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6. A presença do sujeito jornalista nos diferentes gêneros do jornal

6.3 O como dizer no gênero noticioso

Retomando: os valores-notícia são critérios de seleção que derivam de pressupostos partilhados: os jornalistas sabem o que deve ser veiculado, o que implica um julgamento – só se torna notícia o que é avaliado como interessante e significativo. O critério de relevância, como lembra Wolf (op. cit.) envolve todo o processo de produção de notícias, orientando também a elaboração do material (o como dizer), a forma que este deve ser apresentado aos leitores, que elementos precisam ser enfatizados e/ou esquecidos. É esse critério que explica a ordenação do texto noticioso na forma de uma pirâmide invertida, sua concisão.

Trata-se de um esquema bastante rígido, que substituiu aquele que narrava os acontecimentos na ordem cronológica. Essa forma de construir o texto, apresentando os aspectos essenciais da informação no primeiro parágrafo (os seis “servidores” de uma notícia: quem, o quê, quando, onde, porque, como), é considerada um avanço, marcaria o início da linguagem jornalística, sua separação da falsamente literária. O texto noticioso deve apresentar tal esquema, que corresponde a um dos elementos constitutivos desse gênero, qual seja, sua construção composicional.

Seguindo as reflexões de Bakhtin podemos explicar as mudanças ocorridas no texto jornalístico se atentarmos para a “esfera de comunicação” que é a imprensa (jornalismo impresso), as alterações que sofre a partir de um dado período, o do chamado jornalismo empresarial, de grandes monopólios. De acordo com Sodré (1996), a chegada de novas tecnologias, a ampliação do público, a consolidação do jornalismo como empresa, levam a modificações “no código e no interesse”: supõe-se um outro leitor, menos propenso a ler textos longos, e uma nova linguagem, que ordena os fatos na forma da pirâmide. Nas palavras do autor:

Essa pirâmide consiste no centramento do texto noticioso em torno da velha fórmula retórica para a reconstituição de um fato, em detrimento do comentário, das impressões pessoais ou do literalismo. O slogan anglo-saxão “comment is free but facts are sacred” (“é livre o comentário, mas os fatos são sagrados”) resume o projeto informativo implícito nessa transformação significativa do texto (p.141). Na leitura de Marcondes (op. cit.), as novas tecnologias agem em dois planos: no dos conteúdos, com o favorecimento de certas linguagens, a simplificação do texto; no do

trabalho, imprimindo “seu ritmo e sua lógica às relações de trabalho, definindo os novos profissionais, a nova ética de trabalho, em suma, um outro mundo, que mal deixa entrever os sinais do que se convencionou chamar no passado de jornalismo”(p.31). No “plano dos conteúdos”, o autor aponta a substituição do texto jornalístico clássico pela notícia curta, de três parágrafos e a redução do “universo lingüístico do jornalismo”, efeito de uma avaliação sobre as capacidades intelectuais do leitor.

Para os dois autores, as mudanças ocorridas no texto jornalístico são decorrentes da passagem da imprensa artesanal para a industrial. Acreditamos que elas vão além das enumeradas por Sodré (“no código e no interesse”), incidem na instituição imprensa como um todo (em seus diferentes “planos”). As condições sócio-históricas, dentre elas o prestígio do discurso positivista, como apontam os críticos da teoria do espelho, determinam que o jornalismo se aproxime desse último, fazendo com que atribua a si o papel de retratar os fatos de forma neutra e objetiva, afastando quaisquer traços da presença de um sujeito. Trata-se de uma mudança necessária para produzir o efeito de isenção, para conferir credibilidade à prática. Isso explica, no nosso entender, a modificação do texto ou, como afirmam alguns autores, o nascimento da linguagem jornalística, aquela que espelharia os acontecimentos.

Esse gênero determina, assim, uma construção composicional que corresponde à organização do texto na forma da pirâmide, o que implica a redução a seus elementos “essenciais”, com pouco (ou nenhum) espaço para pormenores. Lage (2002) relaciona a brevidade da notícia ao critério de relevância, conferindo um estatuto científico a essa relação. Para ele

a Teoria da Relevância (Sperber&Wilson, 1994) propõe que a mente humana procura obter o máximo de informação com o mínimo de esforço. Daí, a notícia

constata, mas não argumenta; é axiomática; simplifica na medida do possível; traz

o acontecimento para perto do destinatário; e se sujeita a uma seleção prévia que considera fatores como proximidade, atualidade, oportunidade, intensidade ou abrangência, empatia de personagens etc. (p.59, grifo nosso).

