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6. A presença do sujeito jornalista nos diferentes gêneros do jornal

6.5 O gênero reportagem

Se perguntarmos às pessoas em geral que figura humana é a mais característica do jornalismo, a maioria responderá, sem dúvida: o repórter. Se interrogarmos um jornalista sobre quem é o mais importante na redação, ele – excetuado o caso de algum projetista gráfico ou editor egocêntricos – dirá que é o repórter (Lage, 2001).

Nas classificações que circulam na comunidade jornalística (cf. Mello op.cit.), os gêneros notícia e reportagem aparecem situados na mesma categoria: a de jornalismo informativo. Isso quer dizer que são concebidos como tendo por função observar a realidade e descrevê-la, e não analisá-la ou avaliá-la, como nos gêneros da categoria opinativa. Os critérios usados para diferenciar notícia e reportagem variam: há autores (cf. Lage, 1985) que apontam diferenças em relação aos temas: na notícia, o relato de fatos

(como a de que determinado governo foi deposto); na reportagem, a cobertura de assuntos (como sobre a conspiração que levou ao golpe). Há aqueles, como Ferrari & Sodré (1986), que afirmam que tanto notícia como reportagem apresentam o “quem” ou “o quê”, porém, somente nesse último, esses elementos devem, estão autorizados a despertar “interesse humano”, uma vez que seria essa a expectativa do leitor. Vamos apresentar e discutir alguns das observações presentes nos trabalhos Ferrari & Sodré (op. cit.), Lage (1985) e Lima (op. cit.).

O fato de o gênero reportagem ser concebido como aquele que fica “a meio caminho da esfera informativa e da opinativa” talvez explique a dificuldade da comunidade em caracterizá-lo. Trata-se de um gênero contíguo a outro da mesma categoria, a noticiosa, e também aquele em que o jornalista é autorizado a emitir opinião “de forma moderada”, o que o aproxima, mesmo que timidamente, dos gêneros da esfera opinativa. Por outro lado, ao mesmo tempo em que os autores procuram identificá-lo ao discurso jornalístico, afirmando tratar-se de um gênero “pautado por regras objetivas” (Ferrari & Sodré, p.10), revestem-no de características que o aproximam de um outro campo, o literário. Teríamos, assim, um gênero híbrido, com traços provenientes de outros gêneros e de um outro campo.

Apesar dessas dificuldades, parece haver um consenso de que ele poderia ser caracterizado recorrendo ao critério de atualidade. Tomando-o por base, a notícia se diferenciaria da reportagem pela necessidade da primeira trabalhar com fatos novos (matérias quentes no jargão jornalístico), aqueles que precisariam ser divulgados/noticiados rapidamente. Essa diferença nas condições em que os dois gêneros são produzidos permite não apenas uma maior liberdade em relação ao prazo de entrega do texto, o apontado pelos estudiosos, mas também a produção de um imaginário sobre ele: sentidos altamente positivos, como vimos, aparecem ligados à figura do repórter. Isso porque na reportagem, o jornalista, em função de não necessariamente estar cobrindo fatos recentes, pode fazer uma investigação mais aprofundada do tema, trabalhar mais o texto.

O estudo de Lima (op. cit.) é um bom exemplo do que consideramos a supervalorização do gênero reportagem59. O autor apresenta uma pesquisa detalhada sobre esse gênero, defendendo a idéia de que este, principalmente em sua realização enquanto livro, pode trabalhar com os acontecimentos de forma diferente de outros textos

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jornalísticos, especialmente a notícia. Antes de sinalizar como deveria ser esse trabalho, Lima mostra como a reportagem é uma “evolução” do texto noticioso. Segundo ele, o jornalismo encontrou na notícia a fórmula básica de “traduzir” as ocorrências sociais para um público disperso e heterogêneo. A ‘fórmula’, que objetiva informar e orientar de maneira clara, rápida e precisa fez com que o jornalismo informativo fosse criticado como superficial e incompleto. A notícia redonda foi uma resposta a essas críticas e corresponde a um “enriquecimento da fórmula”, mas não traz, ainda, o aprofundamento dos fatos, não dá ao leitor uma “compreensão de maior alcance” (p.24). Isso só ocorreria com o gênero reportagem, com as “páginas ampliadas”60, isto é, com

a ampliação do relato simples, raso, para uma dimensão contextual. Em especial esse patamar de maior amplitude é alcançado quando se pratica a grande- reportagem, aquela que possibilita um mergulho de fôlego nos fatos e em seu contexto, oferecendo, a seu autor ou a seus autores, uma dose ponderável de liberdade para escapar aos grilhões normalmente impostos pela fórmula convencional do tratamento da notícia, com o lead e as pirâmides mencionadas (p.24).

