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4.1 R EJEIÇÃO DA VELOCIDADE

4.1.1 Movimento de Queda

estranha ao pensamento matemático de Descartes. No entanto, parece não haver problema em dividir o movimento infinitamente para a física cartesiana, a não ser que a geometria seja tratada como uma descrição fiel do movimento ao invés da descrição das proporções que ele engloba. Há uma diferença em dizer que um percurso é igual a uma reta e dizer que a proporção de duas retas equivale à proporção de dois percursos. É essa confusão que Koyré tenta resolver ao abordar o problema do paradoxo de Zenão, que o movimento é diferente da sua quantificação. Assim, o problema é crer que é legitimo perguntar qual é o tamanho da partícula que transmite o movimento em aceleração quando tratamos da generalização do cálculo da aceleração por meio da proporção entre duas figuras geométricas.

4.1.1 Movimento de Queda

O aspecto contínuo da geometria está de acordo com a ideia de Descartes que a mesma quantidade de movimento se mantém no universo. Ela pode ser demonstrada pela equivalência das proporções das grandezas de linhas. O elemento descontínuo, por sua vez, estaria de acordo com a explicação do movimento a partir da tese da criação contínua, que dispõe a ação divina a cada instante gerando uma tendência instantânea ao movimento. Nesse caso também haveria uma tensão, análoga àquela entre o momento como um intervalo ou como um instante. A tentativa de explicar a força como uma quantidade de movimento e como uma tendência instantânea seria um indício dessa tensão na metafísica cartesiana.

Assim, não seria o comprometimento com a tese da descontinuidade do tempo que levaria Descartes a evitar a noção de tempo e velocidade na consideração do movimento de queda e na definição da força. O que levou Descartes a fazer isso foi a dificuldade gerada pela tensão entre elementos contínuos e discretos. Se tivesse que lidar com o movimento acelerado variado, teria que determinar a quantidade de acréscimo gerado por cada choque de cada corpúsculo. Para esclarecer a razão pela qual Descartes rejeitou a velocidade na descrição da queda devemos abordar alguns pontos do conjunto de três cartas nas quais Descartes formula a estática e a sua definição de força.

A primeira é a carta de 13 de julho de 1638 à Mersenne31, no qual Descartes apresenta o que ele chama de o único princípio geral que fundamenta toda a Estática:

31 AT II, 222.

65 A saber, não é necessária nem mais nem menos força para levantar um corpo pesado a certa altura, que para levantar outro menos pesado a uma altura que seja tão grande quanto ele é menos pesado, ou para levantar um tão mais pesado quanto a altura é menor (AT II, p 228, l.

12-16, tradução nossa).

O primeiro problema com o qual nos deparamos é compreender a maneira como Descartes aplicava os termos, que atualmente estão bem definidos pela Física mas com sentido diverso. A força não é a massa multiplicada pela aceleração e nem o peso é a força resultante de aceleração provocada pela atração da gravidade.

Na primeira parte da carta Descartes desenvolve a sua definição de peso o diferenciando das definições aceitas na sua época, que levam em consideração ou a densidade dos corpos ou a tendência ao movimento explicáveis pelas formas substanciais. Ele separa a noção de peso em dois gêneros: relativo e absoluto. O relativo é conhecido, como o próprio nome diz, por uma relação entre o objeto e o mecanismo com o qual ele se move, essa ideia é aceita por Descartes e é indispensável para a sua definição de força, como veremos a seguir.

O absoluto terá duas classificações que serão abandonadas: a primeira diz respeito à forma substancial, em um sentido que podemos chamar de escolástico ou aristotélico-tomista, e pressupõe que o peso é algo intrínseco ao objeto pesado; como a água que teria a propriedade substancial de mover-se em direção do centro da terra. A segunda noção leva em consideração um universo atomista e explicaria o peso de acordo com a aglomeração de partículas e o espaço que elas ocupam, isto é, a sua densidade. Ambas são rejeitadas por Descartes, a primeira por levar em consideração causas ocultas; a segunda por depender da noção de vácuo. Descartes considera verdadeira uma terceira alternativa: o peso absoluto é apenas a tendência de um corpo para mover-se ao centro da Terra.

Nessa carta, Descartes apresenta razões matemáticas para explicar como a consideração do peso relativo e absoluto podem explicar o movimento de queda. Será estabelecida uma relação de proporcionalidade algébrica entre o peso relativo e o peso absoluto para oferecer a sua definição de força.

