• Nenhum resultado encontrado

3.2 S UBSTÂNCIA EXTENSA

3.2.1 Divisibilidade do movimento

Deste esforço resultará uma ambiguidade, pois como Descartes propõe o instante como um conceito limite, sendo um ser e um nada, tempo e não tempo, repouso e movimento, ele não consegue expor em sua autenticidade o conceito de diferencial e o instante se torna definível de maneira diferente de acordo com o perfil que o observamos, isto é, seja como negação de todo o tempo, seja como tempo muito curto (GUÉROULT, 1968, 273, tradução nossa),

Ao explicar o movimento a partir da tese da criação contínua, Guéroult trata os instantes do movimento como semelhantes à intuição:

Ora, da mesma maneira que os instantes indivisíveis do movimento elementar, dos quais a soma oferece o movimento real, isto é, temporal, não comportam cada um nenhum percurso perceptível e são finalmente repouso, as intuições instantâneas das quais a soma constitui meu pensamento no tempo são repouso intemporal, que contrastam com <o movimento contínuo do pensamento> o qual é

<sempre temporal como as ações> (GUÉROULT, 1967, 102, tradução nossa).

45 Segundo ele, a divisão seria equivalente aos limites entre um quadro e outro da metáfora do movimento tratado como um filme. A independência seria a completude de cada um desses quadros sem relação nenhuma de um com o outro. As três consequências seriam a garantia de que, embora o conhecimento verdadeiro só possa analisar um quadro de cada vez, a comparação entre os quadros é legítima se levados em consideração as características divinas, como eternidade e imutabilidade, em cada ato da criação.

No entanto, essa fundamentação da filosofia cartesiana no instante da intuição é incorreta. Como a eliminação das causas ocultas e consequentemente das formas substanciais causas finais fazem parte do seu projeto de reformulação da ontologia, ele é obrigado a dar uma nova explicação para a mudança. Como essa ontologia se resolve em uma única substância plena, tanto no sentido de preenchida como explicação suficiente para todos os fenômenos, a mudança não pode ser de uma substância para outra, mas apenas em seus modos. Além disso, a mudança nos modos não pode implicar na mudança da própria substância, ela deve manter-se a mesma. Assim se dá a origem de uma confusão conceitual de uma característica que deve dar conta da mudança sem ser ela mesma uma mudança. A estratégia de Guéroult foi reduzir cada instante em uma substância completa.

Em um texto sobre o paradoxo de Zenão, Koyré27 esclarece que o principal ponto desse problema é divisibilidade de um segmento de reta ao infinito, isto é, decidir se essa divisibilidade é ou não possível; se ela se reduz a um conjunto de segmentos menores ainda divisíveis ou se a divisibilidade alcança o elemento mínimo: o ponto. A contradição surgiria sempre que se tentasse tratar o ponto como elemento mínimo e construir o segmento a partir dele. O resultado seria a composição de uma infinidade de elementos adimensionais que nunca se resolveriam em um elemento unidimensional. A solução seria que a noção de ponto, menos complexa, deveria ser composta a partir da mais complexa. Ele propõe que essa é uma das contribuições de Descartes ao apresentar o conceito de infinito um conceito positivo, embora incompreensível. A noção de finitude dependeria da noção de infinidade.

Assim, a divisibilidade apresentada na tese da criação não seria um elemento mínimo a partir do qual tudo seria composto, mas o contrário, ele seria uma abstração de algo que realmente seria mais complexo, no caso o tempo contínuo. ―Noutras palavras, essa ideia é a de um ―meio‖ contínuo. Parece-nos que se poderia até mesmo sustentar que a noção de limite já pressupõe a do contínuo‖ (KOYRÉ, 2011, 22).

27 KOYRÉ, Alexandre; Observações sobre os paradoxos de Zenão, trad. Maria de Lourdes Menezes. In: Estudos de História do Pensamento Filosófico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011, 2ª edição.

46 Segundo Koyré, o problema se torna explicito na medida em que é necessário quantificar o movimento, pois é necessário dar um tamanho determinado ao objeto e ao percurso feito. A contradição aparece se houver confusão entre o contínuo e uma grandeza contínua. Segundo ele a ideia de contínuo é equivalente à ideia de infinito, isto é, ela é irredutível a outro conceito, sendo ela mesma a origem de outros conceitos, ou seja, o contínuo não quantificável. Sempre que o movimento for tratado como uma grandeza ele será tratado como um segmento ou uma parte. A descrição satisfatória desse segmento o fará parecer independente. Koyré observa que não é decidir se esse segmento é algo real ou mental que resolve o problema:

E, certamente, não corresponde sequer a um começo de solução ou de explicação considerar o tempo e o espaço como ―subjetivos‖, percepções puras, etc. Quer eles sejam reais ou fictícios, in intellectu ou extra intellectum, pois é justamente a maneira pela qual nós representamos o tempo e o espaço sem poder ―compreendê-los‖ que nos coloca problemas; o que não podemos apreender é a ideia de contínuo (KOYRÉ, 2011, 23).

Enfim, o problema é que a quantificação do movimento pressupõe o tempo e o espaço como contínuos, mas não é capaz de representá-los como grandezas. Mas isso nos remete a outro problema que a eliminação das causas finais criou e que a tese da criação contínua pode ajudar a resolver. Koyré diferencia ―os movimentos ―vivos‖ dos movimentos ―mortos‖, o movimento-ato do movimento-estado‖ (Koyré, Observações sobre os paradoxos de Zenão, 24). Koyré afirma que nos movimentos vivos, ou movimentos-ato, o contínuo ―forma um todo verdadeiro, uma unidade organizada com vistas ao seu fim, uma unidade teleológica cujas partes – o antes e o depois – penetram-se e determinam-se reciprocamente‖ (Koyré, Observações sobre os paradoxos de Zenão, 25). Essa interpenatrabilidade das partes do movimento teleológico servia como explicação para a ligação entre as partes quantificadas do movimento, era a tendência interna a se mover para uma determinada direção que uniria a quantidade movida em cada instante.

Essa característica do movimento vivo será substituída por uma explicação do movimento mecânico, a causa final será completamente substituída pela causa eficiente. No entanto, em alguns casos, como o da aceleração variada, Descartes terá dificuldade em quantificar o movimento. A recusa do movimento vivo, extraído das formas substanciais, feita de maneira completa antes do oferecimento de uma solução matemática para quantificar

47 qualquer movimento deixará uma lacuna nos limites da filosofia cartesiana. A atribuição da descontinuidade do tempo deve pressupor que a física cartesiana estava completamente terminada e supor que havia uma dificuldade incontornável para a quantificação do movimento de maneira completa.

Documentos relacionados