Aprofundamento do tema, investigação mais minuciosa, possibilidade de dar ao leitor um conhecimento mais amplo (nas palavras de Ferrari e Sodré “iluminando e ampliando a visão sobre determinado assunto”, p.36). Essas são algumas das características que os autores atribuem ao gênero reportagem. Este chega a ser definido como “extensão da notícia”, definição que aponta para uma “quebra” do critério de relevância, crucial, como vimos, no gênero noticioso. Dessa liberdade resultaria um texto mais longo, ampliado, mais “denso”. Para produzi-lo, o jornalista deve, segundo Lima, recorrer a “procedimentos de extensão”, a saber, a extensão pela pauta, a complementação pela captação e a fruição pelo texto (que discutiremos mais à frente).

No que diz respeito ao primeiro item, o autor discute a noção de atualidade, defendendo a idéia de que a pauta não deve ser definida a partir desta noção, mas sim a partir da noção de contemporaneidade. Esta última permitiria a apreensão de muitos fenômenos que escapam a “uma conformação atual, no sentido restrito, tendo muito mais a ver com uma concepção um pouco mais dilatada de tempo presente” (p. 57). Nas palavras

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da pesquisadora61 citada por Lima, trata-se de “descobrir o passado que ainda existe no presente”.

Outro problema a ser superado, segundo Lima, é a forma deficiente como os jornalistas aproximam-se de seus entrevistados (os personagens de suas histórias), como “captam” as informações. Para ele o jornalista deve (re)aprender a ouvir. Trazendo reflexões de diferentes pesquisadores, o autor mostra que as entrevistas feitas por jornalistas são encaminhadas de tal forma que não dão voz ao entrevistado, fazendo muitas vezes com que este responda àquilo que já fora estabelecido para ele. A pesquisa é da década de 90, o que faz com que outros fatores sejam acrescentados ao problema apontado. Pensamos na proliferação de sites e agências de notícias, que permitem ao jornalista “entrevistar” pessoas sem precisar sair da sala de redação. O que se tem hoje, portanto, está mais distante ainda do que o outro tem a dizer/contar. A notícia já chega pronta, o que acarreta uma série de problemas que vão desde a subserviência ao que outro considera importante (figuras públicas, empresas, agências de notícias) à predominância de relatos/textos taquigráficos e burocráticos.

O repórter seria aquele que dá voz aos entrevistados, que sabe ouvir, e, além, aquele que se identifica com eles. Esse traço também é atribuído, como vimos, por Medina (2003) à figura do repórter: aquele que sai às ruas, conversa com as pessoas. Sobre isso, é interessante apresentar o exemplo (“clássico”) dado por Ferrari e Sodré (op. cit.) para ilustrar a ‘transformação’ de uma simples notícia em reportagem. O episódio ocorreu nos Estados Unidos em 1925: um camponês, Floyd C., entra em uma gruta e acaba soterrado. Nos dias que se seguem ao acidente, chega ao local “um rapaz franzino”, o repórter S. Miller, enviado pelo Courier Journal, e pede informações sobre o rapaz acidentado. “Se você quer saber como vão as coisas, o buraco está aí”, é o que recebe como resposta. O jornalista aceita o desafio e consegue chegar até ao rapaz, sendo “imediatamente tocado pela extrema solidão do homem”. Nas palavras dos autores, é nesse momento que a reportagem se impõe, o momento da empatia, a que permite a humanização do relato. Ressalte-se que na explicação dos autores, o repórter é revestido de traços heróicos: um rapaz pequeno e franzino, mas que aceita desafios e acaba por se mostrar o “mais decidido de todos” (p.12).

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O exemplo apresentado acima remete a outro traço do gênero reportagem, também lembrado por Ferrari e Sodré, esse de sua dimensão composicional: assim como a notícia, trata-se de uma narrativa, do relato de fatos, de acontecimentos. No entanto, na reportagem o jornalista tem maior liberdade em relação a certas limitações impostas ao gênero noticioso, como ao tamanho do texto e também à forma de organizá-lo. Os autores observam que, embora em ambos predomine a forma narrativa, os dois gêneros provocam efeitos diferentes: mais que apresentar os fatos ao leitor, anunciá-los, a reportagem o conduz a um posicionamento crítico, revela “ângulos insuspeitados” sobre aquilo que é narrado. Aqui aparece uma característica já atribuída ao gênero reportagem, a saber, a de possibilitar um conhecimento mais aprofundado dos fatos. Essa superposição de traços corrobora o que já dissemos: falar de uma das dimensões do gênero (conteúdo temático, estrutura composicional e estilo) implica falar de outras, uma vez que elas se encontram inter-relacionadas: influenciam e são influenciadas pelas outras.

Do que foi dito até aqui, pode-se perceber que os estudiosos da comunicação concebem os gêneros reportagem e notícia como bastante próximos, em especial no que diz respeito às dimensões temática e composicional. Quanto ao estilo, embora esse componente não seja nomeado dessa forma, parecem concordar que seria ele o responsável pela distinção entre os dois gêneros.

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