Primeiro define-se o peso absoluto como a tendência que qualquer corpo tem para mover-se em direção do centro da terra. Deve-se considerar que ele não é empurrado nem sustentado por nada. Também devemos ponderar que essa tendência não varia de acordo com a distância do centro da Terra. É importante notar que Descartes não está preocupado com o fato de a distância alterar o movimento de queda, pois acredita que o movimento uniforme

66 deve ser considerado como um movimento ideal, a partir do qual se poderiam calcular movimentos mais complexos.

Além disso, Descartes afirma que o corpo deve ser considerado no ponto mais alto do movimento, antes de começar a mover-se. É isso o que Richard Arthur chama de ―tendência instantânea ao movimento‖32. No entanto, acredito que esse ponto inicial, que Descartes insiste que deve ser o ponto anterior a qualquer movimento, é apenas a referência a partir da qual traçaremos uma reta para determinar a proporção. Se traçarmos essa reta após o início do movimento ela será menor e não servirá para determinar apropriadamente o tamanho da reta.

Embora essa tendência ao movimento seja criada pela ação de Deus, no instante em que ela existe, de acordo com a criação contínua, ela não serve como uma partícula mínima de movimento. A afirmação de que ela é uma tendência instantânea é apenas a justificativa para traçar-se uma linha a partir de um ponto e tornar a física ligada à geometria. Assim, antes de associar a física a metafísica, a noção de tendência ao movimento é um elemento de ligação entre a física e a geometria. Como ele está usando a linha como o representante geométrico de um movimento contínuo não há razões para exigir uma explicação descontinuísta nessa parte da descrição do movimento.

Esse peso absoluto invariável deve ser tratado geometricamente como a reta dada. A determinação de uma linha ou relação de conjunto de linhas como previamente dadas é um elemento essencial para a solução de problemas da geometria cartesiana e será o parâmetro para a medida do peso relativo, que varia na mesma proporção que o corpo se move na direção do centro da terra. Descartes tenta explicar isso por meio de três exemplos: a polia, o plano inclinado e a alavanca. Para a solução do problema, nos ateremos ao caso da Polia.

O corpo E tem o peso de 200 libras, isso é dado. Como ele está preso em uma polia, cada ponta da corda mantém o peso de 100 libras. 200 libras é o peso absoluto, 100 libras é o peso relativo, poderíamos alterá-lo de acordo com um sistema de polias mais complexo, ou colocando o peso absoluto em uma alavanca ou no plano inclinado. Mas para o problema dado, a saber, quanta força é necessária para levantar o peso E, o peso relativo é de 100 libras.

A linha que está entre C e G é a medida do deslocamento do movimento do peso relativo. Se a linha CG for do tamanho de 2 pés, a força para levantar o peso a essa altura será a força para

32 ―Mas uma resposta adequada seria notar a importância fundamental na filosofia natural de Descartes da ideia de atividade instantânea. Para Descartes, a luz é uma ação instantânea e não existem forças nas coisas a não ser por suas tendências instantâneas ao movimento ou ao esforço.‖(tradução nossa) Arthur, Richard T. W.;

Beeckman's Discrete Moments and Descartes’ Disdain, p. 21.

67 levantar um peso de 100 libras à 2 pés. Como o peso absoluto é de 200 libras ele não descreverá uma linha do lugar inicial ao final de 2 pés, mas apenas de 1 pé. Perceba que há uma proporção entre os pesos e os tamanhos das linhas, assim é possível a relação entre um elemento físico e um geométrico. Ante o exposto, a determinação de um ponto antes do início do movimento é apenas uma maneira de traçar uma linha e resolver problemas de física com ferramentas geométricas e não o comprometimento com uma tese da descontinuidade do tempo. Tampouco, com uma dificuldade em associar a explicação física da tendência instantânea com a manutenção da mesma quantidade de movimento. A mesma quantidade de movimento é uma exigência algébrica: as duas partes das proporções devem se igualar. E a força como tendência, digo mais uma vez, é a referência para traçar a linha.

Na carta de 12 de setembro de 163833, Descartes apresenta para Mersenne a solução para uma série de dúvidas apresentadas pelo padre. Dentre elas, as razões pelas quais ele não usou o tempo para calcular a força de queda dos corpos. Pretende-se mostrar que a rejeição do tempo não está enraizada em razões metafísicas.

Em primeiro lugar Descartes afirma que preferiu usar duas dimensões e não uma porque ele queria tratar da força que eleva um corpo a certa altura e não a força que é usada em cada ponto do deslocamento, que teria apenas uma dimensão. Essa é uma indicação de que ele está preocupado com o resultado de um deslocamento contínuo e uniforme representável por uma linha e não com a sucessão de vários deslocamentos fragmentados. Para ele a força que sustenta o corpo na altura do fim do deslocamento é a mesma que o sustenta por um momento do tempo ou por um ano inteiro, definindo aqui algo semelhante ao que chamamos de energia cinética. O tempo não está sendo rejeitado como algo metafisicamente indesejável, está apenas se limitando ao cálculo da Estática.

