos modos para sua superação, transformação.

O reconhecimento de suas contribuições à esta ciência perpassa então pelo não deslocamento da centralidade que conferiam à natureza social do desenvolvimento humano e à significativa importância da cultura como fundamentos de suas convicções teórico- metodológicas. Para os autores, o desenvolvimento de cada função mental significava um passo adiante à hominização, uma conquista do homem sobre sua natureza, uma nova etapa na constituição da história de suas funções psicológicas – um “salto qualitativo da psicologia animal para a psicologia humana” (Vygotsky, 2000, p. 76).

A partir dessas premissas acredita-se que considerar a realidade psíquica do Coringa não deve perpassar pela negligência da existência real de sua patologia, fator biológico, mas pensar que é preciso ir além do entendimento de como o cérebro funciona, como se comporta ou não a partir de estímulos às conexões neurais, por exemplo.

Considera-se que é preciso ultrapassar uma perspectiva psicológica centrada na individualização, que conduz à culpabilização do sujeito e à decorrente patologização, o que se assemelha a um retrocesso que parece direcionar para um estrito viés clínico/saúde-doença. É preciso aproximar-se de uma Psicologia subsidiada por visão mais ampla, que possibilite a compreensão da psique humana a partir de uma perspectiva histórico-cultural, que pode relacionar a neurociência ao cognitivo, ao afetivo, ao social e ao cultural, e não somente a uma concepção biologizante.

Com base nessa compreensão, não se pode negligenciar também as referências que subsidiam as relações sociais na contemporaneidade. Além do fator psicológico, Coringa é um sujeito à margem da sociedade, porque esta, ao longo de sua história, é marcada pela divisão de classes antagônicas, pelas relações de produção que caracterizam a divisão social do trabalho, que fazem com que a objetivação do ser humano e a apropriação dos resultados de tal objetivação aconteçam a partir de formas que impedem que a totalidade das riquezas materiais e não materiais sejam postas a serviço da realização e do desenvolvimento da totalidade dos humanos.

Essa sociedade, a denominada capitalista, é a mesma considerada por Vygotsky na obra “A Transformação Socialista do Homem”, de 1930, quando escreveu que Marx enfatizava o tema da corrupção da personalidade humana provocada por seu crescimento industrial, afirmando que Em um dos extremos da sociedade, a divisão entre o trabalho intelectual e o físico, a separação entre a cidade e o campo, a exploração cruel do trabalho da criança e da mulher, pobreza e a impossibilidade de um desenvolvimento livre e completo do pleno potencial humano, e no outro extremo, ócio e luxo; disso tudo resulta não só que o tipo humano originalmente único torna-se diferenciado e fragmentado em vários tipos nas diversas classes sociais que, por sua vez, permanecem em agudo contraste umas às outras, mas também na corrupção e distorção da personalidade humana e sua sujeição a um desenvolvimento inadequado, unilateral em todas estas diferentes variantes do tipo humano. (Vygotsky, 1930/2004, p. 2, grifo do autor).

Nesse processo capitalista, as considerações de Marx (2004) reputam que a formação humana passa por estranhamento de sentido, do ser para o ter, e, nesse caso, refere-se ao homem como

(...) mercadoria humana, o homem na determinação da mercadoria; ela o produz, nesta determinação respectiva, precisamente como um ser desumanizado tanto espiritual quanto corporalmente – imoralidade, deformação, embrutecimento de trabalhadores e capitalistas. (Marx, 2004, p. 92-93, grifos do autor).

A partir da premissa marxista, o modo de produção capitalista estabelece aos homens um sistema de exploração de uns sobre os outros, que pode ser considerado coerente para o desenvolvimento do regime de classes, mas não para o desenvolvimento humano. Seu caráter crítico e revolucionário concebia uma sociedade desprovida da alienação humana produzida pelo capital, uma sociedade em que o trabalhador desenvolvesse suas capacidades porque produziria sua existência e criaria a consciência do seu ser social, desenvolvendo a condição de ser universal e livre.

Segundo Saviani e Duarte (2015, p. 23), a objetivação, entendida como “a realização efetiva do trabalho humano”, a “transformação da atividade do sujeito em um objeto social”, não na compreensão de que “o produto do trabalho é uma mercadoria que pertence ao capital”, é a única forma de o ser humano desenvolver-se. Contudo,

As relações sociais capitalistas é que transformam aquilo que seria humanização em seu oposto, ou seja, em alienação: transformam (...) a realização efetiva do trabalho em desefetivação do trabalhador, transformam a objetivação em perda do objeto e servidão a ele, posto que o objeto assume a forma de capital. (Saviani; Duarte, 2015, p. 24). É nesse sentido também que se pode pensar na violência vivida e gerada pelo Coringa. Não somente a associada à delinquência ou à criminalidade, mas a procedente das desigualdades sociais e da concentração de renda, da barbárie humana que pode ser considerada a partir da forma como a sociedade capitalista se organiza.

Está exposta também em cada discurso de ódio ou em tom jocoso veiculado por chefes de estado, na banalização do preconceito, do racismo, da homofobia, dos crimes políticos, dos golpes militares, nas ações de ditadura e na liberação das armas de fogo (nunca para todos, devido aos custos), apoiada na falácia que enseja assegurar uma sociedade mais justa e pacífica, por exemplo.

A violência assinalada no filme em questão, em suas diversas manifestações, também é instaurada nos âmbitos macro e micro dessa sociedade, das formas mais subliminares às mais expostas, por meio de propostas de reformas governamentais que ampliam as desigualdades, e/ou dos cortes em investimentos em saúde e educação, para também exemplificar.

Em sentido conceitual, Valle e Mattos (2011, p. 20) consideram que violência é a “ação ou efeito de violentar, de empregar força física (contra alguém ou algo) ou intimidação moral contra alguém; ato violento crueldade, força”, e a definem ainda como a