Entendemos a organização/concisão do texto jornalístico como resultado de um trabalho que busca produzir o efeito de sentido de objetividade e neutralidade, que é reforçado pela categorização dos gêneros feita pela comunidade, e a decorrente localização dos textos noticiosos nas chamadas páginas informativas. É interessante observar a

definição dada por Lage: a notícia aparece totalmente dissociada de seu contexto de enunciação, como se se produzisse sozinha. Podemos dizer que tal definição corresponde ao dito jornalístico aqui já mencionado, “os fatos falam por si”, que expressa bem o ideal da linguagem jornalística. Daí afirmarmos que o gênero notícia, mais que outros, é aquele onde a pretensão científica do discurso jornalístico aparece de forma inequívoca, aquele que mais se aproximaria do ‘fazer científico’.

O trabalho objetivando o “ser e parecer verdadeiro” é uma exigência do próprio gênero noticioso, pouco propício à manifestação da individualidade. A cada gênero, como ressalta Bakhtin, corresponde determinado estilo: no caso do gênero notícia teríamos um estilo “objetivo-neutro”. Isso não implica dizer que um estilo rígido como esse não abra espaço para a expressão individual, mas apenas que esse espaço é mais reduzido que em outros gêneros. Que espaço seria esse? O próprio Bakhtin sugere caminhos quando afirma que em gêneros muito padronizados o querer dizer do locutor “quase que só pode se manifestar na escolha do gênero” (p.302). Acreditamos que o fato de tornar notícia determinado acontecimento, de apresentá-lo nas páginas “objetivas”, implica a avaliação de um sujeito, e esta não se restringe à relevância do fato mas diz respeito também aos efeitos que se quer provocar no leitor. Nesse sentido, a escolha do gênero tem a ver com o efeito de sentido que se quer produzir, no caso, o de imparcialidade, o de neutralidade.

Ainda sobre o estilo, Bakhtin ressalta que não se pode compreendê-lo, o próprio gênero, se não levarmos em conta a relação de quem produz os enunciados com seu outro (e os enunciados desse outro). Em suas palavras:

A quem se dirige o enunciado? Como o locutor (ou escritor) percebe e imagina seu destinatário? Qual a força da influência deste sobre o enunciado? É disso que depende a composição e, sobretudo, o estilo do enunciado. Cada um dos gêneros do discurso, em cada uma das áreas de comunicação verbal, tem sua concepção padrão do destinatário que o determina como gênero (p.321).

Os autores citados acima, Sodré e Marcondes, sugerem que o jornalismo industrial tem sua concepção de destinatário padrão, qual seja, aquele pouco disposto a textos longos e “complicados”. Parece ser essa a imagem de leitor que os textos jornalísticos, em especial os noticiosos, delineiam: sem tempo para se dedicar a uma leitura mais atenta, e também

com outras opções (a concorrência), o que tornaria obrigatório a concisão52 bem como a utilização de recursos objetivando tornar os textos mais claros e interessantes – imagens coloridas, boxes, tabelas, gráficos. O chamado zapping impresso, conceito que aparece em Barros Filho (2001), a mobilidade visual de entrar e sair de diferentes segmentos, verbais e não-verbais, permite, inclusive, motivar o leitor a voltar ao texto, ler seus últimos parágrafos, e não apenas o primeiro (que é o que se acredita que ele faz, daí a necessidade de concentrar o essencial no início do texto). Assim, o estilo do gênero noticioso é determinado por essa imagem de leitor apressado, aquele cuja atenção é necessário despertar e manter.

Acreditamos, porém, que a concepção padrão de leitor do gênero noticioso vai além daquela apontada acima, a saber, o que precisa de textos curtos e legíveis. De acordo com Bakhtin, o estilo objetivo-neutro “pressupõe uma espécie de identificação entre o destinatário e o locutor, uma comunhão de pontos de vista, o que ocorre à custa de uma recusa de expressividade” (p.324). Em se tratando do gênero noticioso podemos pensar a coincidência jornalista-leitor como o apagamento das duas instâncias: tanto o jornalista que fala como o para quem ele se dirige estão ausentes (apenas os fatos que devem falar). Nesse sentido, o estilo do gênero (uso da terceira pessoa, ausência de termos avaliativos etc.) explica-se pela influência de um leitor interessado no que realmente aconteceu, o que explicaria a ausência de assinatura nos textos noticiosos. No entanto, pelo fato de os gêneros não serem estanques, de estarem abertos a mudanças, nota-se, como veremos mais à frente, que muitos desses textos já trazem o nome do jornalista responsável pela notícia, em uma estratégia que objetiva não apenas legitimar o que é veiculado, uma vez que não se trata de qualquer jornalista, mas também conferir singularidade ao jornal (e por extensão a seu leitor) na medida em que, muitas vezes, atribui-se o que é veiculado a um furo jornalístico.

52

Sobre a necessidade de concisão, Wolf (op. cit.) lembra um dito jornalístico: as notícias deveriam ser como

as saias de uma mulher: suficientemente compridas para cobrir o essencial e suficientemente curtas para reterem a atenção.

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