Em seguida, apresenta as razões pelas quais acredita que há confusão na compreensão do seu princípio da Estática. A primeira nos interessa, pois rejeita exatamente o uso da velocidade. Segundo Descartes, algumas pessoas acreditam que o que mantém o equilíbrio em uma balança é a velocidade com que os braços da balança se movem. Descartes acusa-os de confundir o espaço com o tempo ou com a velocidade. Como já foi explicado, basta mostrar que há uma relação entre o peso de dois objetos e a distância que eles percorrem em uma balança. A relação de proporcionalidade entre ambos é suficiente para explicar o porquê do equilíbrio. Além disso, Descartes, mais adiante na mesma carta, afirma que não haja

33 AT II, 352.

68 movimento que não tenha velocidade, inclusive afirma que há variações de velocidade no caso da queda, mas justifica a rejeição dessa variação por ser excessivamente complexa:

Pois é impossível dizer qualquer coisa de boa e de sólida no que toca a velocidade sem ter explicado verdadeiramente o que é o peso em conjunto com todo sistema do mundo. (AT II, p. 355, l. 5-8, tradução nossa).

Para explicar a velocidade de um corpo em queda seria necessário determinar todas as causas que provocam esse movimento. No caso, todos os corpúsculos do turbilhão que se chocam com esse corpo. Richard Arthur tem razão em dizer que Descartes teria dificuldade em manter o movimento uniforme e contínuo se ele tivesse que explicar verdadeiramente a adição de movimento de cada um desses choques. No entanto, há indicações de que Descartes estava ciente disso; e há razões em seu método geométrico para justificar o desvio desse problema, a saber, a simplificação dos elementos da proporção. Não há necessidade de recorrer à hipótese de tensão entre elementos físicos e matemáticos.

Em seguida, Descartes admite que há uma velocidade do movimento de queda, mas indica que a considera uniforme porque deseja que possa ser considerada inexistente, com o intuito de simplificar a equação. Ainda, afirma que não há aceleração relevante no movimento de queda. Embora isso seja um erro de sua física, a razão é uma falsa hipótese sobre como funciona o movimento de queda e a resistência do ar. Mais uma vez, não há uma rejeição metafísica da velocidade.

Pois ainda que não haja nenhum movimento que não tenha nenhuma velocidade, todavia não há aumentos e diminuições dessa velocidade que sejam consideráveis e, enquanto falamos do movimento de um corpo, supomos que ele o faz de acordo com a velocidade que lhe é a mais natural, que é o mesmo que se não a considerarmos de maneira nenhuma. (AT II, p. 355, l. 11-18, tradução nossa).

Por fim, na carta a Mersenne de 15 de novembro de 163834, Descartes rejeita, mais uma vez, o uso da velocidade, dessa vez mencionando Galileu. Segundo Descartes, Galileu consegue explicar o que é a queda, mas não o porquê (AT II, 433-434, l. 14-2). Entendo que a explicação que satisfaz Descartes é a equivalência entre o peso e a distância do deslocamento

34 AT II, 419.

69 da queda, de maneira a tornar essa equivalência seja idêntica a uma proporção geométrica.

Além disso, Descartes afirma que não é necessário fazer o uso da velocidade para explicar racionalmente o funcionamento das maquinas (a alavanca e a polia). O que deixa claro que antes de ocupar-se com a explicação de todo o funcionamento do mundo, havia uma preocupação com a construção de máquinas que facilitem o trabalho do homem.

Portanto, as tentativas de justificar a não formulação da dinâmica não podem ser atribuídas a razões da metafísica cartesiana. Resta claro que a rejeição da velocidade e do tempo é para a simplificação da quantificação da queda. Embora haja razões para acreditar que há uma incompatibilidade entre a física e a matemática cartesiana, a incompatibilidade limitar-se-ia a explicação da adição de movimento pelo choque de partículas com tamanho determinado, mas não está fundamentada na noção de instantaneidade do movimento. Por fim, Descartes não faz a confusão entre a velocidade e deslocamento que impede relacionar a estática com a dinâmica, ainda que não tenha gerado uma fórmula geral para estática e para dinâmica e tampouco reconhecido que a manutenção da mesma quantidade de força é mais útil que a manutenção de quantidade de movimento.

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